Documentos inéditos mostram como os serviços de espionagem das ditaduras transformaram escritores de esquerda em elementos de alta periculosidade, que estariam conspirando contra o regime dentro e fora do Brasil
Sempre que uma ditadura se instala, intelectuais e artistas automaticamente entram para a lista de figuras suspeitas e se tomam alvo de vigilância e perseguição, aberta ou velada, por sua capacidade de influenciar o público com ideias contrárias ao regime. Não foi diferente no Brasil, que atravessou dois períodos ditatoriais no passado recente - o Estado Novo, entre 1937 e 1945, e os governos militares, de 1964 a 1985. Mas, até recentemente, muitos detalhes desse cerco àqueles que se supunha estarem ligados à subversão continuavam encobertos pelo sigilo oficial. Uma história que, com a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação, em maio passado, começa a vir à luz. Durante semanas, VEJA se debruçou sobre um calhamaço de documentos até então inéditos, que se referiam justamente aos escritores "marginados" - assim chamados pela polícia política porque seus nomes eram sempre grafados na margem das fichas que lhes diziam respeito.
Guardado desde a década de 30 no Arquivo Nacional e no Arquivo do Estado do Rio, o conjunto de papéis revela que, por cinco décadas, nomes como Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto e Rubem Braga tiveram a vida íntima e a trajetória profissional esquadrinhadas não só pelas duas ditaduras, mas também pelos governos eleitos entre elas. Informações provenientes de correspondências violadas e de agentes infiltrados alimentaram relatos infundados, e por vezes até delirantes, sobre o grau de periculosidade desses intelectuais - que, sim, eram de esquerda, mas não estavam engajados em atos subversivos. A rede de monitoramento se estendia da Delegacia de Segurança Política e Social, criada no Estado Novo de Getúlio Vargas e extinta alguns anos depois, ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Polícia Federal, e contava com quadros do Itamaraty para vigiar de perto os passos dos suspeitos fora do país. A criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), no regime militar, agregou a esse aparato os órgãos de inteligência das três armas, agentes infiltrados em instituições públicas e privadas e ainda o serviço de censura. "Apesar de fantasiosas, essas informações muitas vezes serviam como prova em 8 processos contra os escritores", diz o historiador Álvaro Andreucci. A seguir, a história contada segundo a ótica dos espiões oficiais.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
Período era que foi investigado: Estado Novo, governo Dutra e ditadura militar.
O que já se sabe: foi funcionário do Ministério da Educação e Saúde no Estado Novo. Deixou o cargo e se aliou aos comunistas, tomando-se um dos diretores do jornal do partido, Tribuna Popular. Meses depois, rompeu com o grupo, afastou-se da militância, voltou ao serviço público e nele permaneceu até se aposentar.
O que os arquivos revelam: no Estado Novo, mesmo trabalhando num ministério, Drummond (na foto, em seu gabinete) era monitorado de perto. Em um documento reservado, aparece como colaborador de uma revista comunista vigiada pela polícia. No fim do governo Vargas, o Partido Comunista o lançou candidato a deputado federal, à sua revelia- Drummond registrou em diário ter recebido o convite, mas não aceitou. Mesmo assim, os arquivos mostram que a vigilância se intensificou, com novas e criativas denúncias. A ficha do escritor informa que, em 1948, ele era funcionário da Companhia Siderúrgica Nacional (nunca foi) e ali fazia discursos comunistas (o que nunca aconteceu).
Na eleição de 1955, Drummond é descrito como "um dos chefes da propaganda do Sr. Kubitschek". Pois ele não só não fez campanha para Juscelino como votou em seu adversário, Juarez Távora. Em 1974, o SNI tentou provar que ele integrava um "núcleo de subversão" dentro da Fundação Getúlio Vargas, onde fora convidado para ser paraninfo de uma turma. Em 1979, um relato registra que o poeta visitou na cadeia Alex Polari, um dos sequestradores do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. Polari diz que nunca recebeu essa visita.
João Cabral de Melo Neto (1920-1999)
Período em que foi investigado: Estado Novo, governo Dutra segundo governo Vargas e ditadura militar.
O que já se sabe: funcionário do Itamaraty, foi afastado por quase dois anos, em 1953, sob a acusação de envolvimento com atividades comunistas, mas acabou absolvido. Declarava-se de esquerda, mas nunca participou de movimentos políticos.
O que os arquivos revelam: o afastamento do Itamaraty não foi um ato isolado. Entre 1940 e 1970, João Cabral foi alvo de cinco investigações que buscavam confirmar acusações de subversão e comunismo — algumas grotescas. Em 1945, em carta à futura mulher, Stella, que morava no Paraguai, usou duas siglas interpretadas como código secreto de espionagem, em plena II Guerra Mundial. Interrogado, esclareceu que G.D.M. queria dizer "gosta de mim?" e M J.G.V. era "mas eu já gosto de você". Quando ele trabalhava no Ministério da Agricultura, em 1961, sua ficha de dezesseis páginas datilografadas dizia: "Informações seguras através de fonte absolutamente idônea revelam que elementos reconhecidamente comunistas, em posições de influência estão agindo livremente no ministério (...), sendo o marginado um dos mais destacados". Nada se comprovou, mas o escritor teve de prestar seguidas explicações. A última investigação é de 1983, quando ele chefiava a embaixada no Equador. Afirma o documento secreto: "O embaixador faz uso constante de aspirina para combater persistente dor de cabeça e tem exagerado na ingestão de bebidas alcoólicas". João Cabral ficou no cargo até a aposentadoria, em 1990.
Jorge Amado (1912-2001)
Período em que foi investigado: Estado Novo, governo Dutra, segundo governo Vargas e ditadura militar.
O que já se sabe; foi preso duas vezes durante a ditadura de Vargas e teve livros queimados em praça pública. Deputado pelo Partido Comunista, foi cassado em 1948. Escreveu apologias dá esquerda, mas, em 1956, afastou-se do PC e da militância política.
O que arquivos revelam: a polícia política tinha convicção de que Jorge Amado participava de uma ampla conspiração quando, em 1948, o PC foi posto na ilegalidade e ele, cassado, partiu para o exílio voluntário na Europa. Um documento reservado diz:
"O senhor Jorge Amado vai articular-se com os elementos que, sob os auspícios diretos do Kremlin, supervisionarão a ofensiva russa na América do Sul e estimularão a quinta-coluna vermelha, dentro dos planos revolucionários do governo russo". Um mês depois, sua casa no Rio de Janeiro foi revistada por agentes, que levaram parte do seu Arquivo. Até hoje, nem a família sabia do paradeiro do material apreendido, que repousa no Arquivo do Estado do Rio; Entre os papeis, há correspondência privada dois originais datilografados com correções a caneta: o esboço de uma peça de teatro e o primeiro roteiro do filme Estrela da Manhã, lançado em versão definitiva em 1950.
Rubem Braga (1913-1990)
Período em que foi investigado: Estado Novo e ditadura militar.
O que já se sabe: foi preso duas vezes no Estado Novo por suas crônicas contra o regime. Era casado com a militante comunista Zora Seljan, mas nunca se ligou ao partido. Aproximou-se dos militares na II Guerra Mundial, quando cobriu como jornalista as atividades da Força Expedicionária Brasileira na Itália.
O que os arquivos revelam: o escritor foi alvo de um pedido de punição inédito, protocolado por um ex-companheiro da FEB, o general Andrade Serpa. Em janeiro de 1969, ao ser interrogado pelo general, Braga repetiu o que sempre escrevia em suas crônicas: "Acha a falta de liberdade de imprensa, como se verifica atualmente, um erro(...) Discorda dos atos institucionais e das violências praticadas em nome da revolução". Foi embora certo de ter esclarecido sua posição, mas os arquivos mostram que estava enganado. O general Serpa encaminhou um processo ao Conselho de Segurança Nacional, pedindo a cassação de seus direitos políticos por dez anos e a proibição de exercer a atividade de cronista. "A ação do marginado necessita de urgentes medidas de resguardo da dignidade militar e do próprio Governo. Seus escritos fazem parte da campanha permanente em prol da mudança do regime atual para o marxismo-socialismo", diz o relatório. O documento foi enviado ao ministro da Justiça e chegou às mãos do então secretário-geral do Conselho, João Baptista Figueiredo, que não deu segmento ao caso.
Revista Veja
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