domingo, 13 de julho de 2014

Te Contei, não ? - Das Cantigas Trovadorescas ao Cordel

Das cantigas trovadorescas ao Cordel


Este artigo é uma homenagem aos poetas do povo



por Luzdalva S. Magi*




“... Eu sou de uma terra que o povo padece Mas não esmorece e procura vencer. Da terra querida, que a linda cabocla De riso na boca zomba no sofrer Não nego meu sangue, não nego meu nome Olho para a fome, pergunto: o que há? Eu sou brasileiro, filho do Nordeste, Sou cabra da Peste, sou do Ceará... 
(Patativa do Assaré) ”


A Literatura de Cordel surgiu primeiramente na forma de cantigas trovadorescas que eram acompanhadas por instrumentos musicais, versos compostos para cantar e dançar, o que facilitava ao ouvinte a memorização e assimilação do tema apresentado. A presença de rimas, as constantes repetições eram os recursos utilizados pelos compositores para que o público assimilasse o discurso inserido na obra. Não havia registro escrito, apenas a apresentação oral dos versos compostos. Muito tempo depois, com o surgimento do Humanismo, é que a poesia e a música se separaram. Atualmente, o papel dos trovadores, menestréis e jograis foi assumido por cantores e grupos musicais que fazem uso do verso e da melodia para levar seu discurso ao público.
As cantigas de amigo traziam características de confissão e anseios e o eu lírico feminino falava de possibilidades reais de sentimentos. Esse tipo de cantiga era comumente utilizado em bailados e celebrações de grupos agrícolas, nos quais a característica matriarcal era forte e influente – nos rituais da primavera, nas festas comemorativas, ela sacramentava a importância social do ser feminino. No entanto, em outras situações, essa mesma cantiga era a síntese da mulher sofredora, que vaga pela praia e fala com os elementos da natureza, está à espera do seu amado que partiu para terras distantes, que canta ao acaso sua dor e o temor obscuro de não mais rever o ente querido.
“Ondas do mar de Vigo
Se vistes meu amigo?
E, ai, Deus, se verra cedo!
Ondas do mar levado
Se vistes meu amado?
E, ai, Deus, se verra cedo!”

As transformações sofridas pelas cantigas de amigo não a esvaziaram de seu sentido primeiro. Traços comuns entre elas e obras e composições atuais são facilmente observáveis. Vamos usar como termo de comparação a canção de Caetano Veloso e Ferreira Goulart, Onde Andarás, gravada por grandes intérpretes, como Joanna, Marisa Monte e Maria Bethânia.
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Onde andarás nesta tarde vazia
Tão clara e sem fim
Enquanto o mar bate azul em Ipanema
Em que bar, em que cinema te esqueces de mim.
(...)
Eu sei, meu endereço apagaste do teu coração,
(...)
Não serve pra nada a escada, o elevador,
Já não serve pra nada a janela
A cortina amarela, perdi meu amor
E é por isso que eu saio pra rua
Sem saber pra quê
Na esperança talvez de que o acaso,
Por mero descaso, me leve a você.
(...)


POR DENTRO
CANTIGAS TROVADORESCAS
Trovadorismo, também conhecido como Primeira Época Medieval, é o primeiro movimento literário da língua portuguesa. Seu surgimento ocorreu no século XII, quando Portugal começava a despontar como nação independente. Os textos produzidos, em sua maioria poemas – considerados cantigas –, eram criados para serem cantados ao som de flauta, viola ou alaúde. Os trovadores, autores de origem nobre, eram aqueles que compunham as poesias e as melodias que as acompanhavam. Os jograis, indivíduos considerados de origem vil, eram primordialmente cantores, apesar de, por vezes, também escreverem os versos que declamavam. Havia, ainda, os menestréis, artistas da corte ou ambulantes, que, a serviço de senhores, recitavam e cantavam poemas em verso, frequentemente com acompanhamento instrumental. Há divergências entre os autores sobre quem, à época, abaixo dos trovadores, teria gozado de mais prestígio, se os jograis, ou os menestréis. Conheça as origens do Trovadorismo em: pt.wikipedia.org/ wiki/Trovadorismo>



A melancolia do abandono, o sopro de desesperança, o vagar pela praia acalentando o desejo de encontrar o amor distante está presente como em qualquer canção medieval, muda a linguagem, sim, porém a mensagem e o traço sentimental e desvairado permanecem intocáveis como nas falas dos antigos menestréis. Essa mágica da poética que acontece sinestesicamente é que enleva e cativa o ouvinte e que o faz repetir mecanicamente um refrão.
Os vários tipos de cantigas de alguma forma permaneceram, chegaram ao Brasil com os colonizadores e foram se adaptando, como todo traço cultural se adapta. Dessa adaptação é que surgiu a modalidade de expressão poética chamada Cordel, comum no Nordeste brasileiro, tendo como similar do menestrel o repentista. O gênero é chamado Cordel porque os livretos eram compostos de folhas atadas por uma espécie de barbante, os quais eram expostos em varais nas feiras livres para serem comercializados. Na França, a Literatura de Cordel recebeu o nome de Littèrature de Colportage; na Espanha, de Pliegos Sueltos e em Portugal, de Folhas Volantes.

Expressao poética chamada Cordel, comum no Nordeste brasileiro, tendo como similar do menestrel o repentista



Detalhe da xilogravura Festival de Violeiros, de J. Borges, que estampa o LP Violas Repentes
(Discos Marcus Pereira, 1980).

Os temas dos cordéis variam, podem falar de amor, de contendas, de feitos heróicos, de personagens históricos, mas o mais comum é o desafio – uma peleja poética empreendida por dois autores que têm como objetivo mostrar a presteza do verso e o raciocínio rápido. A disputa de versos é conhecida como “duelo de repentes1”. Nela, os compositores improvisam e satirizam ou elogiam seu rival.
O principal autor de Cordel no Brasil foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), que se inspirou em cavaleiros lendários e compôs a “A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás”, fazendo alusão a Carlos Magno e os Doze Pares de França.
“Eram doze cavaleiros,
Homens muito valorosos,
Destemidos e animosos
Entre todos os guerreiros,
Como bem fosse Oliveiros,
Um dos pares de fiança,
Que sua perseverança
Venceu todos os infiéis
Eram uns leões cruéis
Os Doze Pares de França! (...) ”

O Cordel também assume traços bem humorados, como a crítica de costumes. Com certa galhofa e ar descompromissado, demonstra os preconceitos comportamentais da sociedade de maneira geral, como é possível verificar no excerto abaixo da obra apresentada por José Martins dos Santos, autor de Moça Namoradeira.
“Aconselho às moças donzelas
Que vivem na maganagem
Que desprezem a malandragem
E o namoro das janelas
Vá lavar suas panelas,
Talher, prato e frigideira,
Tenho visto moça solteira
Com os malandros abraçada
Termina sendo falada
A moça namoradeira.”

O Brasil, hoje, possui dois representantes repentistas de total responsabilidade, Caju e Castanha – eles cantam o humor e a beleza, a feiura e a delicadeza e vão espalhando talento, bom humor, acidez e crítica social por onde passam. Entretanto, não são valorizados como deveriam e nos rincões afastados desse País laboram excelentes compositores e repentistas que nem sequer são conhecidos.

REPRESENTANTES
GONÇALO E O ACERVO DE 13 MIL TÍTULOS
A criação da Academia Brasileira de Literatura Cordel [ABLC], em vários aspectos, se assemelha à da Academia Brasileira de Letras [ABL]. Fundada em setembro de 1988, a ABLC é fruto do esforço de três cordelistas: Gonçalo Ferreira da Silva, seu presidente, Apolônio Alves dos Santos, o vice, e Hélio Dutra, o diretor cultural. As primeiras reuniões do trio foram realizadas na sala de um político, que não cobrou pelo aluguel. Passados, porém, os momentos iniciais de euforia e vencido o prazo de cessão da sala, os cordelistas iniciaram um doloroso período de peregrinação, chegando a se reunir em bares, lanchonetes e restaurantes, até conseguirem um espaço dentro da Federação das Academias de Letras do Brasil. Foi a partir de então que conseguiram elaborar um calendário acadêmico, criar um quadro de beneméritos e iniciar uma sólida ponte de informações culturais, unindo a entidade aos principais centros de difusão da literatura de cordel no Brasil e no mundo. Atualmente, a ABLC possui sede própria, uma bela casa no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Visite o site da ABLC e saiba mais sobre sua história, seus projetos e tudo o que ela tem a oferecer: <http://www.ablc.com.br/>.

1 - Alguns autores consideram o cordel e o repente gêneros distintos. Afirmam que, apesar de ambos terem a mesma origem – as cantigas trovadorescas –, o repente se diferencia do cordel basicamente por ele ser baseado na criação de cantadores, ao passo que o cordel é caracterizado por ser poesia nascente da cultura popular publicada em pequenos folhetos. No entanto, nas palavras de Gonçalo Ferreira da Silva, presidente da ABLC, o repente, enquanto peleja poética, é uma das modalidades de cordel.


CURIOSO
COMPOSIÇÕE PARA ROBERTO
De tanto ouvir Roberto Carlos “mandar tudo para o inferno”, nos versos da canção que dominava as rádios no fim dos anos 1960, enquanto viajava a bordo de um ônibus de Maceió a Aracaju, o poeta popular Enéias Tavares dos Santos, ao chegar à capital sergipana, achou que era mais do que hora de o “rei” receber uma mensagem de ninguém menos do que Satanás. E assim surgiu Carta do Satanás a Roberto Carlos.
Inferno, corte das trevas,
Meu grande amigo Roberto,
Eu vi o seu novo disco
É muito bonito, é certo,
Mas cumprindo a sua ordem,
O mundo fica deserto [...]

[...] Se para aqui vier tudo
Eu fico muito apertado
Pois o inferno já está
Por demais superlotado,
Você ganhando dinheiro
E eu ficando aqui lascado.

A conversa franca entre Satanás e seu “grande amigo Roberto” tornou-se um dos maiores sucessos da literatura popular brasileira em versos, rendeu incontáveis reimpressões e inspirou dezenas de folhetos de outros cordelistas.
Divirta-se lendo Carta do Satanás a Roberto Carlos na íntegra e excertos de trechos inspirados nesse folheto em: <http://acordacordel. blogspot.com.br/2011/04/carta-de-satanas-roberto-carlos.html>.

Ritmos, batidas, versos...
Todos os estilos têm uma origem. As canções trovadorescas chegaram ao Brasil vindas de Portugal, o Repente nasceu do sofrimento do retirante nordestino e o Rap surgiu nos guetos americanos. E o que esses estilos, criados em momentos e situações tão distintas, têm em comum? Principalmente, a rima, a toada repetitiva e o conteúdo de sua mensagem, a despeito de todos eles, no que diz respeito à sonoridade, possuírem arranjos bem diferentes, próprios de sua época. Os trovadores cantavam seu tempo, sua terra e seus amores; os repentistas empreendem um duelo que varia entre o social e o político e os cantores de rap abordam o social e o cotidiano nas comunidades marginalizadas pela sociedade.
A banda Racionais MC’S, por exemplo, faz um Rap cortante, inspirado nas diferenças sociais e na violência que assola os grandes centros urbanos. Poesia forte, batida seca e dolorida, é uma música difícil porque faz pensar, traça um panorama que nem todos conhecem – a consciência do que acontece nas ruas da periferia, uma realidade quase sempre marcada pela história do menino pobre, criado pela mãe que trabalha e que tem de optar entre trazer o sustento para casa ou cuidar de seu filho e mantê-lo a salvo dos perigos da rua. O rap tem a mesma força cultural de outros ritmos e representa o cotidiano da maioria das pessoas que povoam as cidades em busca de uma vida melhor.
Os trovadores cantavam seu tempo, sua terra e seus amores os repentistas empreendem um duelo que varia entre o social e o político

CONCEITO
CORDEL DE OLHO NO CONCEITO
“Cordel”, termo cujo sentido original remonta ao século XV, com o significado de uma corda fina e flexível, só passou a ser dicionarizado no Brasil como gênero literário a partir de 1881, quando foi registrado pela primeira vez no dicionário português Caldas Aulete. À época, era sinônimo de publicação de baixo valor e prestígio, vendida pendurada em cordões na porta de livrarias. Esses “varais” de literatura logo caíram em desuso, mas o nome prevaleceu. A tradição chegou ao Nordeste do Brasil com os colonizadores portugueses e, ao longo dos séculos, adquiriu características próprias. A forma definitiva, com os livretos, tem pouco mais de 100 anos e só foi possível com o uso de antigas prensas de jornal.

CORDEL NA ACADEMIA
DO SERTÃO A SORBONNE
Entre as principais características da literatura de cordel brasileira estão a imensa variedade de temas abordados e a intensa produção. Joseph Maria Luyten, holandês radicado no Brasil, foi um dos primeiros pesquisadores que se arriscaram a fazer tal estimativa. Durante sua trajetória acadêmica, Joseph calculou que os cordelistas nacionais teriam publicado entre 30 e 40 mil livretos e chegou-se a falar em 100 mil títulos. O volume de folhetos foi suficiente para que, nos anos 1970, o brasilianista Raymond Cantel considerasse nosso cordel “um dos gêneros mais importantes, no sentido quantitativo, entre as literaturas populares do mundo”. Autoridade internacional no tema, Cantel aterrissou no país nos anos 1950 para pesquisas de campo, tornou-se um dedicado colecionador das histórias e introduziu seu estudo na Universidade de Sorbonne, em Paris.

*Luzdalva S. Magi, formada em Letras pelo Centro Universitário Fundação Santo André (FSA), é professora de Língua Portuguesa, de Língua Inglesa, de Língua Francesa e suas Literaturas, de Técnicas de Redação e Análise do Discurso e também de Crítica Literária. Trabalha na Rede Particular, Estadual e Municipal da cidade de Santo André, no ABC. Contato:email: dalvamagi@yahoo.com.br, blog: http://sublime-poem.blogspot.com.br

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