No ano em que o bloqueio americano completa meio século, o país vive um momento ímpar — fascinante e dramático —, a meio caminho entre o socialismo que morreu e o capitalismo que ainda não nasceu
Quando perdeu o marido, a aposentada Mercedes Miguez, 60 anos, decidiu se mudar. Estava recebendo 70% da pensão do marido, podia morar num imóvel melhor. Passou a assistir ao Canal Habana entre as 4 e 5 da tarde. No programa Revista Hola Habana, há um quadro sobre imóveis disponíveis na cidade. Os apresentadores dão as características gerais — localização, número de cômodos — e o telefone do morador do imóvel. Aparentemente, o programa cumpre sua finalidade de viabilizar pequenos negócios, mas deve ser o único caso no mundo em que a TV é usada como se estivéssemos na era do rádio: os apresentadores leem os anúncios classificados no ar, enviados pelos interessados. Não falam de preço. Pior: a leitura é apresentada na grade da emissora como um programa apenas para permuta de imóveis, e não para compra e venda.
É um exemplo modesto — embora eloqüente na sua simplicidade — das dificuldades de transitar em uma economia inteiramente estatizada, em que até o flanelinha dos estacionamentos é servidor público, para uma economia de mercado. A TV não dá nenhuma informação sobre o mercado, a atividade de corretor de imóveis é ilegal. Os compradores não têm financiamento. Desde que o governo permitiu a compra e venda de imóveis, os cubanos tentam entrar no mercado. A aposentada Mercedes Miguez teve sorte: mudou-se para a nova casa em 21 de setembro. Mas não é fácil. Apesar de proibida, a corretagem existe — aos sábados, os corretores se reúnem no Paseo del Prado, ao ar livre. O preço oficial dos imóveis corresponde a um terço do real. São tantas as disfunções que a maioria das pessoas continua recorrendo à antiga permuta. Na transação, quem troca uma casa pior por uma melhor desembolsa a diferença — un vuelto, como dizem os cubanos, pago sempre por baixo do pano.
Cuba começou a mudar de curso com a troca da guarda octogenária. Fidel Castro, 86 anos, passou o poder para o irmão mais novo, Raúl Castro, 81 anos. Em 2008, Raúl virou presidente de Cuba e, desde o ano passado, acumula o cargo de secretário do Partido Comunista. Soltou mais de 100 presos políticos, assinou a convenção da ONU sobre direitos humanos e começou a introduzir reformas econômicas — não por convicção, mas por necessidade. Além de imóveis, os cubanos agora podem comprar e vender carros, abrir pequenos negócios, contratar empregados e trabalhar como autônomos — e, por alguma razão, todas as velhinhas pobres decidiram vender amendoim nas ruas. Apresentadas assim, as novidades sugerem uma transformação radical. Mas aqui se entra no universo dúbio, difuso, quase impenetrável no qual os cubanos oscilam entre o mundo oficial e o mundo real.
Os carros, por exemplo. Cuba tem uma frota de 600 000 veículos, com média de idade de quinze anos. Agora, os cubanos podem comprar e vender carros, mas apenas usados. Os preços costumam ficar em tomo de 3 000 a 5 000 dólares, uma fortuna para os padrões locais. A média salarial em Cuba é de 20 dólares. Também não existe financiamento de automóvel. A burocracia é infernal. Para completar, os salários são pagos em “pesos cubanos”, mas a gasolina só é vendida em “pesos conversíveis", que valem 24 vezes mais. Resumindo: o cubano pode comprar carro, mas só usado, só à vista e só pagando combustível em moeda forte.
Em outubro, o governo anunciou a tão esperada liberdade de viajar para o exterior. Mesmo quem não tem dinheiro para comprar uma passagem aérea para Miami festejou a decisão. O jornal oficial, o Granma, esgotou-se nas bancas. Os cubanos não precisam mais pedir permiso de salida nem apresentar a famigerada carta de inviración, o convite de um estrangeiro para o cubano visitar seu país. Agora, basta ter o visto de entrada no país de destino. A medida entra em vigor em 14 de janeiro. Mas há restrições severas. Todos os passaportes terão de ser “atualizados”, o que dá ao governo a oportunidade de negar atualização a quem quiser. Um passaporte novo custará 100 dólares, ou cinco meses de salário. Além disso, a lei proíbe a saída de profissionais da saúde, pesquisadores, atletas e oposicionistas para evitar uma fuga de cérebros. "Cuba só vai perder trabalhadores não qualificados", diz um diplomata. Resumindo: viajar é livre, mas não é.
Os carros, por exemplo. Cuba tem uma frota de 600 000 veículos, com média de idade de quinze anos. Agora, os cubanos podem comprar e vender carros, mas apenas usados. Os preços costumam ficar em tomo de 3 000 a 5 000 dólares, uma fortuna para os padrões locais. A média salarial em Cuba é de 20 dólares. Também não existe financiamento de automóvel. A burocracia é infernal. Para completar, os salários são pagos em “pesos cubanos”, mas a gasolina só é vendida em “pesos conversíveis", que valem 24 vezes mais. Resumindo: o cubano pode comprar carro, mas só usado, só à vista e só pagando combustível em moeda forte.
Em outubro, o governo anunciou a tão esperada liberdade de viajar para o exterior. Mesmo quem não tem dinheiro para comprar uma passagem aérea para Miami festejou a decisão. O jornal oficial, o Granma, esgotou-se nas bancas. Os cubanos não precisam mais pedir permiso de salida nem apresentar a famigerada carta de inviración, o convite de um estrangeiro para o cubano visitar seu país. Agora, basta ter o visto de entrada no país de destino. A medida entra em vigor em 14 de janeiro. Mas há restrições severas. Todos os passaportes terão de ser “atualizados”, o que dá ao governo a oportunidade de negar atualização a quem quiser. Um passaporte novo custará 100 dólares, ou cinco meses de salário. Além disso, a lei proíbe a saída de profissionais da saúde, pesquisadores, atletas e oposicionistas para evitar uma fuga de cérebros. "Cuba só vai perder trabalhadores não qualificados", diz um diplomata. Resumindo: viajar é livre, mas não é.
Com uma realidade nebulosa, os cubanos desenvolveram la doble moral " - para cada situação, uma moral. Com salários baixos e carências cada vez maiores, a ilha virou o país do desvio. Desvia-se charuto da fábrica para vender nas ruas. Desvia-se remédio do hospital para vender aos vizinhos. Desvia-se tudo. Um abastado morador de Havana conta que não se acham cloro nem algicida no país para tratar água de piscina. Para resolver seu problema, ele contratou um piscineiro, que sempre tem os produtos à disposição. “Ele os desvia de algum lugar"’, especula o dono da piscina. “Deve cuidar da piscina de algum hotel, que provavelmente importa os produtos químicos".
A “bolsa negra" é um mercado ilegal em que se negociam os itens da cesta básica, distribuídos pelo governo. O abastecimento está melhor do que há dois anos. Os agricultores, que antes eram obrigados a vender toda a safra ao estado, agora podem negociar com verdureiros, que compõem uma das 181 atividades autorizadas pelo governo. Mas a cesta básica, apesar disso, emagreceu. É comum que só haja arroz, óleo e açúcar. Faltam pasta de dente, sabonete, macarrão, leite. “É uma tragédia", diz o senhor que esteve em duas missões militares, ambas em Angola, e hoje dirige um Chevrolet de 1951 como motorista de táxi, outra das 181 atividades agora legais. Ele paga ao governo um imposto mensal e mais 10% sobre o faturamento. Sem taxímetro no carro, como o governo controla o faturamento? Ele abre os braços e escande as sílabas: "Es io-do una men-ti-ra”.
Apesar de meio século de socialismo e ditadura, Cuba não combina com as novelas de John Le Carré, mas é bom cenário para a Macondo de Gabriel Garcia Márquez, a cidade fantástica de Cem Anos de Solidão. Onde mais o encarregado de receber e passar recados telefônicos aos vizinhos seria um nonagenário mudo, vítima de um câncer de garganta? Onde mais a moradora de um cortiço pouparia todo o dinheiro extra para dar uma festa de aniversário a uma boneca negra? Em que outro lugar um teatro com uma es-
plêndida arquitetura, meio em reforma e meio em ruínas, apresentaria um espetáculo dirigido por uma bailarina cega? “Sala Garcia Lorca apresenta 23. Direção geral de Alicia Alonso.” Onde mais um senhor idoso percorreria o Malecón, famosa orla de Havana, à noite, badalando uma sineta, carregando duas imagens de São Lázaro e pedindo esmolas para o santo? E, na falta da esmola, oferecendo mulheres? Las más baratas de La Habana." Em que outro lugar se encontraria um dublê de carola e cafetão?
plêndida arquitetura, meio em reforma e meio em ruínas, apresentaria um espetáculo dirigido por uma bailarina cega? “Sala Garcia Lorca apresenta 23. Direção geral de Alicia Alonso.” Onde mais um senhor idoso percorreria o Malecón, famosa orla de Havana, à noite, badalando uma sineta, carregando duas imagens de São Lázaro e pedindo esmolas para o santo? E, na falta da esmola, oferecendo mulheres? Las más baratas de La Habana." Em que outro lugar se encontraria um dublê de carola e cafetão?
Nada é linear nessa Cuba que vive numa encruzilhada, entre o socialismo que morreu e o capitalismo que ainda não nasceu. Na teoria marxista-leninista, não existe transição do socialismo para o capitalismo. Numa marcha inevitável, o socialismo chegaria à sua etapa superior, o comunismo, e reduziria o capitalismo a cinzas da história. Formada no marxismo-leninismo, a elite comunista de Cuba não sabe como caminhar na transição. Não tem modelo, bússola. Às vezes avança. Às vezes recua, tateando um caminho que seja diferente do da ex-União Soviética e parecido com o do Vietnã e da China, que adotaram o mercado privado sem abandonar a ditadura de partido único.
Havana está cri vada em prédios decrépitos. Uma lata de tinta custa uma fortuna. Uma grua numa construção é uma imagem raríssima. A pobreza e a prostituição, duas mazelas que a revolução prometeu extirpar, estão por todos os lugares. No ano em que o embargo econômico americano completa meio século, a elite dirigente de Cuba segue usando o “bloqueio genocida” como desculpa para sua catástrofe. No entanto, o país já esteve bem melhor, mesmo com bloqueio. Com a ajuda soviética, teve sucessos notáveis na saúde e na educação. Agora, essas conquistas estão desmoronando. As matrículas na escola secundária estão abaixo do pico de 25 anos atrás. Há escassez de remédios. Profissionais de saúde, com o arrocho salarial, estão deixando a atividade. A desigualdade já foi parecida com a da Noruega. Hoje, é igual a do Chile.
Revista Veja
Nenhum comentário:
Postar um comentário