segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Te Contei, não ? - O salvador da ilusão



Toda vez que relemos O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha ou lemos este ou aquele ensaio pertencente ao incontável conjunto de textos críticos da obra-prima de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), assalta-nos a renovada sensação do que nela existe não apenas de revolucionário ou de fundador, mas também de permanente, de universal, de contemporâneo. Muito mais do que as obras do inglês Geoffrey Chaucer (c.1343-1400) e do francês François Rabelais (1494-1553), a de Cervantes situa-se numa encruzilhada entre um mundo que desaparece e outro que surge, e sua decisiva contribuição à gênese do espírito moderno somente é comparável àquela que nos deu o teatro shakespeariano. Assim como William Shakespeare (1564-1616), Cervantes está acuado entre a maré montante da Renascença e o refluxo da Contrarreforma. A ele só restava uma única tábua de salvação para mantê-lo à tona: o humanista holandês Erasmo de Roterdã (1466-1536), que teve vasta influência na Espanha do século XVII. De fato, a educação formal de Cervantes deve muito a Juan López de Hoyos, um dos maiores erasmianos da época, e três temas são comuns ao filósofo e ao romancista: a dualidade da verdade, a ilusão das aparências e o elogio da loucura.
A obra de Cervantes está situada no período de transição histórico-filosófica que corresponde ao ponto de tangência entre a baixa Idade Média e as primeiras luzes da Renascença. A derrota de Dom Quixote é a derrota da fé num mundo já sem fé, ou o protesto da vida contra a razão, o que caracterizaria a personagem cervantina como um herói da fé idealista contra o racionalismo utilitário. Cervantes é um idealista cuja consciência lhe ensina que a sua fé é pura ilusão diante da realidade, e esta convicção chegará à profundidade do idealismo filosófico de um Descartes ou de um Kant, quando Dom Quixote diz a Sancho Pança que a bacia de um barbeiro é o elmo de Mambrino – o rei mouro ficcional celebrado nos romances de cavalaria, com seu capacete de ouro que o tornava invulnerável. Cervantes foi capaz de transformar o seu protesto de humanista plebeu contra o Barroco aristocrático numa visão humorística da vida, e foi esse humor que lhe permitiu resolver a contradição entre a prosa e a poesia, entre a ficção e a verdade, entre a realidade e a ilusão. Ninguém ignora a profunda e duradoura influência que Dom Quixote exerceu na literatura ocidental. Afinal de contas, Cervantes é o criador do romance moderno, e já se disse que “toda prosa de ficção é uma variação sobre o tema de Dom Quixote”, ou seja, o problema da aparência e da realidade.
Como em toda a América Latina, Dom Quixote chega ao Brasil durante o florescimento do Barroco, cujos conceitos e práticas foram trazidos pelos colonizadores portugueses e espanhóis. Na época da Conquista, o Brasil só conhece a Idade Média e a Renascença graças aos seus desdobramentos espirituais e artísticos, como o foram o Barroco tardio, o Maneirismo e o Iluminismo. O Cervantes que nos alcança é o da vertente realista do Barroco, ou seja, aquela de que se alimentam a literatura picaresca e a sátira de costumes. Não surpreende, assim, que a primeira manifestação de influência do Dom Quixote entre nós possa ser percebida no poeta satírico Gregório de Matos, que domina toda a literatura barroca durante o século XVII, num poema escrito entre 1684 e 1687:

Uma aguilhada por lança
Trabalhava a meio trote.
Qual o moço de Dom Quixote
A que chamam Sancho Pança.

Neste mesmo poeta há outra referência a Cervantes no soneto que ele dedicou ao “Tabelião Manuel Marques”, cujo verso final diz que “manhas tem de Dom Quixote”. E no século XVIII, o dramaturgo Antônio José da Silva, cognominado “O Judeu”, condenado à fogueira pela Inquisição, escreveu a ópera jocosa “VidadeDomQuixotedelaMancha”, composta em duas partes e estreada em outubro de 1733 no Teatro Beira Alta, em Lisboa.
No Romantismo, que entre nós se seguiu ao Arcadismo e se opôs ao neoclassicismo do século XVIII, arrefeceu o interesse por Cervantes na nossa literatura, que só retorna com o advento do Realismo e do Naturalismo. Assíduo e atento leitor do Dom Quixote foi Machado de Assis, que o lia com frequência numa edição anotada pelo escritor espanhol Dom Eugenio de Ochoa, publicada em Paris pela Livraria Garnier. O interesse do escritor pela obra-prima cervantina já era visível mesmo antes da consolidação da estética realista, mais exatamente durante o período de produção da terceira e última geração romântica, como se pode observar num poema de exaltação ao conhaque, publicado na Marmota Fluminense em 12 de abril de 1856, no qual se lê:

Cognac inspirador de ledos sonhos,
Excitante licor do amor ardente,
Uma tua garrafa e o Dom Quixote
É passatempo amável.
Machado de Assis alude a Cervantes e ao Dom Quixote inúmeras vezes em sua obra ficcional, particularmente no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de 1881; nos contos “Teoria do medalhão”, incluído em Papéis avulsos, de 1882, e “Elogio da vaidade”, pertencente ao volume Páginas recolhidas, de 1889, além de diversas crônicas de jornal publicadas na segunda metade do século XIX. Numa delas, datada de 1876, Machado de Assis propôs “a organização de uma companhia literária, no Rio de Janeiro, somente para editar Dom Quixote com as famosas ilustrações de Gustave Doré”.
No início do século XX, foi renovado esse interesse por Cervantes graças a uma famosa palestra do poeta parnasiano Olavo Bilac, depois publicada em espanhol e coligida no volume Conferências literárias. Em 1936, Monteiro Lobato publica o seu Dom Quixote para crianças. É de 1951 o ensaio “Com Dom Quixote no folclore brasileiro”, de autoria de Luís da Câmara Cascudo, incluído na primeira edição integral da obra de Cervantes entre nós, a cargo da Editora José Olympio, a mais poderosa e prestigiada do país naquela época. O fascínio pelos temas cervantinos pode ser ainda rastreado em ensaios de diversos autores, incluindo Augusto Meyer, Pinto do Carmo, Oliveira e Silva, Osvaldo Orico, Francisco Campos, Otto Maria Carpeaux e Josué Montello.
Também a prosa de ficção que se escreveu no século passado no Brasil revela, em alguns casos, inequívoca influência do Dom Quixote. Prova disso é o romance Fogo morto, de José Lins do Rego, publicado em 1943 e no qual o personagem Vitorino Carneiro da Cunha é uma espécie de Dom Quixote do sertão nordestino. Além deste, quatro ficcionistas se deixaram embeber pelos temas cervantinos: Lima Barreto, Dalton Trevisan, Autran Dourado e Ariano Suassuna.
Entre os poetas brasileiros contemporâneos que pagam algum tributo ao mito de Cervantes, lembremos Alphonsus de Guimaraens, Manuel Bandeira, Augusto Frederico Schmidt e, mais do que qualquer outro, Carlos Drummond de Andrade. Drummond nos legou, sob o título de Quixote e Sancho de Portinari, um conjunto de 21 poemas originalmente escritos para um livro de arte com desenhos do grande pintor Portinari e depois recolhidos na coletânea poética As impurezas do branco, publicada em 1973.
A obra de Cervantes povoa o imaginário dos poetas, dos ficcionistas, dos historiadores, dos sociólogos, dos juristas e dos críticos literários. Mas foi em dois extensos e notáveis ensaios que a verdadeira dimensão romanesca e o mais profundo significado filosófico e literário de Dom Quixote encontram a mais cabal compreensão entre nós. O primeiro desses ensaios é o que escreveu Clodomir Vianna Moog sob o título de “Decadência do mundo medieval: Cervantes”, incluído no volume Heróis da decadência, publicado em 1939 e no qual o autor de Dom Quixote é estudado ao lado de Petrônio e Machado de Assis.
Vianna Moog analisa Cervantes sobretudo dos pontos de vista do humor, do idealismo puro e do conflito entre o ideal e a realidade. Comenta ele a certa altura: “Enfim tornara-se também madura a antiga Ibéria para a floração do humor. E é precisamente na cavalheiresca Espanha que, por uma singular fatalidade, há de aparecer um grande, um autêntico, um insuperável humorista, quiçá o maior de todos os tempos: Cervantes.” E logo adiante: “Não, não há exagero. Cervantes é o maior de todos os humoristas. Com ele o humor se integra em todos os caracteres com que ainda hoje se apresenta.”
Observa ainda o ensaísta que no humor de Rabelais, como no de Petrônio, “encontra-se apenas aquilo que se chama o senso do contrário”, enquanto no de Cervantes “há mais do que isso: há o que Pirandello denomina sentimento do contrário”. É bem de ver que, diante de um cavaleiro munido de lança, viseira erguida, tendo por elmo uma bacia de barbeiro e percorrendo o mundo a doutrinar sobre a necessidade de restabelecer os ideais da cavalaria andante, Rabelais, como pondera Vianna Moog, “não seria capaz de conter aquela gargalhada ostentória que o celebrizou. Cervantes é diferente: adivinha a alma do cavaleiro, e sente-se que no seu riso há um sentimento de imensa compaixão pelo ridículo de Dom Quixote”.
O outro ensaio, originalmente uma conferência pronunciada no Rio de Janeiro por ocasião do quarto centenário do nascimento de Cervantes, é de autoria de San Tiago Dantas e foi publicado em 1948 com o título de Dom Quixote: um apólogo da alma ocidental. O herói cervantino é tratado como símbolo do sentido que o próprio Quixote adquiriu ao refletir-se na consciência ocidental, nela se tornando uma “fábula construtiva” e um “episódio exemplar”. Sublinha o autor do ensaio que ficamos perplexos diante da “irresistível comicidade do Quixote”: esse “homem sem sorriso, esse modelo de gravidade, essa regra de comedimento e de pudor, cujas ações jamais deixaram de ser um móvel justo, ainda que ilusório, em um ser que pacientemente sofreu e testemunhou por tudo que se impôs a si mesmo, é uma fonte indiscutível, permanente, irresistível de riso”. Segundo San Tiago Dantas, o que fez Cervantes foi extrair o sentido de um tema literário que já se encontrava esgotado, transformando-o em mitologia e, assim, reencontrando o tempo perdido.
Cabe talvez ao filósofo espanhol Ortega y Gasset, como salienta San Tiago Dantas, ter dito a palavra que nos decifra a comicidade do Quixote quando escreve, em suas Meditacionesdel Quijote, que “do querer ser ao crer que já se é vai a distância do trágico ao cômico. Esse é o pacto entre o sublime e o ridículo”. Ou, em outras palavras, querer salvar é sublime, mas julgar-se um salvador é ridículo. “Eis por que”, ensina o ensaísta brasileiro, “nos servimos da expressão quixotismo, ora para exaltar uma virtude, ora para denunciar uma fraqueza.” O quixotismo não é uma forma perene do heroísmo espanhol, mas é, sem dúvida, sustenta o ensaísta, “a mais pura e original, e a que, em certo sentido, representa a síntese da tradição heroica com o cristianismo”.
O amor de Dulcineia del Toboso – símbolo e síntese do amor cavalheiresco – é, de acordo com o ensaísta, um dos pontos de partida para a compreensão do amor, tal como o tem entendido o espírito moderno”. Segundo San Tiago Dantas, o amor moderno se revela sobretudo em duas vertentes fundamentais: “ o amor do Dr. Fausto por Margarida, ou o amor titânico; e o amor de Dom Quixote por Dulcineia, ou o enamoramiento”. Diz ainda o ensaísta brasileiro: “A fidelidade – o polo para onde tende o ideal de amor – é o atributo do amor do Quixote. O amor de Fausto é infiel, pois, em meio às satisfações perfeitas do amor, no peito do homem titânico medra o desejo de libertar-se.” Para San Tiago Dantas, o que o Quixote nos transmite é “uma lição de purificação do mundo pelo heroísmo, não por um heroísmo de tipo hercúleo, mas por um outro feito de fé inatingível, de pureza perfeita, e por um atributo que a todos resume – o dom de si mesmo”. É esse dom que salva o Quixote, levando-o a triunfar de seus fracassos e enganos pelo exemplo que semeou na consciência dos tempos futuros.

Ivan Junqueiraé poeta, ensaísta e tradutor, membro da Academia Brasileira de Letras.

Saiba Mais - Bibliografia
MEYER, Augusto. “Aventuras de um mito”. In A chave e a máscara: ensaios. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1964.
SAN TIAGO DANTAS, Francisco Clementino. Dom Quixote: um apólogo da alma ocidental. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
VIANA MOOG, Clodomir. “Decadência do mundo medieval: Cervantes”. In Heróis da decadência. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1939.

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