Começa a voltar às livrarias A Comédia Humana, o ambicioso ciclo de romances com que Honoré de Balzac fundou o realismo e retratou a França de seu tempo
Para um jovem francês de 20 anos, aluno medíocre e filho de funcionário público, a profissão de notário era das mais promissoras que o século XIX poderia oferecer. Os pais do rapaz entusiasmaram-se quando um amigo ofereceu ao filho o cargo de assessor em um cartório, com a promessa de que depois de alguns anos este se tornaria propriedade do aprendiz. Para desespero da familia, porém, Honoré de Balzac (1799-1850) recusou a generosa oficina em prol de uma quimera: queria ser escritor. De forma relutante,seus pais lhe deram um voto de confiança, permitindo que ele fosse morar em um quartinho alugado em Paris enquanto exercitava a pena. Passados pouco mais de vinte anos, no prefácio de 1842 para o longo ciclo de
contos, novelas e romances que batizou de A Comédia Humana o homem
que não quis ganhar a vida em um cartório sugere que a tarefa do escritor é ”fazer concorrência ao registro civil”. Com sua profusão de tipos das mais variadas profissões (padres, médicos, donas de pensão, aspirantes a artista, financistas), procedências (de Paris, das províncias e de fora da França, incluindo um personagem brasileiro em A Prima Beue) e extrações sociais (pobres diabos, burgueses, nobres decadentes, e muitos, muitos arrivistas), esse prodigioso painel literário, composto de 89 livros, foi escrito em cerca de vinte anos de serões estimulados por muito café. Pedra fundamental da literatura moderna, A Comédia Humana ganhou, em meados do século passado, uma edição brasileira exemplar, digna de sua monumental idade. Reeditada em 1989 e desde há muito fora de catálogo, a tradução coordenada pelo exilado hl1ngaro Paulo Rónai retoma agora às livrarias pela Biblioteca
Azul, selo da Editora Globo.
A edição original foi publicada de 1946 a 1955 pela antiga Globo de Porto Alegre (a editora amal de mesmo nome, pertencente às Organizações Globo, tem sede em São Paulo). Eram dezessete volumes, organizados segundo o plano de Balzac e traduzidos para o ponuguês por um corpo de tradutores que incluiu os poetas Mario Quintana e Carlos Drummond de Andrade (ambos, aliás; participaram também de outra tradução heróica de um clássico francês publicado pela Globo: Em Busca do Tempo Perdido. de MareeI Proust). O próprio Rónai, embora fosse um especialista em Balzac (veja o quadro ao lado), não traduziu nenhum deis livros, mas revisou os textos, impôs padrões – uniformizando nomes de personagens e lugares -, escreveu introduções esclarecedoras para cada um dos 89 livros e elaborou cerca de 12000 notas para auxiliar o leitor. A reedição que começa agora, também em dezessete volumes, deve se completar em dois anos. Já estão nas
livrarias os volumes de I a 4 (com 872, 832, 912 e 768 páginas, custam, cada um deles, 74.90 reais). Correspondem à seção que Balzac intitulou Cenas da Vida Privado e trazem dois dos romances mais populares do ciclo: O Pai Goriot e A Mulher de Trinca Anos. O primeiro é magistral; o segundo, uma obra menor do autor, que deve sua fama ao fato de ter popularizado o adjetivo “balzaquiana” para se referir, de forma meio cafajeste, a mulheres maduras mas ainda, digamos, ativas (hoje ali balzacas já estão na casa dos 50). Em março do ano que vem, devem ser publicados Cenas da Vida Provinciana mais três volumes, que incluem romances célebres como Eugênia Grande e Ilusões Perdidas.
O leitor não precisa se preocupar com essas divisões, em boa medida arbitrárias. Ilusões Perdidas, cuja ação se passa em pane na província, em pane na capital, bem poderia estar em Cenas da Vida Parisiense – que igualmente poderia abrigar quase todos os livros lançados agora nas cenas privadas. Quando Balzac começou a escrever esses livros.,.pelo fim dos anos 1820, não tinha ainda uma noção de conjunto. Foi só em 1833que teve a ideia de um ciclo romanesco que capturasse a história da vida e dos costumes da França contemporânea. “Saúdem-me, pois estou seriamente na iminência de me tomar um gênio”, disse então, ao entrar na casa de sua irmã Laure Surville. Seu esforço desmesurado foi o de criar, pelo meio da ficção, não só um retrato, mas uma espécie de simulacro perfeito da sociedade francesa. A ilusão de vida “real” que as páginas da Comédia transmitem é reforçada pelo expediente de fazer com que os diferentes personagens transitem de um livro para o outro. Um exemplo: uma certa senhor Finniani que dá titulo a um conto o novela curta reaparece em papel secundário em O Pai Gortot (as notas de Rónai, aliás, ajudam muito a mapear esse personagens transeuntes). O leitor d Comédia conta com a liberdade de os livros na ordem que desejar, de puk títulos e até volumes. Mas a experiência do ciclo de BaIzac ganha em profunda de e prazer com a leitura de pelo me nos uma meia dúzia de livros, quando então se forma nitidamente o alcance d forma inventada pelo escritor.
Dândi que tomava senhoras da na pobreza (em geral casadas) como amante e alternava a vida frívola de Paris cor temporadas de isolamento, trabalho cafeína em localidades da província Balzac calcou seus personagens na a servação direta de tipos sociais. O já citado A Sra. Firmiani consiste e
grande parte de um catálogo aleatório dessas categorias: os Duques, os Invejosos, os Flanadores, os Tolos. Por graça do duplo dom do testemunho pessoa e da recriação ficcional, Balzac tomou se – ao lado do contemporâneo Stendhal – um pilar-do realismo. Ante deles, não era comum que os escritores se voltassem com seriedade e sem filtros idealizadores para os aspectos mai comezinhos da vida cotidiana. Balzac sobretudo, foi o grande cronista do pó der ascendente do dinheiro como mol mestra da sociedade burguesa. Com uma minudencia tão vulgar quanto deli ciosa, ele se detém sobre todo tipo di cifras: rendimentos, salários, dívidas Informa que o desgraçado Goriot, que dilapida sua forruna para sustentar ~ dispendioso estilo de vida das filhas in gratas, entrou na pensão Vauquer ocupando confortáveis aposentos por 120
francos mensais, mas depois de alguns anos foi obrigado a se transferir par: um cubículo de 45 francos. É sensacional a morte do avarento pai de Eugênio Grandet na hora da extrema-unção. E tenta se agarrar ao crucifixo que o cura da aldeia lhe apresenta – não por devoção, mas porque a peça é feita de prata
Não estranha que. com:esse exame crítico dos mecanismos,pecuniários da sociedade francesa, BalIa· se tomasse, um dos escritores tavoIkos da dupla
Marx e Engels. Mas não tinha a mínima simpatia pela revolução, e nem
mesmo pela republica. “Escrevo à luz de duas. Verdades eternas a religião e a
monarquia”, clamou Ao modo de tantos artistas Tom Anticos mas parasitários de sua obra (sobretudo Rastignac, que aparece em vários livros), Balzac tinha uma fascinação quase patológica pelos hábitos e instituições periclitantes da nobreza ao tempo da restauração monárquica. Seu nome.de batismo seria “Honoré Balzae”, e não “de Balzac”a partícula “de”, marca nobiliárquica, foi uma de suas muitas imposturas. Esnobe, vivia endividado. Antes da fama como escritor, perdeu muito dinheiro tentando se lançar como editor e impressor. O sucesso de público de obras como a escandalosa (para a época)
Fisiologia do Casamento teria bastado para saldar todos os débitos e ganhava autor uma vida para lá de confortável;~ c era um esbanjador
compulsivo, sempre comprando bibelôs, móveis, tapetes para seu apartamento
em Paris. Figura das mais extravagantes entre tantos excêntricos que povoam a história natural, Balzac era, segundo o contemporâneo Baudelaire, o maior personagem de Balzac. A comparação, porém, é temerária: sua galeria de personagens passa de 3000.
“O que ele não pôde cumprir com a espada, eu o acabarei com a pena”. Inscreveu Balzac sob uma estatueta de Napoleão Bonaparte que tinha em seu gabinete. Essa ambição desenfreada realizou-se: Honoré de Balzac é o imperador do realismo.
REvista Veja
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