domingo, 23 de dezembro de 2012

Te Contei, não ? - A revolução do pós - papel

A transição para a era digital é a mais radical transformação da nossa história intelectual desde a invenção do alfabeto grego. Sim, o momento é histórico: há mudanças profundas na leitura, na escrita - e talvez até dentro do cérebro humano.
 
Leia o que conta a revista Veja sobre o assunto
 
Sócrates. o homem mais sábio de todos os tempos, estava enganado. Com a genial in­venção das vogais no alfabeto grego, a escrita estava se dis­seminando pela Grécia antiga - e Sócrares temia um desastre. Apre­ciador da linguagem oral, achava que só o diálogo, a retórica, o discurso, só a pa­lavra falada estimulava o questionamen­to e a memória, os únicos caminhos que conduziam ao conhecimento profundo, à sabedoria. Temia que os jovens atenien­ses, com o recurso fácil da escrita e da leitura, deixassem de exercitar a memó­ria e, como a palavra escrita não fala, perdessem o hábito de questionar. Sua mais conhecida diatribe contra a escrita está em Fedro, de Platão, seu fiel segui­dor. Ali, Sócrates diz que a escrita daria aos discípulos "não a verdade, mas a aparência de verdade". O grande filósofo intuiu que a transição da linguagem oral para a escrita seria uma revolução. Foi mesmo, só que numa direção promisso­ra. Permitiu o mais esplêndido salto inte­lectual da civilização ocidental.
Agora, 2500 anos depois, estamos às voltas com outra transição revolucio­nária. Da cultura escrita para a digital, há uma mudança de fundamento como não ocorre há milênios. A forma física que o texto adquire num papiro de 3000 anos antes de Cristo ou numa folha de papel da semana passada não é essen­cialmente distinta. Nos dois casos, exis­tem enormes diferenças de qualidade e clareza, mas é sempre tinta sobre uma superfície maleável. Na era digital, a mudança é radical. O livro eletrônico oferece uma experiência visual e tátil inteiramente diversa. É uma outra for­ma. Como diz o francês Roger Chartier, professor do College de France e espe­cialista na história do livro, "a forma afeta o conteúdo". A era digital, sustenta ele, nos fará desenvolver uma nova rela­ção com a palavra escrita. Para a neuro­cientista Maryanne Wolf, amora de Prousr e a Lula, um livraço sobre o im­pacto da leitura no cérebro, o momento atual é tão singular quanto o da Grecia: "Como os gregos antigos, vivemos uma transição dramaticamente importante ­ no nosso caso, de uma cultura escrita para uma cultura mais digital e visual".
Há séculos que. depois da argila, do papiro e do pergaminho, a humanidade transmite conhecimento no papel. Dos livros manuscritos pelos monges me­dievais à página enviada por fax, era sempre papel. Lentamente, escrita e leitura passaram a se dar através de telas de vidro - mais propriamente de cris­tal líquido, de diodos emissores de luz. Começaram a sair livros para leitrura em palmtop, ainda nos anos 90, quando já era possível lê-los no computador e em laptop. Depois. vieram os smartphones. Por fim, os tablets e os leitores eletrôni­cos. desses que acabam de chegar ao mercado brasileiro: Kobo, Kindle, Goo­gle Play. Nos países ricos, a transição está mais avançada. Desde o ano passa­do, a Amazon, um mamute do varejo on-line, já vende mais livros digitais do que livros físicos no mercado america­no. Na Inglaterra, a virada aconteceu em agosto, em grande parte em razão da acolhida estrondosa de Cinquenta Tons de Cinza. de E.L. James, que vendeu 2 milhões de exemplares eletrônicos em quatro meses. Na Alemanha, o ano de­verá fechar com a venda de 800000 lei­tores eletrônicos e tablets, o triplo em relação a 2011. Sob qualquer ângulo que se examine o cenário. é um mo­memo histórico. Fazia mais de quatro milênios, desde que os gregos criaram as vogais - o "aleph' semítico era uma consoante, que virou o "alfa" dos gregos e depois o "a" do nosso alfabeto latino -, que o ato de ler e escrever não sofria tamanho impacto cognitivo. Ha­via mais de cinco séculos, desde os ti­pos móveis de Gutenberg, o livro não recebia intervenção tecnológica tão significativa.
Na era do pós-papel, a leitura, antes um aro solitário por excelência, está vi­rando outra coisa. O Kindle, da Amazon, tem um dispositivo que exibe os trechos do livro sublinhados por outros leitores. Informa até quantos o fizeram. Em Me­mórias Póstumas de Brás Cubas, de Ma­chado de Assis, por exemplo, cinco leito­res assinalaram uma frase do probo Jacó que não era Medeiros, nem Valadares ou Rodrigues, era Tavares, na qual ele se desculpa por mentir porque "a paz das cidades só se podia obter à custa de em­baçadelas recíprocas". Logo será possí­vel entrar em contato com esses leitores, mandar-Ihes um e-mail. O pesquisador Bob Stein, fundador de uma entidade que estuda o futuro do livro, diz que a leitura solitária será substituída por uma atividade comunitária eletronicamente conectada. É o que ele chama de "leitura e escrita sociais".
Já existem "livros enriquecidos", que trazem trilha sonora, vídeos e fotogra­fias, novidades já disponíveis no Brasil. Na Inglaterra, a edição enriquecida de Aventuras de Sherlock Holmes emite sons - gritos, trovões, ventos uivantes - à medida que o leitor avança nas pági­nas. Tudo é acionado automaticamente. Uma edição de On the Road (Na Estra­da), clássico de Jack Kerouac, traz mapa, biografias, fotos e um áudio de quase de­zessete minutos do autor lendo um tre­cho do livro, de origem até hoje desco­nhecida.É um aplicativo para tablet. A "versão enriquecida" de um livro é uma tolice para quem arar as 1500 páginas de Guerra e Paz, mas é excelente como ma­terial de pesquisa, fonte documental.
Até os segredos da leitura, antes in­devassáveis na mente do leitor, agora es­tão sendo revelados. Amazon, Apple e Google espiam o leitor a qualquer hora. Sabem quantas páginas foram lidas, o tempo consumido, os títulos preferidos. A Bames & Noble, a maior cadeia de li­vrarias dos Estados Unidos, analisando dados colhidos pelo seu leitor eletrônico, O Nook, descobriu que livros de não ficção são lidos de modo intermitente. Os romances, não. Leitores de policiais são mais rápidos que os de ficção literária. São informações, impensáveis no mundo do papel, que revelam hábitos de lei­tura e vão abastecer as editoras para atender ao gosto do público. Nos EUA, já existe um movimento de "proteção da privacidade do leitor", destinado a disci­plinar ate onde as editoras podem ir. No tempo do papel - é ainda o tempo de hoje, mas é cada vez mais um tempo passado -, a única forma de espiar a mente de um leitor era por meio da leitu­ra furtiva de uma anotação manuscrita na margem da página de um livro perdido num sebo. Parece que faz décadas.
O ofício do escritor - pelo menos daquele escritor que está abaixo dos pa­lhaços mas acima das focas amestradas, como diria John Steinbeck - também passa por uma metamorfose. Há edito­ras que já testam livros digitalmente an­tes de lançar a versão impressa. A Sour­cebooks, de Chicago, divulga a edição preliminar on-line e pede sugestões aos leitores, as quais os autores, às vezes, incorporam à versão impressa. A Coli­loquy, criada há um ano, é uma editora digital cuja proposta são livros coleti­vos, ou "sociais". Os leitores sugerem personagens e tramas, as preferências são enviadas ao autor (ou autores), que adapta o texto ao gosto da maioria. Os leitores palpitam até sobre a aparência dos personagens - cor dos olhos, dos cabelos, porre físico. O site da Colilo­quy diz que "o resultado é uma expe­riência narrativa incrivelmente fluida e imersiva". É um self-service literário. Daí não se espera nenhuma obra-prima, mas quem sabe? Bernard Shaw dizia que "a estrada da ignorância é pavimen­tada de bons editores".
A escrita no universo on-line é o pró­prio portaI da estrada da ignorância, com pontuação de Murphy, siglas leporídeas, exclamações pandêmicas!!!, tudo num patoá onomatopeico de hehehes e rã-rã­-rás enfatizado por LETRAS GRANDO­NAS ASSIM. O pior talvez sejam os textos sem carnavalização gráfica. "O texto no computador fica limpo, organíizado, justificado", alerta o professor Ro­bert Damton, da Universidade Harvard, respeitado historiador cultural. "Fica tão bem que parece dispensar revisão e pode ser despachado com um clique. Frequen­temente o é, para desgraça de quem pre­za a clareza e o estilo." A escrita, qual­quer escrita, floresce no mundo digital, mas a leitura, a boa leitura, murcha.
"Nunca escrevemos tanto", diz a profes­sora Helen Sword, estudiosa da escrita digital na Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, "O lado negativo é que muitos habitantes do maravilhoso mun­do digital perderam, ou nunca tiveram, a habilidade de escrever uma prosa com estilo, bem estruturada," (Helen conta - com es­panto - que já viu sua fi­lha, universitária de 21 anos, lendo Orgulho e Pre­conceito, de Jane Austen, num iPod Touch.)
Para desconforto dos escritores, a vida digital é veloz. Uma história preci­sa causar impacto na lar­gada. "Tem de ter sangue na parede já no fim do segundo paragrafo". diz Lev Grossman, crítico literário da Time. Amores de suspense e mistério estão sendo duramente exigidos. Antes, um título por ano estava de bom tamanho. Agora, as editoras acham pouco. Ninguém precisa ser uma pororoca co­mo o americano James Patterson (um livro por mês, 260 milhões de exempla­res vendidos), mas não se pode mais fi­car longe do mercado por muito tempo.
A americana Lisa Scottoline, autora de treze best-sellers, agora lança dois títu­los anuais. Para tanto, entrou em regime de escravidão. Escreve 2000 palavras por dia, trabalha da manhã à noite e não folga nos fins de semana.
Jonathan Franzen, o romancista americano mais festejado da atualidade, tem horror a livros digitais. Diz que são qualquer coisa, menos livros. "Palavras são palavras", discorda Scott Turow, autor de thrillers jurídicos que ocupam o topo das vendas. "Não sou senti­mental em relação ao pa­pel." Turow tem problema na coluna. Adora não ter de carregar livros pesados. Mas, como presidente da Authors Guild, a mais anti­ga entidade de escritores profissionais dos EUA, Turow está carregando um piano. Critica a pressão pela redução da remunera­ção dos autores no formato digital e acusa a Amazon de "prática predatória", ao vender livro virtual abaixo do custo pa­ra matar livrarias concorrentes e domi­nar o mercado digital.
A invenção dos tablets e leitores ele­trônicos é espetacular. Eles são fáceis de carregar, têm memória para mais de 1 000 livros, baterias que duram ho­ras. A cada novo lança­mento, ficam mais legí­veis. Na tela de um iPad um livro de arte é uma arte, com cores vivas, ni­tidez perfeita. Mas, tal como Sócrates, os estu­diosos do nosso tempo estão preocupados com o impacto do mundo digi­tal na cultura. Um dos primeiros a chamar aten­ção para a deterioração da qualidade da leitura foi o critico literário Sven Birkerts, ainda na década de 90. Birkens percebeu que seus alu­nos, às voltas com aparelhos eletrônicos, não conseguiam ler um romance com paciência e concentração. É fundamental que as novas gerações educadas no di­gital sejam capazes de ler bem, ler para imaginar, para refletir e - eis o apogeu e a glória da leitura - para pen­sar seus próprios pen­samentos.
O temor é que o uni­verso digital, com abun­dância de informações e íntermináveis estímu­los visuais e sonoros, roube dos jovens a lei­rura profunda, a capaci­dade de entrar no que o grande filósofo Walter Benjamim chamou de "silêncio exigente do li­vro". Durante séculos, os livros impressos fo­ram aperfeiçoados para favorecer a irnersão. O tipo de letra, o entreli­nhamemo, os espaços em branco - tudo feito como um delicado 'con­vite à leitura. São as­pectos relevantes para quem lê e para quem escreve. John Updike achava que seus livros só faziam sentido se impressos em determinada fonte - a Janson. A leitura on-line, de resolução imprecisa, luminosidade excessiva e cri­vada de penduricalhos piscantes, é só distração. Os leitores eletrônicos estão corrigindo boa parte dessas imperfei­ções, mas ainda têm longo caminho a percorrer. Estudo feito pelo professor Terje Hillesund, da Universidade de Sra­vanger, na Noruega, mostra que, durante uma leitura reflexiva, as pessoas gostam de manter os dedos entre as páginas, co­mo que segurando uma ideia de páginas atrás, para revisitá-la quando quiserem. Intangível e volátil, o livro digital, neste aspecto, é uma nulidade (por enquanto).
Leitura profunda não é esnobismo intelectual. E por meio dela que o cére­bro cria poderosos circuitos neuronais. "O homem nasce geneticameme pronto para ver e para falar, mas não para ler. Ler não é natural. É uma invenção cultural que precisa ser ensinada ao cérebro", explica a neurocientista Maryanne Wolf. Para tanto, o cérebro tem de conectar os neurônios responsáveis pela visão, pela linguagem e pelo conceito. Em suma, precisa redesenhar a estrutura interna, segundo suas circunstâncias. Um cere­bro reorganizado para ler caracteres chineses ativa áreas que jamais são usadas por um cérebro educado para ler no alfa­beto latino do português. O fascinante é que, ao criar novos caminhos neuronais, o cérebro expande sua capacidade de pensar, multiplicando ali possibilidades intelectuais - o que, por sua vez, ajuda a expandir ainda mais a capacidade de pensar, numa esplêndida dialética em que o cérebro muda o meio e o meio muda o cérebro. Pesquisadores da área de neurologia cognitiva investigam se a de­satenção intrínseca do digital está afetando a construção dos circuitos neuronais.
É cedo para saber. Por via das dúvidas, é importante garantir que um jovem forme circuitos neuronais amplos antes de ren­der-se por completo à rotina digital. A boa literatura ajuda. É desnecessá­rio fazer pesquisa científica para desco­brir o impacto que nos causa a maestria de Amon Tchekov falando de uma dama e seu cachorrinho. Mas até existe pesqui­sa. Em 2008, cientistas da Universidade de Toronto, no Canadá, reuniram 166 universitários e aplicaram um teste para avaliar características como extroversão, estabilidade emocional, afabilidade. Em seguida, dividiram os estudantes em dois grupos. Um grupo foi convidado a ler "A dama do cachorrinho", de Tchekov, pequena pérola sobre a angústia e o arreba­tamento de um casal de amantes. Outro leu a mesma história, só que em forma relatorial. Depois, os pesquisadores rea­plicaram o teste. O grupo que lera a pro­sa de Tchekov mudara significativamen­te a percepção sobre suas emoções. O outro, que lera um texto burocrático, mu­dara muito menos.
A arte acaricia a alma, prova a pes­quisa, mas haverá arte literária na era do pós-papel? É essencial que jovens digi­tais, crescidos na era do "selecione, corte e cole", sejam educados a respeitar a in­tegridade de um texto. É uma violência tirar um pedaço de O Eterno Marido, de Dostoievski, e pôr em Dom Casmurro, de Machado de Assis. Ou "selecionar" um trecho de Madame Bovary, de Gus­tave Flaubert, e "colar" em O Primo Ba­silio, de Eça de Queiroz - por mais se­melhança dramática que haja entre essas obras. Nem tudo o que é bom é interati­vo. A crítica literária Marjorie Perloff (fã da poesia concreta brasileira) diz que a tradicional imagem do gênio - a mente brilhante que refaz o mundo desde seu reconditório - está morta. O excesso de informação é tal que os novos gênios se­rão banais, sem originalidade. A geniali­dade estará no domínio e distribuição da informação, não na sua reinvenção. Ou­tros, como o poeta Kenneth Goldsmith, que escreveu um livro sobre o assunto, sustentam que a colagem, a apropriação - até o plágio, o tripé "selecione-corte­-cole" - serão a tônica na literatura digi­tal. É assustador.
Mark Twain gostava de arremessar um livro no gato só para ver o bichano saltar em pânico. O poeta Vinicius de Mo­raes lia e escrevia na banheira. Para o ar­gentino Jorge Luis Borges, que morreu cego mas nunca enxergou direito, o paraíiso não seria feito de jardins e fontes, mas de bibliotecas. Orhan Parnuk, o turco que ganhou um Nobel, empilha no criado-mudo os clássicos que relê: Anna Kareni­na, Os Irmãos Karamazov e A Montanha Mágica. Gabriel Gariía Márquez tem 85 anos, mas, quando jovem, lia algumas pá­ginas de dicionário todas as manhãs. Tu­do isso será história na era digital. Não se joga tablet no gato. É perigoso levar apa­relho eletrônico à banheira. As bibliotecas mudarão de aparência, talvez fiquem me­nos paradisíacas. Os dicionários já estão deixando de ser impressos, pois é mais fácil atualizá-los digitalmente - e, na no­va era. não há o que empilhar no criado­-mudo além de um leitor eletrônico com milímetros de espessura. Mas a era digital tem um futuro carregado de promessas. Se será estéril (como temia Sócrates com a escrita) ou se será fértil (como a história se revelou), depende só de nós.
• "É preciso ser cético, duvidar."
Na juventude, quando estudava direito, Roberta Shaffer trabalhou na Biblioteca do Congresso dos EUA, em Washington. Gostou tanto que prometeu voltar quando estivesse no fim da carreira de advogada. Há sete anos, voltou. Chama a biblioteca, com seu monumental acervo em mais de 400 idiomas, de fabuloso exemplo de democracia". Ela responde pela aquisição de acervo. Leitora voraz, tem um leitor eletrônico, mas gosta mesmo é de livro no papel. A seguir, sua entrevista.
Veja - O que a senhora acha da leitura de livros digitais?
Roberta Shaffer - Temos examinado estudos sobre o impacto da leitura eletrônica no aprendizado. Os es­tudos ainda não são numerosos. Mas, até aqui, têm mostrado - e acho que isso vai mudar com o tempo - que as pessoas extraem mais informação ao ler livros físi­cos. O olho humano ainda não es­tá treinado para absorver da tela do computador o mesmo tanto que absorve do livro de papel. Quando estamos olhando coisas no computador, na maioria das ve­zes estamos lidando com material visual ou material pouco denso. Textos narrativos, técnicos, densos requerem um meio mais estático para a boa absorção. Mas acreditamos que se trata de uma característica evolucionária. Por séculos, habituamo-nos à leitura em livros físicos. E só agora, só muito recentemente, nosso cérebro e nos­so nervo óptico estão começando a lidar com um ambiente diferente. Leva tempo.
Veja - Com o mundo ficando cada vez mais digital, as pessoas têm vindo menos à Bibliote­ca do Congresso?
Roberta Shaffer - Infelizmente, o movimen­to hoje é menor. Mas, além disso, há outra questão que nos preocupa. As pessoas hoje têm uma tendência a confiar em qualquer resultado que a ferramenta de pesquisa Ihes oferece como sendo "a me­lhor resposta". Isso é preocupante. É a an­títese de como a Biblioteca do Congresso gosta de oferecer informação. O conheci­mento tem círculos concêntricos e a res­posta que oferecemos está no centro do círculo, mas há todo um entorno. Nossa missão é dizer: "Esteja alerta sobre todas as ondulações ao redor da resposta cen­tral, todas as ondulações que tiveram im­pacto ou estão de algum modo relaciona­das com o tema da sua pesquisa". Na in­ternet, por exemplo, as pessoas dependem do que Ihes é servido sem saber como a informação foi selecionada. As pessoas não olham para trás. Isso é perigoso. É o que chamamos de "falácia do algoritmo".
Veja - É possível reverter essa tendência apesar da popularização crescente do GoogIe, da Wikipedia?
Roberta Shaffer - Felizmente, sim. A Biblioteca do Congresso nunca esteve envolvida com en­sino elementar ou médio. Mas, nos últimos dez anos, passamos a trabalhar com crianças desde o jardim de infância até o último ano do ensino médio. Estamos ten­tando ensinar aos alunos, desde a mais tenra idade, como é uma boa pesquisa. No site da biblioteca, oferecemos uma sé­rie de planos de ensino nos quais mostra­mos como trabalhar com fontes primárias, o valor de acessar um material original e não já previamente digerido. Tentamos de­monstrar que uma mesma palavra pode ter tido um significado no século XIX e outro no século XX. É uma forma de mostrar a importância do contexto. Sobretudo, a ideia é treinar as crianças a não aceitar a primeira resposta que salta na tela do computador. É preciso ser cético, duvidar.
Veja - Apesar de tudo, as pessoas estão lendo mais?
Roberta Shaffer - Temos duas tendências assustado­ras nos Estados Unidos. Uma é o analfa­betismo. Há gente aprendendo por outros meios - auditivo, visual. Não há a mesma pressão para ler de quando éramos uma sociedade estritamente textual. A outra tendência é gente que sabe ler, mas não lê. Só lê on-line, e-mails, blogs. Não faz leitura em profundidade. Considero uma tendência assustadora.
Veja - A senhora lê livros digitais?
Roberta Shaffer - Leio de tudo. Viajo muito no meu trabalho e, antes, leva­va sempre uma mala de livros. Agora, ando com meu leitor eletrônico carregado de coisas que podem me interessar. Levo ma­terial clássico, contemporâneo, pilhas de jornais e revistas. Mas, talvez devido a mi­nha idade, vejo que minha leitura eletrôni­ca é superficial. Quando quero fazer uma leitura densa, mais concentrada, prefiro re­correr aos livros impressos.
Veja - Qual o acervo da biblioteca em termos de livros digitais?
Roberta Shaffer - É uma coleção pequena, ainda, porque não colecionamos leitura popular, a menos que tenha algum valor para pesquisa, nem material didático. Es­ses dois critérios excluem grande parte do que está sendo produzido em formato di­gital. Mas temos um acervo de 158 mi­lhões de itens em mais de 420 línguas. Não temos apenas livros. Temos filmes, fo­tografias, músicas, manuscritos, partituras, notações coreográficas, uma fenomenal coleção de mapas. A biblioteca é aberta a todos, não cobramos nada nem pergunta­mos o motivo da pesquisa. Qualquer um pode vir até aqui, qualquer um pode ver os cadernos de Galileu, tocar numa carta escrita por George Washington. Acredita­mos que o conhecimento não é o domínio apenas da elite financeira ou intelectual. Fico orgulhosa do meu país por oferecer isso. Considero a Biblioteca do Congresso um exemplo fabuloso de democracia.

Revista Veja

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