sábado, 15 de dezembro de 2012

Você sabe O que é Literatura de Cordel ?

Há muito tempo, pesquisadores, folcloristas e poetas têm se dado o trabalho de procurar dar uma definição para o que é literatura de cordel, pois acreditam que, conceituando-a a partir de suas peculiaridades, podese conhecê-la com mais precisão, compreendê-la e dar a ela o seu devido valor.
Quando se pensa em um conceito, pensa-se em conhecer com exatidão alguma coisa, avaliar, ajuizar e principalmente formar opinião sobre ela. Nesse árduo processo da procura de uma definição há várias discussões sobre a literatura popular nordestina, sobretudo a respeito do que é a literatura de cordel sob a ótica de vários estudiosos da área. Para essa breve discussão, utilizamos textos que expõem as visões das pesquisadoras Maria Ignez Novais Ayala e Márcia Abreu, dos folcloristas Manuel Diégues Júnior e Lêda Tâmega Ribeiro, e um cordel do poeta José João dos Santos, mais conhecido como mestre Azulão.
Definir o que é literatura de cordel tem sido uma tarefa muito difícil, visto a sua complexidade, como aponta Maria Ignez Ayala. Para a pesquisadora, a poesia popular nordestina é complexa e "qualquer tentativa de classificação geral tem-se mostrado insatisfatória". Segundo esta autora, isso decorre do fato de que "a literatura popular não conhece delimitação e é isso que torna difícil seu estudo".
Partindo deste princípio, acredita-se que se a literatura popular é vasta e para ela não há limites, tentar conceituar a literatura de cordel seria uma tarefa um pouco complicada. Para se estudar, compreender ou tentar obter um esclarecimento mais próximo do que ela seja, é preciso considerar sua evolução histórica, a sua função e principalmente considerar aquele que lhe dá "vida poética", ou seja, o cordelista.
Historicamente, a literatura de cordel é uma herança portuguesa. Para o folclorista Diégues Júnior, a presença da literatura de cordel no Nordeste tem raízes lusitanas, já que se tem atribuído às folhas volantes portuguesas a origem dessa arte literária. Contudo, o folclorista admite a presença de alguns traços hispânicos nesse tipo de literatura que se dirigiu a Portugal e veio para o Brasil, pois, segundo este autor, há muito dos pliegos sueltos nos cordéis portugueses.
Estando de acordo com Diégues Jr, em uma estrofe de seu livrinho de cordel intitulado O que é Literatura de Cordel?, mestre Azulão discorre sobre a influência europeia, sobretudo de Portugal e Espanha. Assim, ele versa que os folhetos:
São heranças europeias
De Espanha e Portugal
E toda península Ibérica
Que de um modo geral
Os europeus imigrantes
Vindo das terras distantes
Ao Brasil colonial
A pesquisadora Márcia Abreu também aponta o cordel como herança não só das folhas volantes portuguesas e dos pliegos sueltos espanhóis, mas também da littérature de colportage francesa, sendo que cada qual ao seu estilo, e diferente do que hoje constitui o cordel nordestino.
Como vemos, não há renúncia quanto à origem do cordel brasileiro relacionado às raízes europeias, nem pelo folclorista, nem pelo cordelista e pela pesquisadora.
PARA QUE SERVE
A função da literatura de cordel desde tempos remotos, na visão de Diégues Jr, é comunicar. Para ele, "a literatura de cordel se constituiu, portanto, um meio de comunicação, um instrumento de interligação entre as sociedades que se formavam". Para Azulão, assim como para Diégues Jr, a literatura de cordel tem como algumas de suas funções: divertir, instruir, educar, ensinar e informar: "Servindo como jornais / Que levam das capitais / Para os sertões nordestinos". O cordelista acrescenta que os leitores:
Confiam mais nos poetas
Porque são mais fiéis
Desconfiam dos jornais
Que mentem nos seus papéis
Dizendo em praças e feiras
Que notícias verdadeiras
São aquelas dos cordéis
O cordel revela a sua face social não só através de alguns de seus temas, mas ao ser produzido para as camadas populares, ao mesmo tempo em que tenta traduzi-la, já que para Diégues Jr "na literatura popular encontramos traduzido o próprio espírito da sociedade".

Essa sociedade mencionada por Diégues Jr pode ser reconhecida, sobretudo, no povo do Nordeste, onde essa literatura ganhou força, adeptos e admiradores, pelas condições étnicas, sociais e culturais. É interessante ressaltar que o povo nordestino tanto se identificou como leitor quanto como autor dessa literatura, pois a intimidade entre poetas e leitores a determinados temas fez com que essa poesia ganhasse força e sobrevivesse em meio a essa região. Ninguém melhor do que o poeta que vê as riquezas e misérias da sua terra natal para descrevê-la com precisão, exaltá-la quando preciso e denunciar as suas mazelas quando necessário, na linguagem de seus conterrâneos, seus principais leitores e ouvintes. Conforme Ribeiro, "o nosso jogral nordestino pertence à mesma camada social do público a que se dirige; assim, procura expressar as inquietações e as aspirações desse público". O cordelista "é realmente o porta-voz de sua classe e suas interpretações esclarecem a consciência dos sertanejos. Articula uma ideologia coletiva".
É principalmente para o leitor social que o cordel é produzido, aquele que lê de forma coletiva, e não como um ser solitário. O leitor ideal do cordel, para Azulão, também é aquele que está inserido no meio de outros leitores, pois o cordelista pensa no leitor/ouvinte comunitário, que lê ou escuta em grupo. Vale lembrar que o cordel ganhou força, sobretudo, pela oralidade, pois levando em consideração que na metade do século XIX até a metade do século XX havia uma grande parcela de analfabetos no Brasil, e especialmente no nordeste, era de costume os folhetos serem lidos em voz alta para familiares, vizinhos e amigos dos bons conhecedores das letras, em praças, sítios, ou nas feiras. O importante sempre era o encontro, a reunião, o deleite coletivo.
Com esse pensamento de que a literatura de cordel deve ser vivenciada em comunidade, Azulão versa que
Os cordelistas nas feiras
Chamam o povo atenção
Para ouvir cantar romances
Reúnem uma multidão
Nos festivais de artistas
Os poetas repentistas
São a maior atração
Ao mencionar a forma com que a multidão se aglomerava, o poeta Azulão reforça a ideia de leitor coletivo, e reafirma a popularidade da literatura de cordel, que, segundo ele, "O povo de toda classe / Gosta, ama e dá valor".
Para Ayala, a literatura popular, bem como a literatura de cordel, "não pode abrir mão de seu tempo comunitário".
Segundo a pesquisadora, a literatura contemplada em grupo pode propiciar, em outras instâncias, outras experiências individuais; porém, se ela deixar de ser vivenciada em uma base comunitária, pode continuar oculta na memória e na solidão de quem outrora a experimentou, pois é através da socialização que "ela tem sua possibilidade de existir". Por essa razão, como bem aponta Ribeiro, "a literatura popular não pode perder de vista o auditório diante do qual será recitada ou cantada".
E, para que essa socialização aconteça, Ayala considera importante o tempo disponível para partilhar a experiência de leitura da literatura de cordel, pois, para ela, "o fundamental é que ocorra de modo constante e com certa regularidade".
BUSCANDO A DEFINIÇÃO
Sobre o trabalho do cordelista, Azulão ressalta que eles usam a arte poética para emocionar ao falar de sentimentos, fazer rir através do humor, entreter e criticar ao escrever desde sentimentos nobres, histórias, romances até fatos históricos e políticos. Ao relatar o trabalho do poeta, e aí o faz refletindo, consciente ou inconscientemente, também sobre sua própria experiência como tal, versa que
O cordelista faz tudo
Para se evoluir
Faz poema pra chorar
E humorismo para rir
E no campo da política
Faz elogio e faz crítica
Pro povo se divertir
Deste modo, através da metalinguagem, Azulão versa sobre a literatura de cordel, sua história, sua função na sociedade, bem como o trabalho do poeta. Em seu folheto O que é literatura de cordel? não dá definições precisas, mas relata de maneira poética, o que ao seu ver reflete o que mais se aproxima da sua realidade como poeta e de como sua gente vivencia essa arte literária.
Ayala não define a literatura de cordel, mas a qualifica como uma arte de cunho híbrido, da qual se nutre, e que constitui como sua maior riqueza os pontos extremos que podem se misturar para criar a arte e mantê-la sempre viva, "não como sobrevivência do passado no presente, mas como prática contemporânea". Abreu também não define a literatura de cordel e explica que toda dificuldade em defini-la reside no fato de não querer assumir que a literatura de cordel não se trata de uma modalidade literária ou gênero literário, e sim de um gênero editorial.

Já Ribeiro e Diégues Jr foram os únicos que parecem ter definido a literatura de cordel, embora aos seus modos. Diégues Júnior menciona a literatura de cordel como "romance em poesia, pelo tipo de narração que descreve". Igualmente, Ribeiro refere-se a esse tipo de literatura como uma "narrativa direta e objetiva, em que o eu do poeta é totalmente anulado, em que os fatos são contados de forma linear, sem flashback e sem antecipações". Entretanto, o eu do poeta pode também, embora mais raro, ser encontrado na literatura de cordel. Dessa forma, Ribeiro, em alguns momentos, menciona a literatura de cordel como poesia narrativa.
Ambos os folcloristas destacam uma das características híbridas da literatura de cordel, a mistura de elementos narrativos às estruturas poéticas. São folhetos que predominantemente tem como eixo principal um desenrolar de um enredo, com personagens, num espaço específico, tratado à maneira particular da métrica e das rimas, características eminentes da poesia.
Portanto, como aponta Abreu, a primeira e maior dificuldade que encontramos ao estudar a literatura de cordel é defini-la. Segundo a autora, "as características físicas dos folhetos, aliadas à maneira de vendê-los, têm sido os atributos mais recorrentes ao se tentar uma definição". A questão editorial e a associação de livros vendidos em barbantes ou cordões, sendo esta uma prática dos vendedores portugueses no século XVIII e no apontar do século XIX, ainda tem sido a maneira mais divulgada do que é a literatura de cordel brasileira. Enquanto não há a uma definição mais precisa, "a denominação de 'cordel' prende-se ao fato de os folhetos serem expostos ao público pendurado em cordéis".
Ainda para Abreu, é impreciso definir uma produção literária com base em elementos extrínsecos à obra. A literatura de cordel é muito mais ampla do que pensamos. Conceituá-la é realmente uma tarefa arriscada. A sua complexidade pode não admitir caracterizá-la com precisão, mas nos permite considerar uma vasta camada de características que podemos descobrir por meio dela, e assim abordá-las de várias maneiras. De qualquer forma, a apreciação dos textos ainda continua sendo o melhor método de conhecê-la, muito mais do que através de rótulos ou conceitos.


*Verucci Almeida é mestra em Linguagem e Ensino pela UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e professora substituta da UEPB (Universidade Estadual da Paraíba). Contato: veruccialmeida@yahoo.com.br

Revista CONHECIMENTO PRÁTICO DE LITERATURA

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