quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Entrevista - Marta Azevedo

O contato com a cultura africana que a fotógrafa brasileira Marta Azevedo teve veio por meio do seu olhar de menina e, depois, na adolescência, quando ia visitar os parentes que moravam no bairro carioca de Madureira, que fica junto ao morro da Serrinha. Lá, Marta teve acesso ao samba (quando os morros e as favelas ainda cultuavam o samba de raiz), a umbanda e o jongo. Esses elementos da cultura e da religiosidade africana ficaram entranhados dentro dela e permaneceram vivos em seu olhar. "Sempre tive o desejo de mostrar o estilo de vida dessa etnia tão marcante", revela. E lá se foram dez anos para realizar o projeto do livro, com 108 fotografias em preto e branco. Marta fotografou negros, homens e mulheres, do Brasil e dos Estados Unidos, alguns africanos recrutados pela internet. Foram 107 fotos de pessoas anônimas, quase todas humildes. A única pessoa famosa fotografada foi a atriz Ruth de Souza que, segundo a fotógrafa, foi muito gentil e solícita.
Por que esse trabalho foi realizado durante dez anos?
Quando idealizei o trabalho, eu morava aqui no Brasil. Depois fui para os Estados Unidos e lá conheci um americano. Me casei com ele. Por conta disso, fui morar lá de vez. As primeiras fotografias que tirei para esse projeto foram utilizando luz natural e eram coloridas. Não gostei do resultado e do conceito que usei nelas. Essas fotografias eram comuns e não tinham conceito definido e próprio, parecidas com o que se fazia. Então, refiz o conceito do projeto. Comecei a tirar as fotos no estúdio, com duas luzes, uma sombrinha e um fundo preto. E foi aí que nasceu o que está agora no livro Black Faces.
Qual foi a fotografia mais antiga que você usou no livro?
A primeira foto é de uma menina de Uganda que mora em Dallas, nos Estados Unidos. Essa foto é de 2007. Fotografei negros do Brasil e dos Estados Unidos. Não fui para a África. Mas nos Estados Unidos fotografei alguns africanos. No Brasil, apenas um rapaz que nasceu em Angola. A maioria dos africanos foi de sudaneses, mas há angolanos, nigerianos e ugandeses.
Você notou diferenças significativas entre os afrodescendentes americanos dos brasileiros? Dá para ver isso nas fotografias?
Muitas diferenças! Os negros americanos são muito mais agressivos dos que os brasileiros. Eles têm mais atitudes. Os negros brasileiros são mais humildes dos que os negros americanos, que se impõem mais. Acho que essa diferença de atitude se dá por causa da segregação, que nos Estados Unidos foi bem mais forte do que no Brasil. Mas se você olhar as fotos não vai perceber essas diferenças culturais, pois as pessoas posavam para mim, que já tinha uma concepção dessas fotos. Usei elementos da cultura e da religiosidade africana, como o candomblé, a umbanda, as miçangas, a palha e a argila. Como a influência da religião africana é quase inexistente nos Estados Unidos, procurei usá-los mais nos brasileiros.
Aproveitando que você está falando em religiosidade africana, como os negros americanos absorveram essas divindades religiosas?
Como eu falei, quase não se percebe a influência cultural e religiosa do continente africano nos negros americanos. Como você deve saber, quase todos pertencem a religiões protestantes. Eles só falam em Jesus e em Deus, não é como aqui que os negros falam de divindades africanas, como Oxum, Ogum, Iansã. Eles não sabem o que é isso. Para você ter uma ideia, tive que dar aulas de geografia e de história para os negros americanos. Eles não conhecem quase nada do continente africano. Não conhecem os países, não sabem da música de lá, de sua religião, dos costumes, da política. Você não vê nenhum elemento da cultura africana nos negros americanos. Mas como eu fotografei negros africanos nos Estados Unidos, tive como usar esses elementos. O que é paradoxal é que lá há muitos livros, documentários e programas de televisão que falam sobre a escravidão, sobre a cultura africana, mas os afrodescendentes não tomam conhecimento.
Por ser branca, você foi alvo de desconfianças por parte dos negros que fotografou?
De jeito nenhum, eles me trataram muito bem, tanto os negros daqui do Brasil quanto os dos Estados Unidos. Quando ia começar a fotografar, os negros americanos me falaram que eles não gostavam de brancos, mas não tive nenhum incidente com eles. O trabalho foi tão bacana que ganhei muitos amigos.
Como essas pessoas chegaram a você?
Eu recrutei a maioria pela internet. Coloquei um anúncio no meu site e aí elas foram chegando. No site tinha fotografias de outros trabalhos meus para eles terem uma ideia do que esperar. Muitas das pessoas que fotografei querem ser modelos e a maioria era formada por pessoas humildes.
Quantas fotografias entraram no livro? A maioria era de homens ou de mulheres? Por que você optou por pessoas anônimas?
Foram 108 fotografias. Acho que está meio a meio entre homens e mulheres. Em relação a minha opção por pessoas anônimas, digamos que não foi uma opção, não tive escolha mesmo. O acesso a pessoas famosas é difícil. A única pessoa famosa que entrou foi a atriz Ruth de Souza, que veio por meio de uma amiga que, na época, estava fazendo um documentário sobre ela. Mas tinha muita vontade de fotografá-la, pois ela é uma grande personalidade, uma grande atriz, a primeira mulher negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Uma mulher e tanto...
Lembro que quando a convidei, ela prontamente disse que sim e eu perguntei quando poderia ir à casa dela para tirar as fotografias. Ruth disse: "Que tal amanhã?" Foi muito bom trabalhar com ela, disposta, não reclamou de nada, uma grande dama, um grande ser humano, uma grande atriz. Ela, inclusive, foi ao lançamento do livro aqui no Rio de Janeiro.
Você pode citar alguma fotografia especial no livro?
É difícil dizer. Gostei de ter feito todas elas. O que eu poderia dizer, nesse sentido, é que gosto muito de trabalhar com argila. Então, as fotografias que tiveram esse elemento foram especiais. A argila deixa as expressões faciais mais fortes, mais expressivas. Usei argila também no corpo de alguns fotografados, mas na maioria usei no rosto.

O que as pessoas que você fotografou acharam do resultado do trabalho?
Todas elas gostaram muito, não tive nenhuma reclamação (risos), pelo menos foi o que disseram.
Houve algum incidente com alguém fotografado?
Teve um incidente que não foi apenas com uma pessoa, mas com cinco. Aconteceu aqui no Brasil. Quando eu pedi para eles usarem os elementos com que estava trabalhando nas fotografias, por exemplo, a fitinha do Senhor do Bonfim, se recusaram, dizendo que aquilo era coisa do demônio. Eles tinham aprendido isso nas igrejas evangélicas que frequentavam. Então, nem pude mais mostrar os outros elementos do candomblé e da umbanda, imagina o que eles iam achar de mim?
O que acha dessa intolerância religiosa atual?
Fiquei surpresa com essa negação da própria cultura e religião deles. Eu falei para eles que aquilo era um absurdo, pois não podiam negar suas raízes, suas histórias. Não imaginava que as igrejas evangélicas tinham crescido tanto no Brasil. Nos Estados Unidos isso fez parte da história da formação da nação deles, mas aqui não. Espero que pare por aí essa intolerância absurda.
Isso afetou de alguma forma seu trabalho?
Não, de jeito nenhum. Essas cinco pessoas não quiseram ser fotografadas e pronto, as substituí por outras, paciência. Mas diante da constatação dessa intolerância religiosa que está existindo no Brasil, mandei trocar no texto do livro a palavra candomblé pela palavra fé, para evitar algum tipo de problema.

REvista Raça Brasil

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