"Sei que falam de mim / Sei que zombam de mim..." e como falaram do velho José Bispo Clementino dos Santos, que em 12 de maio do próximo ano completaria 100 anos! Chico Buarque de Holanda, por exemplo, naquele 14 de junho de 2008, ao saber de seu falecimento, aos 95 anos, comentou: "Meu amigo Jamelão era um imenso cantor e o melhor mau humor do Brasil." Queria vê-lo furioso? Bastava apresentá-lo como o "puxador de samba-enredo da Mangueira". A resposta vinha na lata: "Puxador é puxador de corda, puxador de carro, puxador de fumo, puxa-saco... Eu sou é intérprete."
Saruê. Era esse o apelido do garoto negro nascido em São Cristóvão, que aos nove anos engraxava sapatos, vendia jornais e, depois, aos 15, tocava tamborim na bateria da Mangueira e aprendeu a tocar cavaquinho. Ainda na infância, acompanhava a mãe, Dona Benvinda, que brincava carnaval na Escola de Samba Deixa Malhar, no Engenho Novo. O apelido Jamelão, dado quando cantava na gafieira do Jardim do Meyer, não podia ser politicamente mais incorreto. Afinal, trata-se do fruto da árvore de mesmo nome, também conhecida por jambolão, de coloração que varia do roxo ao negro e mancha tudo que toca. Nas atividades profissionais, revezava o trabalho de escrivão de polícia com o de crooner da Orquestra Tabajara.
Com seu vozeirão potente e timbre único, cantou em todas as gafieiras do Rio de Janeiro a maioria dos ritmos da Música Popular Brasileira e da latina, em especial o samba e o samba-canção. Para o compositor Nei Lopes, "se ele não tivesse uma carreira tão ligada à escola de samba, teria reconhecimento muito maior. O samba, até por questões de mercado, o deixava meio restrito ao carnaval. Mas Jamelão era o maior cantor brasileiro. Assim como se mostrou o maior intérprete de Lupicínio Rodrigues, também foi o maior de Ary Barroso. Ele imortalizou Folha Morta."
Jamais vou esquecer o dia em que perguntei a Martinho da Vila durante uma entrevista, se escola de samba tinha intérprete ou "puxador de samba". Martinho me respondeu: "No desfile de uma escola de samba, não há espaço para interpretação. A pessoa é mesmo um 'puxador', uma voz guia para a massa não perder a melodia e se orientar em que trecho está do samba. Mas, olha, por favor, não fale mal de Jamelão. Ele é um patrimônio cultural do nosso País". Prometi que não falaria e não falei.
O que a mídia desconhecia é que Jamelão era todo simplicidade. Frequentava nossos clubes. Em São Paulo, era fácil encontrá-lo no Aristocrata ou no Coimbra, no Som de Cristal, no Paulistano da Glória. Espaços negros e populares. No Rio, era o Renascença, eram as gafieiras. Mas ele odiava badalação, pedido para dar uma canja, gente que vinha "tietar", pedir autógrafo ou posar para foto. Passava a noite toda sentado, com alguns elásticos ora no pulso ora na mão.
Apesar de ser o compositor de pelo menos meia centena de sambas, como "Quem samba fica, quem não samba vai embora", seu forte mesmo era a interpretação. De 1949 a 2003, gravou 77 discos, sem contar participação em álbuns coletivos. Também de 1949 até 2006 foi a voz da Mangueira. Diabético e hipertenso, seus cochilos em locais públicos, como bares com música ao vivo e quadras de escolas de samba, tornaram-se folclóricos. Um deles, em especial, aconteceu em 2001, no Palácio da Alvorada, após o presidente Fernando Henrique lhe entregar a medalha da Ordem do Mérito Cultural. Começaram os intermináveis discursos e ele dormiu na cadeira. Esse era o Jamelão, a mais bela e encorpada voz do Brasil. Podia cochilar, podia responder com grosseria, podia tudo. Só não podia se calar e deixar a gente com essa imensa saudade.
Revista Raça Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário