domingo, 21 de abril de 2013

Crônica do Dia - Quem arrumará a cama ?

 
PEC do trabalho doméstico mexerá num tipo de trabalho especial. O modo como essa nova norma foi anunciado ao povo brasileiro, pelo presidente do Senado, dá uma medida de sua importância e, simultaneamente, revela mais uma etapa deste momento de profundas e inesperadas transformações sociais que vivemos.
Falo em transformações, porque a lei redefini­rá, a seu estilo, a administração da casa brasileira. Geralmente, as leis são feitas para a rua, deixam de lado o mundo doméstico. As leis são feitas para o cidadão, não para o pai de família, para a mulhèr independente, para o filho e, no caso, para a em­pregada doméstica. Elas não atingem nossas rotinas diretamente. Eis que a lei das domésticas sacudirá o edifício da vida social, começando com os tradicio­nais elos entre os gêneros.
Se a lei pegar, seremos forçados a olhar o sis­tema de subordinação entre o masculino e o fe­minino. A mulher secularmente inserida numa rede de subordinações (pai, irmão, marido, filhos, patrões); o homem surgindo como elemento do­minante no papel de mediador entre a porta da casa e o vasto e insano universo da rua, por onde entram todos os problemas. Se o masculino é re­presentado como dominante, não se pode esque­cer o poder dos fracos. E o poder da mulher, até o advento vagaroso da democracia igualitária entre nós, torna-se claro quando se observa que ela é a "dona da casa". É dela a gestão da vida doméstica e, certamente, da religiosidade e da sexualidade, no lar. O "machão" tudo podia, só não podia falhar ou, pior que isso, chorar. Os homens controlavam, mas - em compensação - eram cobrados pelo que podiam ou não "botar" dentro de casa. Se fossem descuidados, viravam "cornos" e perdiam a hon­ra (situada no comportamento da mulher e das filhas). Se deixassem surgir alguma feminilidade no seio de aço de suas masculinidades, estavam perdidos.
Uma rígida divisão de serviços tem marcado, no Brasil, homem e mulher. De tal forma que os patrões jamais passavam uma camisa, pregavam um botão ou sequer entravam na cozinha (um lugar só de mu­lher). Pela mesma lógica, não cuidavam dos filhos nem das panelas ou dos temperos. Não falarei em troca de fraldas ou "dar mamadeira", porque cuidar de filhos não fazia parte dos papéis masculinos.
Hoje, dentro da lenta transformação promovida pelo movimento feminista que nasceu em socieda­des igualitárias, e com essa nova lei que promove um insuspeitado igualitarismo, as mulheres farão - espero - muito mais. Casa e rua se misturarão ao lado das tarefas masculinas e femininas. O mundo não acabará, simplesmente ficará mais misturado e mais interessante.
O Brasil mudará. Para entender as consequências dessa norma que chega de fora para dentro, sem nenhuma investigação ou campanha, é preciso aquilatar como cada sociedade local reage a novidades tidas como universais ou adiantadas. No caso do Brasil (uma sociedade aristocrática e escravocrata), a modernização igualitária dos gêneros foi acolchoada com o emprego de mulheres para prestar serviços domésticos e maternais. Homens e mulheres são iguais e trabalham na mesma repartição. Mas, se na rua somos todos iguais, como manda o figurino democrático, em casa há uma outra mulher fazendo o papel de esposa e de mãe - uma babá -, que cuida dos nossos filhinhos, desempenhando o papel das antigas aias, amas e escravas da casa. Essas aias "republicanas" têm a seu lado cozinheiras, lavadeiras, passtdeiras, arrumadeiras e copeiras.
É esse, para mim, o maior mérito da nova lei. Seu alvo é o trabalho doméstico, mas ela mexerá com quem faz o que em casa; e transformará em problemas contábeis e gerenciais hábitos tomados como naturais pelo entrincheirado estabelecimen­to machista nacional. A principal questão dessa lei não é seu espírito, mas seu corpo: os detalhes de sua regulamentação. Uma casa não é uma em­presa. E a diferença não está na discussão etérea de mais ou menos valia do trabalho doméstico. A questão repousa sobre um fato: o lar não tem alvo produtivo, exceto sua perpetuação num certo nível de conforto.
Outro ponto é concentrar-se naquilo que causou horror a John Luccock, um comerciante inglês que viveu no Rio de Janeiro no início do século XIX: a intimidade entre empregados (na época, escravos) da casa e seus patrões, sobretudo no caso das mulheres, que tiravam piolhos umas das outras, numa proximidade física que chocava o inglês de extração social impessoal e igualitária. Como regular, eis o problema, e formalizar aquilo que é buscado e pago porque é pessoal, como o carinho com as crianças (no caso das babás), a comida saborosa (no caso das cozinheiras) e a limpeza eficiente, ainda dever sagrado da mulher no Brasil? Como transformar a casa numa empresa se a casa, no Brasil, tem sido seu justo oposto?
Finalmente, cabe uma cautela. A norma que nossos democráticos Senadores promulgaram (sabemos que eles têm ajuda de custo para seus empregados domésticos e motoristas) mexe com valores centrais da vida brasileira e ajuda a politizar um diálogo nem sempre pacífico entre lei e costume. Essa tensão ocorre porque - como ocorreu com a Lei Seca, a Lei da Ficha Limpa, agora acontecerá com a Lei da Biografia e, queira Deus, em muitas outras novidades, como o fim da prescrição de certos crimes cometidos por autoridades - esse elo negativo é muito forte. Há, no Brasil, um notável descompasso entre leis perfeitas, anunciadas para realizar o progresso e proclamadas para o bem do povo, e as práticas sociais do povo, em geral, e dos legisladores, em particular. Daqueles que fazem as leis, mas que são os primeiros a não cumpri-las. A ver...

Roberto DaMatta é antropólogo, autor de Carnavais, malandros e heróis (1979) e Fé em Deus e pé na tábua (2010)

 

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