segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Resenhando - Um Van Gogh menos louco

UMA DAS MIL FACES Van Gogh (1853-1890) em Autorretrato com chapéu de palha, óleo sobre tela de 1887 (Foto: Van Gogh Museum Amsterdam)"Há algo na maneira como ele fala que leva as pessoas a amá-lo ou a odiá-lo”, escreveu Theo van Gogh, ainda jovem, sobre seu irmão. “Ele não poupa ninguém.” De rosto fino, olhos azuis desconfiados e os cabelos vermelhos como labareda, Vincent, o filho mais velho de seis irmãos, era uma figura estranha na principal família de protestantes da cidade holandesa de Zundert – os Van Goghs. Quieto e retraído, o garoto tinha explosões repentinas. Brigava com a mãe, fugia de casa e preferia ficar só. Era o prenúncio de uma personalidade que se manteria a vida toda, como mostra a biografia Van Gogh: a vida (Companhia das Letras, 1.095 páginas, R$ 79,50), dos escritores americanos Steven Naifeh e Gregory White, lançada agora no Brasil.
Destaque na Europa e nos Estados Unidos desde seu lançamento, em 2011, a obra é fruto de mais de dez anos de pesquisa por milhares de documentos sobre a vida de Van Gogh. Aproveitando-se da obsessão da família por cartas, os autores detalham e lançam luz sobre diversos fatos sobre sua vida e sua morte.
Para eles, a causa pode não ter sido suicídio, como sugere a difundida imagem do artista atormentado. “O mais provável é que a causa da morte tinha sido um disparo acidental”, disse Naifeh a ÉPOCA. Segundo ele, a hipótese tem como base as falhas na teoria original. Ela afirma que Van Gogh atirara no próprio abdome num campo de trigo e depois caminhara por 6,5 quilômetros até a pousada Ravoux, onde se hospedava. “Parece improvável que, ferido, ele tenha andado tanto”, diz Naifeh. Segundo ele, os médicos alegaram que o disparo fora feito à distância, sem uma trajetória direta.

Como a arma do crime e outras evidências nunca foram encontradas, o incidente ficou sem explicação. Diante de um Van Gogh deprimido e sujeito a crises, a hipótese de suicídio cresceu. Mais tarde, com o romance Sede de viver (1934), de Irving Stone, e o filme do mesmo nome (1956), passou a verdade estabelecida.
Os biógrafos contrapõem a essa suposição a criação calvinista de Van Gogh. Sustentam que ele jamais se mataria. Van Gogh referia-se a suicídio como “covardia moral”. A tese deles é que o disparo tenha ocorrido após uma briga entre Van Gogh e René Secrétan, um estudante de 16 anos, a cerca de 1,5 quilômetro da pousada. Secrétan andava disfarçado de caubói e munido de um revólver que usava para caçar, emprestado por Gustave Ravoux, o dono da pousada – o mesmo que espalhou a notícia de suicídio. Ele era conhecido por zombar de Van Gogh, que, bêbado, pode ter reagido.
A teoria é tida como sólida por muitos criminólogos e grande parte da comunidade de história da arte. “É uma interpretação intrigante”, disse a ÉPOCA Leo Jansen, curador do Museu Van Gogh, em Amsterdã. “Mas há muitas questões baseadas em suposição. Seria prematuro desconsiderar suicídio como causa da morte.”
A biografia também busca desmistificar a célebre história do decepamento da orelha de Van Gogh, em 1888. Os autores negam que ele tenha se mutilado para demonstrar amor a uma prostituta que disputava com o pintor francês Paul Gauguin (1848-1903). Segundo eles, a mutilação se consumou devido ao medo da solidão de Van Gogh. Ele se sentia abandonado por Theo, seu irmão e fiel amigo, prestes a se casar. Ao mesmo tempo, via Gauguin, com quem dividia uma casa em Arles, na França, obter sucesso com suas pinturas. Ficava enciumado. Numa briga catastrófica, no Natal daquele ano, Gauguin disse que iria embora da casa. Desesperado, Van Gogh quis se punir e mostrar a Gauguin que estava arrependido. Arrancou a orelha em mais de um golpe, enrolou-a em papéis e foi à procura de Gauguin. Acreditando que ele estava no bordel e não queria atendê-lo, entregou a orelha à prostituta favorita do amigo.
Esses e tantos outros detalhes pessoais ajudam, segundo Naifeh, a compreender a arte de Van Gogh. “Se não entendermos quão difícil foi a vida de Van Gogh – e a automutilação é uma evidência disso –, não podemos entender o triunfo de sua determinação”, diz Naifeh. Em vida, Van Gogh costumava dizer que era impossível dissociar suas obras de sua trajetória. Influenciado pelo romancista francês Émile Zola, fundador da escola naturalista, defendia a “arte de carne e osso”. Nela, os quadros eram tão importantes quanto a vida do pintor. “O que minha arte é, sou também”, escreveu no fim da vida.
Além das descobertas, a principal característica do livro é destacar o extremo sofrimento e as humilhações que Van Gogh teve de superar para produzir sua arte. Suas obras foram rejeitadas e ridicularizadas até os últimos anos de sua vida. Sua mãe uma vez as chamou de “ridículas”. Os outros parentes, à exceção de Theo, o único que permaneceu ao lado de Van Gogh, costumavam esconder as pinturas em sótãos e armários velhos. Eram tidas como “obras de louco”. Para Theo, a principal característica do irmão era ter um “coração fanático”. Pintava e vivia com uma paixão vulcânica. Mais direto, Van Gogh dizia que tudo o que fazia era uma “arte de redenção aos desesperados”. Hoje, 122 anos depois de sua morte, o mundo parece ter se rendido a seu talento – e a seus mistérios. 

Revista Época

Artigo de Opinião - "Apenasmente" Cajazeiras - Eugênio Bucci

As irmãs Cajazeiras entraram para a história da telenovela brasileira em 1973, com O Bem-Amado, uma das criações geniais de Dias Gomes. As Cajazeiras eram três solteironas mal-amadas e reprimidas que andavam emboladas, como um ente mitológico de seis pernas e três cabeças, esgueirando-se pelas calçadas estreitas da fictícia Sucupira. As três, Dorotéia (Ida Gomes), Dulcinéia (Dorinha Durval) e Judicéia (Dirce Migliaccio), perambulavam aos fuxicos íntimos, praguejando contra os outros personagens e declarando seu amor ardente, louco e platônico (que depois enveredaria pelas vias de fato) ao “coroné” que mandava na prefeitura, o impagável Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo). Elas bem que remoíam seus ressentimentos contra os desmandos de Odorico – desmandos amorosos, inclusive – mas, fiéis como cachorras, não o criticavam publicamente. Jamais.
Agora, o espírito desgarrado das irmãs Cajazeiras parece querer sair da história da telenovela e ingressar na história do Brasil real. Os adoradores e as adoradoras que circundam a aura de Luiz Inácio Lula da Silva, como guardadores de uma imagem estacionada no meio-fio da política, carregam em silêncio eventuais dores e dissabores. Nunca ousam expressar em público uma letra, uma vírgula de discordância, mesmo que num discreto e mudo repuxar de sobrancelhas. A lealdade irracional e fervorosa desses (e dessas) tomadores (e tomadoras) de conta não cede. Todos e todas, possuídos e possuídas por sua devoção incondicional, numa idolatria que arrebata ateus e crédulos indistintamente, não deixam que se veja em seu ídolo um único lapso de um único desvio. O cenário é francamente grotesco. Blindaram Lula a tal ponto que o ex-presidente começa a lembrar, inadvertidamente, a figura caricata do bem-amado de Dias Gomes. Como um Odorico involuntário, cercado de elegias e apologias tão fanatizantes quanto patéticas, vê-se prisioneiro do culto de si mesmo. Tão refém que não tem o que dizer. Ou: não tem como dizer o que deveria dizer.
De tudo o que vem explodindo em matéria de escândalos que arranham ou evisceram a reputação do PT e do governo federal, de mensalão a Rosemary, o que mais chama a atenção é exatamente isso: ninguém, ou quase ninguém, virtualmente ninguém no campo do lulismo esboça uma crítica aberta e de boa-fé. No máximo, quando muito, um ou outro considera que seria positivo se o supremo guia se pronunciasse, quem sabe?, mas ninguém parte para o debate franco, destemido, verdadeiro, em público. É como se, aos olhos da nova religião dos idólatras, a opinião pública fosse território inimigo. É como se, fora das hostes do partido, ninguém mais tivesse direito à verdade.
O cajazeirismo vai se impondo como a doença senil do lulismo. Figuras públicas até outro dia respeitáveis por seu espírito livre e por sua inteligência ferina vão se rendendo ao silêncio que faz corar os mais ferrenhos adversários. Seria cômico se não fosse melancólico.
O Odorico da ficção errava na ética e na gramática (era dado a expressões como “talqualmente” e “emborasmente”, além de “apenasmente”, evidentemente), mas tudo na maior empáfia, com empolação e galanteios. Demagogo e autoritário (pois servia de sátira contra o regime militar), fazia da pose o critério da verdade e da moral. Quando precisava acobertar suas trapalhadas, tinha até um assessor de nome Dirceu, o Dirceuzinho Borboleta, borboleteante demais para se prestar a qualquer semelhança com personagens dos tempos presentes. Odorico, em dupla com Dirceu Borboleta, encarnava a esculhambação em feitio de realismo fantástico. Bendita esculhambação. Desclassificado e vaidoso, demagogo e ignaro, fez muito bem aos telespectadores dos anos 1970: ajudou-os a rir dos opressores.
Agora, a cena é distinta. Não há mais ditadura militar no país. Hoje, a assombração de Odorico retorna para zombar não mais de um tirano, mas de um formidável expoente do período democrático, sequestrado pelo culto à personalidade. O Lula real é muito, mas muito superior à adulação alienante que o sufoca. De líder metalúrgico a presidente da República, deixou uma obra que, em grande parte, orgulha todos os brasileiros. Teria tudo para enfrentar com grandeza as denúncias que dele se aproximam, sobretudo as mais recentes. Em vez disso, prefere se refugiar no mito de si próprio, um mito que, convenhamos, além de precocemente instalado, é oco.
Lula, abduzido pelo cajazeirismo, dá sinais de fraqueza. Quanto às irmãs Cajazeiras, que fizeram o Brasil se dobrar de rir, talvez ainda façam o PT chorar. 

Revista Época

Entrevista - Andrew Solomon - " É SOLITÁRIO LIDAR COM UM PRODÍGIO OU COM UM FILHO COM DOWN"

VALOR NA DIFERENÇA O escritor Andrew Solomon em sua casa, em Nova York. Ele diz que a experiência de ter um filho diferente ajuda os pais a crescer (Foto: divulgação Annie Leibovitz/AP)Ter um filho é um dos grandes projetos, se não o maior, de um casal. Sonhos e planos nascem com o resultado positivo do teste de gravidez. Mas não para todos os pais. Para alguns, é difícil lembrar o que ocorreu e pensar no que acontecerá. Vivem um dia de cada vez. Em Far from the tree (Longe da árvore, em tradução livre), o escritor americano Andrew Solomon mostra a vida de famílias cujas crianças são muito diferentes de seus pais. Numa analogia com o título do livro, são frutos que caíram bem longe da árvore que os concebeu. Solomon afirma que as famílias com crianças prodígios ou com problemas de surdez, com síndrome de Down ou homossexuais passam por dramas similares. Ele diz que qualquer família pode aprender com essas experiências incomuns. O livro está na lista dos dez melhores publicados em 2012 do jornal The New York Times. Solomon falou a ÉPOCA sobre a pesquisa que fez, durante dez anos, com 300 famílias e sobre sua própria experiência. Ele se percebeu homossexual ainda criança, numa família conservadora americana. Hoje é casado, tem dois filhos biológicos e dois de seu companheiro. “Já me senti como um anão e como um surdo, como alguém visto com uma anomalia.”
ÉPOCA – Em seu livro, o senhor diz que ter um filho criminoso, surdo, autista ou transexual representa um desafio parecido para os pais. Por quê?
Andrew Solomon –
Esses pais estão embarcando num novo tipo de vida, completamente diferente da que conhecem. No livro, escolhi casos extremos de pais que lutaram e ficaram com os filhos diferentes deles para iluminar pessoas que não enfrentam esse tipo de situação. Sou homossexual. Nas décadas de 1960 e 1970, ser gay era um infortúnio. Eu me sentia incomodado, porque achava que isso era ruim para minha família. Até digo no livro que, às vezes, me sentia como um surdo, como um anão. Levou um bom tempo para me sentir confortável comigo mesmo. Ser gay era uma doença. Hoje, é uma identidade. Essa é uma das discussões centrais do livro. Você pode definir tudo como uma identidade ou um problema. Acredito que há muitos outros casos em que a condição da criança possa ser vista como uma maneira de ser, e não como uma falha.
ÉPOCA – O livro trata de filhos com surdez, nanismo, síndrome de Down, autismo, esquizofrenia, deficiências, além daqueles que são prodígios, resultados de estupro, criminosos e transexuais. Como o senhor escolheu as famílias que pesquisaria?
Solomon –
Tentei escolher aquelas que tivessem diferentes questões que pudessem ser investigadas. Na síndrome de Down, é possível fazer um teste para ter o diagnóstico. Aí surge a discussão sobre o aborto. No caso dos filhos que nascem do estupro, o desafio é amar essa criança. Essas experiências parecem difusas, mas são muito parecidas em alguns aspectos.
ÉPOCA – No livro, o senhor diz que alguns pais não queriam que seus filhos prodígios fossem comparados a outros com síndrome de Down ou com uma limitação física. Por quê? Era por preconceito?
Solomon –
Não foi preconceito o que apareceu. As famílias que acompanhei tratam com muito respeito as características das outras crianças. O protesto ocorreu porque existe uma tendência universal de supor que, qualquer que seja sua condição, ela é tão específica que só alguém que passa pela mesma situação é capaz de entender. Minha experiência em dez anos de trabalho mostrou que todas essas situações têm muito em comum. Que pode ser igualmente solitário lidar com um prodígio e com uma criança com Down.

ÉPOCA – O impacto de curto e médio prazo pode ser parecido. Mas há características dos filhos que terão um efeito totalmente diferente na vida dos pais. Uma criança com Down será dependente sempre. Um homossexual construirá sua vida normalmente quando adulto.
Solomon –
Sim. Algumas crianças serão muito dependentes, outras não. Por isso, classifiquei essas vivências em gradações de dificuldade: difícil, muito difícil e terrível. Discuto uma identidade por capítulo no livro. Mostro em que se assemelham e no que se distinguem.
ÉPOCA – Que situações comuns os pais dessas crianças vivem?
Solomon –
No início, respondem com choque e um pouco de horror. Depois, se arrependem e arquitetam como viverão. É um processo complexo e dinâmico, com angústia e dor. Se você passa a vida toda pensando em quão doloroso será, viver será difícil. A meu ver, seria melhor se as famílias pensassem em estágios, para fazer uma coisa por vez. É possível usar o pragmatismo também. Você tem de escolher a melhor educação, médico, tratamento ou o que quer que seja. É desafiador. Não há dúvida de que é custoso, estressante e sofrido, mesmo para quem tem acesso a bons serviços. Os pais experimentam depressão e estresse. Os casamentos fortes se fortalecerão, e os fracos podem não suportar passar por isso.
ÉPOCA – Há famílias que não suportam conviver com a realidade que uma criança diferente traz. Como fica a cabeça de quem não conseguiu lidar com isso?
Solomon –
Há casos terríveis de pais que abandonam ou chegam a matar seus filhos. Cito esses casos para mostrar como pode ser difícil acolher essas diferenças. Escolhi acompanhar as famílias que conseguiram equacionar essa realidade, mesmo com muita dor, como no caso dos casamentos desfeitos. Meu objetivo foi observar como eles se adaptaram para viver bem, amar e construir uma forma de ser feliz sem idealizações.
>> Cristiane Segatto: Romário na boca do gol 

ÉPOCA – O senhor diz que a maneira como cada família é afetada depende de como lida com a condição do filho. O que seria melhor para pais e filhos?
Solomon –
Os pais têm de aceitar a situação, sem culpa. Há os que se culpam por ter filhos com problemas, os que culpam os outros e os que culpam a criança. A culpa não é um sentimento produtivo. Não prepara ninguém. A questão é lidar com a realidade que se tem. É importante dizer para si mesmo: não escolhi ter uma criança com essa condição, mas há aprendizado e recompensas. Os pais que passam por isso dizem amar o filho pelo que é. Não imaginam a vida sem ele. Se você está lidando com essa experiência, tente encontrar famílias que estejam passando pelo mesmo problema e outras que lidam com outras dificuldades. Isso fará você perceber que não está sozinho e lhe dará força.
ÉPOCA – O que é mais devastador para essas famílias?
Solomon –
Ver o filho sofrer, seja por uma dor física, emocional ou por ser diferente dos demais. Há situações em que os pais chegam a ser julgados (ou sentem-se dessa forma) como maus pais. Não culpamos pais por ter um filho com deformidade ou esquizofrenia, como fazemos com os que têm filhos criminosos. Recebo inúmeras cartas de pais de criminosos dizendo que se sentem isolados e que não conseguem lidar com a situação. Isso é muito parecido com o que pais de crianças com Down ou autismo enfrentam.
ÉPOCA – Quando você teve seu segundo filho biológico, George, houve a suspeita de que ele tivesse dificuldades para andar (hoje, George tem 3,5 anos e anda normalmente). Como foi essa situação?
Solomon –
Pensei em meu filho, em quanta dor ele poderia sentir. Preocupei-me com minha vida, em como lidaria com tudo isso. Conhecer esses pais me ajudou a ter muita tranquilidade. Pensei que estava tudo bem. Sabia que, se precisasse de um cuidado especial, seria capaz de organizar meus pensamentos e trabalhar para dar o melhor a ele. Essas histórias podem me ajudar a ser um pai mais generoso e a ser o melhor pai que posso ser. É o que espero, não sei se conseguirei.
ÉPOCA – A superproteção é comum?
Solomon –
Crianças com essas condições precisam de mais proteção. Mas é importante estimular a independência. Seu filho está sempre com você, mas ele precisa aprender a viver sem você também. Em parte porque não somos eternos, e a independência é importante para o desenvolvimento dele.
ÉPOCA – Ter filhos é pensar constantemente no futuro. Como são as expectativas desses pais?
Solomon –
Não esqueço o que uma mãe me disse: “Não lembro como sou velha porque meu filho não muda.” Outra mãe falou: “Bloqueei minha memória e não penso no futuro”. Apesar disso, acredito que esses pais estão, a todo momento, pensando no futuro. Eles envelhecerão, e o que acontecerá com os filhos? Muitas das condições de que falo no livro podem melhorar com o tempo, mas esses pais não podem imaginar um futuro em que essas crianças cuidarão deles. O futuro sempre será eles cuidando dessas crianças, definitivamente. Todos os pais pensam sobre isso e, de alguma maneira, se organizam. É importante que os pais estimulem a independência. Se acontecer alguma coisa com os pais, a criança não precisará aprender por ela mesma a se virar. Perder um pai é difícil para qualquer um. Mas esses pais precisam se preparar para que a transição seja o menos traumática possível.
ÉPOCA – O que é a felicidade para esses pais?
Solomon –
A felicidade que experimentam é um pouco diferente daquela a que estamos acostumados. Um pai me disse algo incrível enquanto o filho autista colocava as louças na máquina de lavar. “O orgulho que sinto de meu filho é o mesmo de um pai com um filho que se graduou na faculdade.” Perguntei para uma mãe: “Se você pudesse realizar apenas um desejo de seu filho, qual seria?”. Ela me disse: “Vou me sentir vitoriosa se criar um filho capaz de ser feliz”.
REvista Época

Crônica do Dia - Paranoia profissional - Walcyr Carrasco

Minha próxima novela tem como pano de fundo um hospital. Por estar em início de produção, a trama não foi divulgada à imprensa. Alguns colunistas publicam informações sobre trama e elenco. Muitas falsas. Para minha surpresa, dia desses entrei no Twitter e havia um vendaval de mensagens irritadas. Todas de enfermeiras. Uma delas deixou bem uns 20 recados, lembrando que a classe é “injustiçada” e que “falar mal” as prejudicaria mais ainda. Finalmente, fui procurado por uma pessoa do Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro, me convidando a conhecer melhor a página deles na internet e, consequentemente, as questões profissionais da categoria. Só que tem um detalhe: minha novela não fala sobre erros de enfermagem. Tentei descobrir o que provocou tal reação. Aparentemente, uma coluna de televisão – não sei qual – inventou a informação. De onde tirou essa ideia? Lembrei que, nos testes realizados em São Paulo com atores iniciantes, havia, em tom de humor negro, uma discussão sobre um erro médico entre dois médicos recém-formados. Atenção: dois médicos, não enfermeiros! Só podem ter inventado a nota a partir disso, embora seja sabido que, em teste desse tipo, não se usam textos originais da novela. Veio a reação, sem que ninguém, nem mesmo os representantes da categoria, tenha me ligado para perguntar se era verdade ou mentira. Ficaram na reação emocional.

Mas aí vem a outra pergunta, mais séria. E se a novela realmente falasse do erro de uma enfermeira? E daí? Em todas as profissões há profissionais bons e ruins. Neste ano, o país ficou estarrecido quando uma auxiliar de enfermagem, num hospital da Baixada Fluminense, injetou café com leite na veia de uma idosa, que morreu. Sim, era apenas uma auxiliar. Mas e a enfermeira que deveria supervisionar seu desempenho? Em Curitiba, também neste ano, uma paciente com doença degenerativa morreu quando a enfermeira desligou por engano o aparelho que a mantinha respirando. Há histórias mais tétricas. O enfermeiro Stephan Letter, de 28 anos, foi condenado à prisão perpétua em 2006 por matar 28 pacientes, na Baviera, Alemanha. Dois uruguaios competiam entre si para ver qual matava mais. Desmascarados neste ano, um admitiu 50 mortes, outro disse que perdeu a conta. Se eu quiser criar uma história a partir de um desses personagens, não posso, porque as enfermeiras ficarão nervosas?

Mais exatamente, uma história dessas denigre a profissão? De jeito nenhum. São casos específicos, lamentáveis, tanto de pessoas mal preparadas no caso de erros como de desequilíbrio mental nos outros. O grande contingente de enfermeiros e enfermeiras, no mundo todo, cumpre suas funções. Muitos desenvolvem relações de carinho e proteção que ajudam o paciente a se recuperar. Um personagem de ficção é simplesmente isso – de ficção. Ainda bem que os advogados não agem assim. Há uma avalanche de livros, filmes e séries de televisão, no mundo inteiro, com advogados corruptos, safados – mas também heroicos. Alguém duvida da categoria por causa disso? Advogados entendem que a ficção só respira com liberdade. E que uma categoria profissional não pode exigir que só se fale bem dela. Por que os profissionais da enfermagem têm tanta dificuldade em conviver com a liberdade de expressão?

Já passei por isso antes. Em minha novela Morde & assopra, um personagem usava os serviços de um fisioterapeuta. No diálogo, expliquei que ele conhecia técnicas de fisioterapia. Sem dizer que era um fisioterapeuta, pois não se tratava de um, mas de um massagista que também fazia do-in etc. Abarrotaram meu Twitter, Facebook e caixa de e-mails de mensagens furiosas. Foi um surto de paranoia profissional. Acusavam-me de prejudicá-los, já que não eram técnicos, mas profissionais de nível universitário. Iniciaram uma cruzada contra mim. O órgão da categoria protestou, em artigo. Enviaram cartas à emissora. Eu não via problema em esclarecer. Mas a novela é gravada com semanas de antecedência. Enquanto a explicação não entrou no ar, houve até ameaças. Uma fisioterapeuta chegou a desejar que eu tivesse um problema, para cair nas mãos de um profissional que me deixasse torto. Só me faltava cair nas mãos de uma fisioterapeuta sádica!

Espero não ficar doente tão cedo. E se cair nas mãos de uma enfermeira irritadíssima com o que supostamente farei na novela, que queira vingar a categoria na hora de me aplicar uma injeção?

Revista Época

domingo, 23 de dezembro de 2012

Lamentando .....

Rio de Janeiro - O poeta e escritor alagoano Lêdo Ivo morreu na madrugada de hoje (23), aos 88 anos, de infarto. Ele era membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 1987, quando assumiu a cadeira número 10, sucedendo Orígenes Lessa, e um premiado autor de romances, crônicas e poesias.
Segundo a Academia Brasileira de Letras, Lêdo Ivo estava em Sevilha, em companhia do filho, o artista plástico Gonçalo Ivo, quando passou mal e morreu.
Lêdo Ivo nasceu em Maceió, em 18 de fevereiro de 1924, e começou sua carreira literária em 1944, publicando um livro de poesia chamado As Imaginações. Em seu segundo livro, Ode e Elegia, recebeu o Prêmio Olavo Bilac, da ABL.
Seu romance de estreia, As Alianças, publicado em 1947, também foi premiado como o melhor romance, pela Fundação Graça Aranha. Em sua longa carreira literária, publicou dezenas de livros, e teve sua obra traduzida para idiomas como o espanhol, inglês, francês, italiano, dinamarquês e holandês. O último deles foi O Vento do Mar, uma antologia de poesias publicada em 2010 pela editora Contra Capa.



Edição: Graça Adjuto
Agência Brasil - Todos os direitos reservados.

Você já está sabendo ? - Qual será o futuro dos sebos ?

Chegada da Amazon ao Brasil coloca em xeque as livrarias de segunda mão


Seu José Germano repete a mesma rotina há 60 anos. Chega às 6h30min em seu sebo e vai embora apenas às 19h. Depois de ter sido faxineiro, entregador e atendente, ele é o atual e único dono da tradicionalíssima Livraria São José, no Centro. Mas o alfarrábio não está mais na Rua São José, onde já teve até quatro pontos diferentes. O novo endereço, após passar pela Rua do Carmo e a Praça Tiradentes, é a Avenida Primeiro de Março 37. Teve que se mudar para sobreviver.

— A livraria está acabando por conta do livro digital. Principalmente os sebos. Porque eu vendo livro velho e não existe livro digital velho, não é? — argumenta ele que, aos 74 anos, se rendeu, ao menos, à venda pela internet. — Não temos mais aquela clientela que tínhamos nas décadas de 1970, de 1980. Há 20 anos, se alguém me oferecesse uma biblioteca de 5 mil, eu não pensava duas vezes. Hoje, não sei.


Sob ameaça dos leitores digitais

O livreiro da São José é apenas uma das pontas desse intrincado negócio de compra e venda de livros usados. Ele representa o perfil mais tradicional, com a loja com corredores longos, clientes de longa data, iluminação menos potente, estantes empoeiradas e edições antigas. Mas Germano não é o único tipo de livreiro que está tendo que se adaptar a uma nova realidade em que o digital se torna cada vez mais comum, principalmente com a chegada iminente da gigante do comércio eletrônico Amazon ao Brasil. Essas lojas especializadas em obras de segunda mão vão sobreviver após a colisão desse asteroide?

— Sinceramente não sei como um sebo se reinventaria como loja física — diz Camila Cabete, gerente de Publisher Relations da Kobo, o leitor digital que lançará uma loja no Brasil até o fim do ano, em parceria com a Livraria Cultura. — Eu continuarei usando sebos. Porém, não sei como se comportarão os nativos digitais.

O caminho restrito ao comércio online é a opção de alguns livreiros de longa tradição física para tentar evitar a fossilização. É o “exército de um homem só”, argumenta Marcelo Latcher. Ele já participou direta e indiretamente da criação de dezenas de lojas. Hoje, mantém apenas a Gracilianos do Ramo, mas só virtualmente.

— Sebo tem os seus dias contados, mas ainda é possível ganhar muito dinheiro na decadência — disparou Latcher, que faz parte de uma geração de livreiros mais jovem que a de Germano. — No futuro, o livro será comprado em um antiquário. Vai ser algo chique. Mas isso não me incomoda em absoluto.

Uma vez que se optou pela internet, o principal caminho adotado no Brasil tem sido a Estante Virtual. Segundo o criador do site, André Garcia, 97% das transações de livros usados na internet brasileira acontece sob o domínio da sua empresa. Garcia, ainda mais jovem que Latcher, não tem qualquer receio das transformações, e diz não ter visto qualquer impacto do livro digital: “fez cócegas no mercado nacional”.

— O e-reader vai continuar seguindo como parcela minoritária do mercado aqui — aposta ele, que disse estar preparado para enfrentar a Amazon, caso ela também venda livros de segunda mão no mercado nacional, como faz nos Estados Unidos e em outros países como França e Reino Unido.

De toda forma, ele é outro que não quer ficar parado e já planeja explorar outras áreas, inclusive a obra eletrônica. — Mas em uma competição, o livro físico ganha dos e-books nesse nicho exatamente por sua materialidade.

Nem toda livraria de usados aposta unicamente na venda on-line, entretanto. Maurício Gouveia, um dos donos da Baratos da Ribeiro, de Copacabana, cadastra apenas um percentual pequeno do acervo, por conta do alto custo de implementação e a baixa vendagem pelo meio.

— Nosso cliente não é o cara que procura o livro X ou Y. Nosso cliente é o cara o que aparece para saber se pintou algo de novo, que gosta de bater papo, dar uma passadinha — explica ele, que acredita que o aluguel no Rio de Janeiro é um problema muito maior que a Amazon.

Livreira aposta em convivência pacífica

Tendo experiência de quase 30 anos nas livrarias "tradicionais", Graça Neiva, do Luzes da Cidade, em Botafogo, sugere que nos sebos sempre se pode encontrar surpresas. Já as que vendem obras novas estão homogeneizadas.

— Dizem os mais velhos que a TV era uma ameaça ao cinema. E, apesar de ter diminuído de tamanho, a indústria do cinema não vai tão mal assim. No livro, vai ter que ter acomodação — conta ela que, há anos, quando o assunto livro digital começou a aparecer no Brasil, colocou uma placa, em tom de brincadeira, anunciando que eles estavam comprando Kindles, o leitor digital da Amazon. — Já tinha gente querendo passar o Kindle antigo!

Entre livreiros à moda antiga e outros conectados, fica o mais interessado no assunto, o leitor. Bibliófilo, além de poeta, professor e acadêmico, Antonio Carlos Secchin é autor do "Guia de sebos" que, apesar de estar na quinta edição, ele acredita que já nasce obsoleto. A razão? O crescimento dos sebos virtuais.

— Mas como todo mundo pode se autodenominar livreiro, há uma série de informações erradas circulando pela internet, que eu nem acho que seja de má-fé. Como quando se anuncia um título e é outro. O colecionador que está em busca de uma edição específica, acaba tendo que tomar bastante cuidado.

Contudo, Secchin não acredita que o principal movimento dos sebos seja da busca de uma obra rara. Para ele, o que faz o caixa das livrarias de segunda mão é o best-seller. E aí, o livro digital poderia se tornar um problema.

— Enquanto o livro no sebo for mais barato, vai ter público. Agora é esperar para saber quando o livro digital vai ficar mais barato.

Te Contei, não ? -- DELIRIOS DE UMA ERA DE SOMBRAS

Documentos inéditos mostram como os serviços de espionagem das ditaduras transformaram escritores de esquerda em elementos de alta periculosidade, que estariam conspirando contra o regime dentro e fora do Brasil
Sempre que uma ditadura se instala, intelectuais e artistas automaticamente entram para a lista de figuras suspeitas e se tomam alvo de vigilância e perseguição, aberta ou velada, por sua capacidade de influenciar o público com ideias contrárias ao regime. Não foi diferente no Brasil, que atravessou dois períodos ditatoriais no passado recente - o Estado Novo, entre 1937 e 1945, e os governos militares, de 1964 a 1985. Mas, até recentemente, muitos detalhes desse cerco àqueles que se supunha estarem ligados à subversão continuavam encobertos pelo sigilo oficial. Uma história que, com a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação, em maio passado, começa a vir à luz. Durante semanas, VEJA se debruçou sobre um calhamaço de documentos até então inéditos, que se referiam justamente aos escritores "marginados" - assim chamados pela polícia política porque seus nomes eram sempre grafados na margem das fichas que lhes diziam respeito.
Guardado desde a década de 30 no Arquivo Nacional e no Arquivo do Estado do Rio, o conjunto de papéis revela que, por cinco décadas, nomes como Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto e Rubem Braga tiveram a vida íntima e a trajetória profissional esquadrinhadas não só pelas duas ditaduras, mas também pelos governos eleitos entre elas. Informações provenientes de correspondências violadas e de agentes infiltrados alimentaram relatos infundados, e por vezes até delirantes, sobre o grau de periculosidade desses intelectuais - que, sim, eram de esquerda, mas não estavam engajados em atos subversivos. A rede de monitoramento se estendia da Delegacia de Segurança Política e Social, criada no Estado Novo de Getúlio Vargas e extinta alguns anos depois, ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Polícia Federal, e contava com quadros do Itamaraty para vigiar de perto os passos dos suspeitos fora do país. A criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), no regime militar, agregou a esse aparato os órgãos de inteligência das três armas, agentes infiltrados em instituições públicas e privadas e ainda o serviço de censura. "Apesar de fantasiosas, essas informações muitas vezes serviam como prova em 8 processos contra os escritores", diz o historiador Álvaro Andreucci. A seguir, a história contada segundo a ótica dos espiões oficiais.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
Período era que foi investigado: Estado Novo, governo Dutra e ditadura militar.
O que já se sabe: foi funcionário do Ministério da Educação e Saúde no Estado Novo. Deixou o cargo e se aliou aos comunistas, tomando-se um dos diretores do jornal do partido, Tribuna Popular. Meses depois, rompeu com o grupo, afastou-se da militância, voltou ao serviço público e nele permaneceu até se aposentar.
O que os arquivos revelam: no Estado Novo, mesmo trabalhando num ministério, Drummond (na foto, em seu gabinete) era monitorado de perto. Em um documento reservado, aparece como colaborador de uma revista comunista vigiada pela polícia. No fim do governo Vargas, o Partido Comunista o lançou candidato a deputado federal, à sua revelia- Drummond registrou em diário ter recebido o convite, mas não aceitou. Mesmo assim, os arquivos mostram que a vigilância se intensificou, com novas e criativas denúncias. A ficha do escritor informa que, em 1948, ele era funcionário da Companhia Siderúrgica Nacional (nunca foi) e ali fazia discursos comunistas (o que nunca aconteceu).
Na eleição de 1955, Drummond é descrito como "um dos chefes da propaganda do Sr. Kubitschek". Pois ele não só não fez campanha para Juscelino como votou em seu adversário, Juarez Távora. Em 1974, o SNI tentou provar que ele integrava um "núcleo de subversão" dentro da Fundação Getúlio Vargas, onde fora convidado para ser paraninfo de uma turma. Em 1979, um relato registra que o poeta visitou na cadeia Alex Polari, um dos sequestradores do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. Polari diz que nunca recebeu essa visita.
João Cabral de Melo Neto (1920-1999)
Período em que foi investigado: Estado Novo, governo Dutra segundo governo Vargas e ditadura militar.
O que já se sabe: funcionário do Itamaraty, foi afastado por quase dois anos, em 1953, sob a acusação de envolvimento com atividades comunistas, mas acabou absolvido. Declarava-se de esquerda, mas nunca participou de movimentos políticos.
O que os arquivos revelam: o afastamento do Itamaraty não foi um ato isolado. Entre 1940 e 1970, João Cabral foi alvo de cinco investigações que buscavam confirmar acusações de subversão e comunismo — algumas grotescas. Em 1945, em carta à futura mulher, Stella, que morava no Paraguai, usou duas siglas interpretadas como código secreto de espionagem, em plena II Guerra Mundial. Interrogado, esclareceu que G.D.M. queria dizer "gosta de mim?" e M J.G.V. era "mas eu já gosto de você". Quando ele trabalhava no Ministério da Agricultura, em 1961, sua ficha de dezesseis páginas datilografadas dizia: "Informações seguras através de fonte absolutamente idônea revelam que elementos reconhecidamente comunistas, em posições de influência estão agindo livremente no ministério (...), sendo o marginado um dos mais destacados". Nada se comprovou, mas o escritor teve de prestar seguidas explicações. A última investigação é de 1983, quando ele chefiava a embaixada no Equador. Afirma o documento secreto: "O embaixador faz uso constante de aspirina para combater persistente dor de cabeça e tem exagerado na ingestão de bebidas alcoólicas". João Cabral ficou no cargo até a aposentadoria, em 1990.
Jorge Amado (1912-2001)
Período em que foi investigado: Estado Novo, governo Dutra, segundo governo Vargas e ditadura militar.
O que já se sabe; foi preso duas vezes durante a ditadura de Vargas e teve livros queimados em praça pública. Deputado pelo Partido Comunista, foi cassado em 1948. Escreveu apologias dá esquerda, mas, em 1956, afastou-se do PC e da militância política.
O que arquivos revelam: a polícia política tinha convicção de que Jorge Amado participava de uma ampla conspiração quando, em 1948, o PC foi posto na ilegalidade e ele, cassado, partiu para o exílio voluntário na Europa. Um documento reservado diz:
"O senhor Jorge Amado vai articular-se com os elementos que, sob os auspícios diretos do Kremlin, supervisionarão a ofensiva russa na América do Sul e estimularão a quinta-coluna vermelha, dentro dos planos revolucionários do governo russo". Um mês depois, sua casa no Rio de Janeiro foi revistada por agentes, que levaram parte do seu Arquivo. Até hoje, nem a família sabia do paradeiro do material apreendido, que repousa no Arquivo do Estado do Rio; Entre os papeis, há correspondência privada dois originais datilografados com correções a caneta: o esboço de uma peça de teatro e o primeiro roteiro do filme Estrela da Manhã, lançado em versão definitiva em 1950.
Rubem Braga (1913-1990)
Período em que foi investigado: Estado Novo e ditadura militar.
O que já se sabe: foi preso duas vezes no Estado Novo por suas crônicas contra o regime. Era casado com a militante comunista Zora Seljan, mas nunca se ligou ao partido. Aproximou-se dos militares na II Guerra Mundial, quando cobriu como jornalista as atividades da Força Expedicionária Brasileira na Itália.
O que os arquivos revelam: o escritor foi alvo de um pedido de punição inédito, protocolado por um ex-companheiro da FEB, o general Andrade Serpa. Em janeiro de 1969, ao ser interrogado pelo general, Braga repetiu o que sempre escrevia em suas crônicas: "Acha a falta de liberdade de imprensa, como se verifica atualmente, um erro(...) Discorda dos atos institucionais e das violências praticadas em nome da revolução". Foi embora certo de ter esclarecido sua posição, mas os arquivos mostram que estava enganado. O general Serpa encaminhou um processo ao Conselho de Segurança Nacional, pedindo a cassação de seus direitos políticos por dez anos e a proibição de exercer a atividade de cronista. "A ação do marginado necessita de urgentes medidas de resguardo da dignidade militar e do próprio Governo. Seus escritos fazem parte da campanha permanente em prol da mudança do regime atual para o marxismo-socialismo", diz o relatório. O documento foi enviado ao ministro da Justiça e chegou às mãos do então secretário-geral do Conselho, João Baptista Figueiredo, que não deu segmento ao caso.

Revista Veja

Te Contei, não ? - O FACEBOOK DOS CIENTISTAS

Editora GloboQuando fazia doutorado, o virologista alemão Ijad Madisch não tinha com quem discutir sobre sua pesquisa. Simplesmente não conhecia ninguém envolvido no mesmo tipo de estudo. Foi então que teve a ideia de uma rede social para cientistas. O ResearchGate.com combina recursos do LinkedIn, Twitter e Facebook, com posts, ofertas de empregos, comentários e botão curtir. Mas os temas passam longe de celebridades e festas. Ali se fala de polímeros, testes de DNA e estruturas de vírus. O site já conquistou 1,5 milhão de pesquisadores, cerca de 45 mil do Brasil, e tornou-se um dos principais símbolos da ciência open source, em que teses e experimentos são debatidos de forma colaborativa. “Quero fazer uma ciência mais aberta”, diz Madisch. “O pesquisador solitário está sendo substituído por alguém ligado a pessoas do mundo inteiro.”

De fato, a ciência colaborativa parece ser um fenômeno. Em janeiro, a 6ª edição da conferência Science Online juntou 450 cientistas e jornalistas na Universidade da Carolina do Norte, EUA, além de milhares de participantes online, para discutir os rumos da pesquisa científica com as transformações vindas com a internet.

Uma das principais mudanças é que os pesquisadores não dependem mais das tradicionais revistas do ramo para compartilhar estudos. Eles escrevem em blogs e participam de sites colaborativos, além de contribuir para enciclopédias como a Wikipedia. “Com isso, o dia a dia da ciência vai mudar dramaticamente nas próximas décadas”, diz Michael Nielsen, físico teórico e autor do novo livro Reinventing Discovery: The New Era of Networked Science (Reinventando a Descoberta: A Nova Era da Ciência em Rede, ainda não publicado no Brasil). Confira ao lado algumas páginas de web para debate científico.
PESQUISA OPEN SOURCE
Conheça outros sites feitos por e para estudiosos
MATHOVERFLOW E THE POLYMATH BLOG > Nos dois sites, matemáticos colaboram com a solução de problemas. São ao mesmo tempo um blog colaborativo e uma comunidade de pesquisadores.

PUBLIC LIBRARY OF SCIENCE > Biblioteca online que reúne trabalhos de cientistas que aceitam compartilhar seus artigos livremente. Já atraiu nomes famosos, como o prêmio Nobel de Medicina de 1989 Harold Varmus.

ARXIV > Banco de dados especializado em artigos ainda não publicados nas revistas científicas tradicionais. Na matemática e na física, virou tradição enviar os trabalhos para o Arxiv assim que ficam prontos.

Te Contei, não ? - A revolução do pós - papel

A transição para a era digital é a mais radical transformação da nossa história intelectual desde a invenção do alfabeto grego. Sim, o momento é histórico: há mudanças profundas na leitura, na escrita - e talvez até dentro do cérebro humano.
 
Leia o que conta a revista Veja sobre o assunto
 
Sócrates. o homem mais sábio de todos os tempos, estava enganado. Com a genial in­venção das vogais no alfabeto grego, a escrita estava se dis­seminando pela Grécia antiga - e Sócrares temia um desastre. Apre­ciador da linguagem oral, achava que só o diálogo, a retórica, o discurso, só a pa­lavra falada estimulava o questionamen­to e a memória, os únicos caminhos que conduziam ao conhecimento profundo, à sabedoria. Temia que os jovens atenien­ses, com o recurso fácil da escrita e da leitura, deixassem de exercitar a memó­ria e, como a palavra escrita não fala, perdessem o hábito de questionar. Sua mais conhecida diatribe contra a escrita está em Fedro, de Platão, seu fiel segui­dor. Ali, Sócrates diz que a escrita daria aos discípulos "não a verdade, mas a aparência de verdade". O grande filósofo intuiu que a transição da linguagem oral para a escrita seria uma revolução. Foi mesmo, só que numa direção promisso­ra. Permitiu o mais esplêndido salto inte­lectual da civilização ocidental.
Agora, 2500 anos depois, estamos às voltas com outra transição revolucio­nária. Da cultura escrita para a digital, há uma mudança de fundamento como não ocorre há milênios. A forma física que o texto adquire num papiro de 3000 anos antes de Cristo ou numa folha de papel da semana passada não é essen­cialmente distinta. Nos dois casos, exis­tem enormes diferenças de qualidade e clareza, mas é sempre tinta sobre uma superfície maleável. Na era digital, a mudança é radical. O livro eletrônico oferece uma experiência visual e tátil inteiramente diversa. É uma outra for­ma. Como diz o francês Roger Chartier, professor do College de France e espe­cialista na história do livro, "a forma afeta o conteúdo". A era digital, sustenta ele, nos fará desenvolver uma nova rela­ção com a palavra escrita. Para a neuro­cientista Maryanne Wolf, amora de Prousr e a Lula, um livraço sobre o im­pacto da leitura no cérebro, o momento atual é tão singular quanto o da Grecia: "Como os gregos antigos, vivemos uma transição dramaticamente importante ­ no nosso caso, de uma cultura escrita para uma cultura mais digital e visual".
Há séculos que. depois da argila, do papiro e do pergaminho, a humanidade transmite conhecimento no papel. Dos livros manuscritos pelos monges me­dievais à página enviada por fax, era sempre papel. Lentamente, escrita e leitura passaram a se dar através de telas de vidro - mais propriamente de cris­tal líquido, de diodos emissores de luz. Começaram a sair livros para leitrura em palmtop, ainda nos anos 90, quando já era possível lê-los no computador e em laptop. Depois. vieram os smartphones. Por fim, os tablets e os leitores eletrôni­cos. desses que acabam de chegar ao mercado brasileiro: Kobo, Kindle, Goo­gle Play. Nos países ricos, a transição está mais avançada. Desde o ano passa­do, a Amazon, um mamute do varejo on-line, já vende mais livros digitais do que livros físicos no mercado america­no. Na Inglaterra, a virada aconteceu em agosto, em grande parte em razão da acolhida estrondosa de Cinquenta Tons de Cinza. de E.L. James, que vendeu 2 milhões de exemplares eletrônicos em quatro meses. Na Alemanha, o ano de­verá fechar com a venda de 800000 lei­tores eletrônicos e tablets, o triplo em relação a 2011. Sob qualquer ângulo que se examine o cenário. é um mo­memo histórico. Fazia mais de quatro milênios, desde que os gregos criaram as vogais - o "aleph' semítico era uma consoante, que virou o "alfa" dos gregos e depois o "a" do nosso alfabeto latino -, que o ato de ler e escrever não sofria tamanho impacto cognitivo. Ha­via mais de cinco séculos, desde os ti­pos móveis de Gutenberg, o livro não recebia intervenção tecnológica tão significativa.
Na era do pós-papel, a leitura, antes um aro solitário por excelência, está vi­rando outra coisa. O Kindle, da Amazon, tem um dispositivo que exibe os trechos do livro sublinhados por outros leitores. Informa até quantos o fizeram. Em Me­mórias Póstumas de Brás Cubas, de Ma­chado de Assis, por exemplo, cinco leito­res assinalaram uma frase do probo Jacó que não era Medeiros, nem Valadares ou Rodrigues, era Tavares, na qual ele se desculpa por mentir porque "a paz das cidades só se podia obter à custa de em­baçadelas recíprocas". Logo será possí­vel entrar em contato com esses leitores, mandar-Ihes um e-mail. O pesquisador Bob Stein, fundador de uma entidade que estuda o futuro do livro, diz que a leitura solitária será substituída por uma atividade comunitária eletronicamente conectada. É o que ele chama de "leitura e escrita sociais".
Já existem "livros enriquecidos", que trazem trilha sonora, vídeos e fotogra­fias, novidades já disponíveis no Brasil. Na Inglaterra, a edição enriquecida de Aventuras de Sherlock Holmes emite sons - gritos, trovões, ventos uivantes - à medida que o leitor avança nas pági­nas. Tudo é acionado automaticamente. Uma edição de On the Road (Na Estra­da), clássico de Jack Kerouac, traz mapa, biografias, fotos e um áudio de quase de­zessete minutos do autor lendo um tre­cho do livro, de origem até hoje desco­nhecida.É um aplicativo para tablet. A "versão enriquecida" de um livro é uma tolice para quem arar as 1500 páginas de Guerra e Paz, mas é excelente como ma­terial de pesquisa, fonte documental.
Até os segredos da leitura, antes in­devassáveis na mente do leitor, agora es­tão sendo revelados. Amazon, Apple e Google espiam o leitor a qualquer hora. Sabem quantas páginas foram lidas, o tempo consumido, os títulos preferidos. A Bames & Noble, a maior cadeia de li­vrarias dos Estados Unidos, analisando dados colhidos pelo seu leitor eletrônico, O Nook, descobriu que livros de não ficção são lidos de modo intermitente. Os romances, não. Leitores de policiais são mais rápidos que os de ficção literária. São informações, impensáveis no mundo do papel, que revelam hábitos de lei­tura e vão abastecer as editoras para atender ao gosto do público. Nos EUA, já existe um movimento de "proteção da privacidade do leitor", destinado a disci­plinar ate onde as editoras podem ir. No tempo do papel - é ainda o tempo de hoje, mas é cada vez mais um tempo passado -, a única forma de espiar a mente de um leitor era por meio da leitu­ra furtiva de uma anotação manuscrita na margem da página de um livro perdido num sebo. Parece que faz décadas.
O ofício do escritor - pelo menos daquele escritor que está abaixo dos pa­lhaços mas acima das focas amestradas, como diria John Steinbeck - também passa por uma metamorfose. Há edito­ras que já testam livros digitalmente an­tes de lançar a versão impressa. A Sour­cebooks, de Chicago, divulga a edição preliminar on-line e pede sugestões aos leitores, as quais os autores, às vezes, incorporam à versão impressa. A Coli­loquy, criada há um ano, é uma editora digital cuja proposta são livros coleti­vos, ou "sociais". Os leitores sugerem personagens e tramas, as preferências são enviadas ao autor (ou autores), que adapta o texto ao gosto da maioria. Os leitores palpitam até sobre a aparência dos personagens - cor dos olhos, dos cabelos, porre físico. O site da Colilo­quy diz que "o resultado é uma expe­riência narrativa incrivelmente fluida e imersiva". É um self-service literário. Daí não se espera nenhuma obra-prima, mas quem sabe? Bernard Shaw dizia que "a estrada da ignorância é pavimen­tada de bons editores".
A escrita no universo on-line é o pró­prio portaI da estrada da ignorância, com pontuação de Murphy, siglas leporídeas, exclamações pandêmicas!!!, tudo num patoá onomatopeico de hehehes e rã-rã­-rás enfatizado por LETRAS GRANDO­NAS ASSIM. O pior talvez sejam os textos sem carnavalização gráfica. "O texto no computador fica limpo, organíizado, justificado", alerta o professor Ro­bert Damton, da Universidade Harvard, respeitado historiador cultural. "Fica tão bem que parece dispensar revisão e pode ser despachado com um clique. Frequen­temente o é, para desgraça de quem pre­za a clareza e o estilo." A escrita, qual­quer escrita, floresce no mundo digital, mas a leitura, a boa leitura, murcha.
"Nunca escrevemos tanto", diz a profes­sora Helen Sword, estudiosa da escrita digital na Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, "O lado negativo é que muitos habitantes do maravilhoso mun­do digital perderam, ou nunca tiveram, a habilidade de escrever uma prosa com estilo, bem estruturada," (Helen conta - com es­panto - que já viu sua fi­lha, universitária de 21 anos, lendo Orgulho e Pre­conceito, de Jane Austen, num iPod Touch.)
Para desconforto dos escritores, a vida digital é veloz. Uma história preci­sa causar impacto na lar­gada. "Tem de ter sangue na parede já no fim do segundo paragrafo". diz Lev Grossman, crítico literário da Time. Amores de suspense e mistério estão sendo duramente exigidos. Antes, um título por ano estava de bom tamanho. Agora, as editoras acham pouco. Ninguém precisa ser uma pororoca co­mo o americano James Patterson (um livro por mês, 260 milhões de exempla­res vendidos), mas não se pode mais fi­car longe do mercado por muito tempo.
A americana Lisa Scottoline, autora de treze best-sellers, agora lança dois títu­los anuais. Para tanto, entrou em regime de escravidão. Escreve 2000 palavras por dia, trabalha da manhã à noite e não folga nos fins de semana.
Jonathan Franzen, o romancista americano mais festejado da atualidade, tem horror a livros digitais. Diz que são qualquer coisa, menos livros. "Palavras são palavras", discorda Scott Turow, autor de thrillers jurídicos que ocupam o topo das vendas. "Não sou senti­mental em relação ao pa­pel." Turow tem problema na coluna. Adora não ter de carregar livros pesados. Mas, como presidente da Authors Guild, a mais anti­ga entidade de escritores profissionais dos EUA, Turow está carregando um piano. Critica a pressão pela redução da remunera­ção dos autores no formato digital e acusa a Amazon de "prática predatória", ao vender livro virtual abaixo do custo pa­ra matar livrarias concorrentes e domi­nar o mercado digital.
A invenção dos tablets e leitores ele­trônicos é espetacular. Eles são fáceis de carregar, têm memória para mais de 1 000 livros, baterias que duram ho­ras. A cada novo lança­mento, ficam mais legí­veis. Na tela de um iPad um livro de arte é uma arte, com cores vivas, ni­tidez perfeita. Mas, tal como Sócrates, os estu­diosos do nosso tempo estão preocupados com o impacto do mundo digi­tal na cultura. Um dos primeiros a chamar aten­ção para a deterioração da qualidade da leitura foi o critico literário Sven Birkerts, ainda na década de 90. Birkens percebeu que seus alu­nos, às voltas com aparelhos eletrônicos, não conseguiam ler um romance com paciência e concentração. É fundamental que as novas gerações educadas no di­gital sejam capazes de ler bem, ler para imaginar, para refletir e - eis o apogeu e a glória da leitura - para pen­sar seus próprios pen­samentos.
O temor é que o uni­verso digital, com abun­dância de informações e íntermináveis estímu­los visuais e sonoros, roube dos jovens a lei­rura profunda, a capaci­dade de entrar no que o grande filósofo Walter Benjamim chamou de "silêncio exigente do li­vro". Durante séculos, os livros impressos fo­ram aperfeiçoados para favorecer a irnersão. O tipo de letra, o entreli­nhamemo, os espaços em branco - tudo feito como um delicado 'con­vite à leitura. São as­pectos relevantes para quem lê e para quem escreve. John Updike achava que seus livros só faziam sentido se impressos em determinada fonte - a Janson. A leitura on-line, de resolução imprecisa, luminosidade excessiva e cri­vada de penduricalhos piscantes, é só distração. Os leitores eletrônicos estão corrigindo boa parte dessas imperfei­ções, mas ainda têm longo caminho a percorrer. Estudo feito pelo professor Terje Hillesund, da Universidade de Sra­vanger, na Noruega, mostra que, durante uma leitura reflexiva, as pessoas gostam de manter os dedos entre as páginas, co­mo que segurando uma ideia de páginas atrás, para revisitá-la quando quiserem. Intangível e volátil, o livro digital, neste aspecto, é uma nulidade (por enquanto).
Leitura profunda não é esnobismo intelectual. E por meio dela que o cére­bro cria poderosos circuitos neuronais. "O homem nasce geneticameme pronto para ver e para falar, mas não para ler. Ler não é natural. É uma invenção cultural que precisa ser ensinada ao cérebro", explica a neurocientista Maryanne Wolf. Para tanto, o cérebro tem de conectar os neurônios responsáveis pela visão, pela linguagem e pelo conceito. Em suma, precisa redesenhar a estrutura interna, segundo suas circunstâncias. Um cere­bro reorganizado para ler caracteres chineses ativa áreas que jamais são usadas por um cérebro educado para ler no alfa­beto latino do português. O fascinante é que, ao criar novos caminhos neuronais, o cérebro expande sua capacidade de pensar, multiplicando ali possibilidades intelectuais - o que, por sua vez, ajuda a expandir ainda mais a capacidade de pensar, numa esplêndida dialética em que o cérebro muda o meio e o meio muda o cérebro. Pesquisadores da área de neurologia cognitiva investigam se a de­satenção intrínseca do digital está afetando a construção dos circuitos neuronais.
É cedo para saber. Por via das dúvidas, é importante garantir que um jovem forme circuitos neuronais amplos antes de ren­der-se por completo à rotina digital. A boa literatura ajuda. É desnecessá­rio fazer pesquisa científica para desco­brir o impacto que nos causa a maestria de Amon Tchekov falando de uma dama e seu cachorrinho. Mas até existe pesqui­sa. Em 2008, cientistas da Universidade de Toronto, no Canadá, reuniram 166 universitários e aplicaram um teste para avaliar características como extroversão, estabilidade emocional, afabilidade. Em seguida, dividiram os estudantes em dois grupos. Um grupo foi convidado a ler "A dama do cachorrinho", de Tchekov, pequena pérola sobre a angústia e o arreba­tamento de um casal de amantes. Outro leu a mesma história, só que em forma relatorial. Depois, os pesquisadores rea­plicaram o teste. O grupo que lera a pro­sa de Tchekov mudara significativamen­te a percepção sobre suas emoções. O outro, que lera um texto burocrático, mu­dara muito menos.
A arte acaricia a alma, prova a pes­quisa, mas haverá arte literária na era do pós-papel? É essencial que jovens digi­tais, crescidos na era do "selecione, corte e cole", sejam educados a respeitar a in­tegridade de um texto. É uma violência tirar um pedaço de O Eterno Marido, de Dostoievski, e pôr em Dom Casmurro, de Machado de Assis. Ou "selecionar" um trecho de Madame Bovary, de Gus­tave Flaubert, e "colar" em O Primo Ba­silio, de Eça de Queiroz - por mais se­melhança dramática que haja entre essas obras. Nem tudo o que é bom é interati­vo. A crítica literária Marjorie Perloff (fã da poesia concreta brasileira) diz que a tradicional imagem do gênio - a mente brilhante que refaz o mundo desde seu reconditório - está morta. O excesso de informação é tal que os novos gênios se­rão banais, sem originalidade. A geniali­dade estará no domínio e distribuição da informação, não na sua reinvenção. Ou­tros, como o poeta Kenneth Goldsmith, que escreveu um livro sobre o assunto, sustentam que a colagem, a apropriação - até o plágio, o tripé "selecione-corte­-cole" - serão a tônica na literatura digi­tal. É assustador.
Mark Twain gostava de arremessar um livro no gato só para ver o bichano saltar em pânico. O poeta Vinicius de Mo­raes lia e escrevia na banheira. Para o ar­gentino Jorge Luis Borges, que morreu cego mas nunca enxergou direito, o paraíiso não seria feito de jardins e fontes, mas de bibliotecas. Orhan Parnuk, o turco que ganhou um Nobel, empilha no criado-mudo os clássicos que relê: Anna Kareni­na, Os Irmãos Karamazov e A Montanha Mágica. Gabriel Gariía Márquez tem 85 anos, mas, quando jovem, lia algumas pá­ginas de dicionário todas as manhãs. Tu­do isso será história na era digital. Não se joga tablet no gato. É perigoso levar apa­relho eletrônico à banheira. As bibliotecas mudarão de aparência, talvez fiquem me­nos paradisíacas. Os dicionários já estão deixando de ser impressos, pois é mais fácil atualizá-los digitalmente - e, na no­va era. não há o que empilhar no criado­-mudo além de um leitor eletrônico com milímetros de espessura. Mas a era digital tem um futuro carregado de promessas. Se será estéril (como temia Sócrates com a escrita) ou se será fértil (como a história se revelou), depende só de nós.
• "É preciso ser cético, duvidar."
Na juventude, quando estudava direito, Roberta Shaffer trabalhou na Biblioteca do Congresso dos EUA, em Washington. Gostou tanto que prometeu voltar quando estivesse no fim da carreira de advogada. Há sete anos, voltou. Chama a biblioteca, com seu monumental acervo em mais de 400 idiomas, de fabuloso exemplo de democracia". Ela responde pela aquisição de acervo. Leitora voraz, tem um leitor eletrônico, mas gosta mesmo é de livro no papel. A seguir, sua entrevista.
Veja - O que a senhora acha da leitura de livros digitais?
Roberta Shaffer - Temos examinado estudos sobre o impacto da leitura eletrônica no aprendizado. Os es­tudos ainda não são numerosos. Mas, até aqui, têm mostrado - e acho que isso vai mudar com o tempo - que as pessoas extraem mais informação ao ler livros físi­cos. O olho humano ainda não es­tá treinado para absorver da tela do computador o mesmo tanto que absorve do livro de papel. Quando estamos olhando coisas no computador, na maioria das ve­zes estamos lidando com material visual ou material pouco denso. Textos narrativos, técnicos, densos requerem um meio mais estático para a boa absorção. Mas acreditamos que se trata de uma característica evolucionária. Por séculos, habituamo-nos à leitura em livros físicos. E só agora, só muito recentemente, nosso cérebro e nos­so nervo óptico estão começando a lidar com um ambiente diferente. Leva tempo.
Veja - Com o mundo ficando cada vez mais digital, as pessoas têm vindo menos à Bibliote­ca do Congresso?
Roberta Shaffer - Infelizmente, o movimen­to hoje é menor. Mas, além disso, há outra questão que nos preocupa. As pessoas hoje têm uma tendência a confiar em qualquer resultado que a ferramenta de pesquisa Ihes oferece como sendo "a me­lhor resposta". Isso é preocupante. É a an­títese de como a Biblioteca do Congresso gosta de oferecer informação. O conheci­mento tem círculos concêntricos e a res­posta que oferecemos está no centro do círculo, mas há todo um entorno. Nossa missão é dizer: "Esteja alerta sobre todas as ondulações ao redor da resposta cen­tral, todas as ondulações que tiveram im­pacto ou estão de algum modo relaciona­das com o tema da sua pesquisa". Na in­ternet, por exemplo, as pessoas dependem do que Ihes é servido sem saber como a informação foi selecionada. As pessoas não olham para trás. Isso é perigoso. É o que chamamos de "falácia do algoritmo".
Veja - É possível reverter essa tendência apesar da popularização crescente do GoogIe, da Wikipedia?
Roberta Shaffer - Felizmente, sim. A Biblioteca do Congresso nunca esteve envolvida com en­sino elementar ou médio. Mas, nos últimos dez anos, passamos a trabalhar com crianças desde o jardim de infância até o último ano do ensino médio. Estamos ten­tando ensinar aos alunos, desde a mais tenra idade, como é uma boa pesquisa. No site da biblioteca, oferecemos uma sé­rie de planos de ensino nos quais mostra­mos como trabalhar com fontes primárias, o valor de acessar um material original e não já previamente digerido. Tentamos de­monstrar que uma mesma palavra pode ter tido um significado no século XIX e outro no século XX. É uma forma de mostrar a importância do contexto. Sobretudo, a ideia é treinar as crianças a não aceitar a primeira resposta que salta na tela do computador. É preciso ser cético, duvidar.
Veja - Apesar de tudo, as pessoas estão lendo mais?
Roberta Shaffer - Temos duas tendências assustado­ras nos Estados Unidos. Uma é o analfa­betismo. Há gente aprendendo por outros meios - auditivo, visual. Não há a mesma pressão para ler de quando éramos uma sociedade estritamente textual. A outra tendência é gente que sabe ler, mas não lê. Só lê on-line, e-mails, blogs. Não faz leitura em profundidade. Considero uma tendência assustadora.
Veja - A senhora lê livros digitais?
Roberta Shaffer - Leio de tudo. Viajo muito no meu trabalho e, antes, leva­va sempre uma mala de livros. Agora, ando com meu leitor eletrônico carregado de coisas que podem me interessar. Levo ma­terial clássico, contemporâneo, pilhas de jornais e revistas. Mas, talvez devido a mi­nha idade, vejo que minha leitura eletrôni­ca é superficial. Quando quero fazer uma leitura densa, mais concentrada, prefiro re­correr aos livros impressos.
Veja - Qual o acervo da biblioteca em termos de livros digitais?
Roberta Shaffer - É uma coleção pequena, ainda, porque não colecionamos leitura popular, a menos que tenha algum valor para pesquisa, nem material didático. Es­ses dois critérios excluem grande parte do que está sendo produzido em formato di­gital. Mas temos um acervo de 158 mi­lhões de itens em mais de 420 línguas. Não temos apenas livros. Temos filmes, fo­tografias, músicas, manuscritos, partituras, notações coreográficas, uma fenomenal coleção de mapas. A biblioteca é aberta a todos, não cobramos nada nem pergunta­mos o motivo da pesquisa. Qualquer um pode vir até aqui, qualquer um pode ver os cadernos de Galileu, tocar numa carta escrita por George Washington. Acredita­mos que o conhecimento não é o domínio apenas da elite financeira ou intelectual. Fico orgulhosa do meu país por oferecer isso. Considero a Biblioteca do Congresso um exemplo fabuloso de democracia.

Revista Veja