terça-feira, 30 de abril de 2013

Crônica do Dia - Da qualidade dos argumentos

Ninguém pode reclamar da ausência de debate público no Brasil. Qualquer assunto é fartamente discutido por aqui. Das predileções amorosas da cantora Daniela Mercury à ajuda do governo aos negócios de Eike Batista, discutimos de tudo um muito, com megafones e holofotes. Nem sempre, porém, o falatório prima pela racionalidade. Com frequência, dá-se o oposto. Os argumentos são abundantes em quantidade, mas uma negação em qualidade. O resultado são conclusões disparatadas, quase malucas, que não guardam nenhum nexo lógico com o que se postulava no início.
 
Para ilustrar o que foi dito acima, seguem-se três historinhas:
 
1. A PRIVATIZAÇÃO AO CONTRÁRIO
 
Entre os anos 1980 e os anos 1990, a bandeira da privatização ganhou força no Brasil. Engajadas, as autoridades encontraram um argumento infalível para convencer o povo. "Essas empresas estatais só dão prejuízo para o Estado", diziam. E logo brandiam a solução: "Vamos vendê-las e, assim, pouparemos dinheiro para investir em saúde e educação". Ora, quem poderia ser contra mais saúde e mais educação? Devidamente autorizadas pela opinião pública, as autoridades foram ao mercado e venderam o que puderam. Depois, vieram prestar as devidas contas para a mesma opinião pública. Deu-se, então, um diálogo mais ou menos assim:
- E então? - perguntou a opinião pública - Vocês venderam as empresas estatais como tínhamos combinado?
- Sim, vendemos - responderam as autoridades.
- Venderam as que davam prejuízo para os cofres públicos, poupando recursos para a saúde e para a educação?
- Não - as autoridades disseram, didaticamente. - Nós até que tentamos, mas no final só vendemos as que davam lucro. As que davam prejuízo ninguém quis comprar.
Não importa se você é contra ou a favor da privatização. Qualquer que seja sua opinião, você há de se lembrar muito bem. Aquele debate foi estridente, intenso, volumoso - e malfeito, muito malfeito, sustentado em premissas irrelevantes ou meramente oportunistas. Tanto que, até hoje, o país não tem clareza a respeito - e até hoje estamos aí nos batendo em torno de um assunto que tinha tudo para ter sido superado.
 
2. A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
 
Volta e meia, a grita volta. E, volta e meia, os dois lados também voltam com postulados sem sentido. "É preciso  reduzir a maioridade penal para 16 anos", dizem os que querem encarcerar garotos. "Os adolescentes de 16 a 18 anos são usados pelas quadrilhas para praticar assaltos justamente porque não podem ser presos." Ora, mas se a estratégia do crime for mesmo essa, tão logo seja reduzida a maioridade para 16 anos, as quadrilhas começarão a empregar garotos de 15, certo? E então? Teremos de reduzir um pouco mais a maioridade? Até 14 anos? Até 12? Por que não 8?
Não, o argumento não vale.
Os defensores do outro lado agridem igualmente a lógica. "Não podemos mandar os menores de 16 anos para a cadeia", afirmam. "A cadeia é uma escola do crime, e lá os meninos não se recuperarão nunca." Eis aqui outra alegação casuística, esperta. Quer dizer que se o sistema carcerário fosse minimamente decente eles concordariam com a redução da maioridade? Não concordariam. Portanto, o argumento também não procede.
Fora isso, se as cadeias brasileiras Jã? o horror que são, o problema não está na futura detenção de garotos de 17 anos, mas no atual confinamento de meninos de 18,19,20. E o que fazem os defensores dos adolescentes infratores para melhorar as cadeias? Será que são a favor de "prisões medievais" apenas para ter um argumento a mais contra a redução da maioridade penal?
 
3. A CAMPANHA CONTRA O DEPUTADO FELICIANO
 
Desde que o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) virou presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, as manifestações contra ele não cessam. Em parte, com razão. As declarações anteriores de Feliciano sobre homossexuais e sobre negros (segundo ele, amaldiçoados na Bíblia) mostram que ele não tem a formação necessária para exercer o cargo. De outra parte, os manifestantes também incorrem na estreiteza. "Quem negociou a ida de Feliciano para a comissão foi o governo, para ampliar a base política", afirmou com precisão Marina Silva, em entrevista a ÉPOCA na semana passada. Quem desprezou a causa dos direitos humanos não foi Feliciano (ou não foi só ele), mas o acordo pré-eleitoral que o colocou lá. Portanto, os verdadeiros responsáveis pela eleição de Feliciano deveriam ser chamados a sanar o constrangimento que criaram.
Disso, porém, o argumento se esquece.

Revista Época

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