quinta-feira, 11 de abril de 2013

Te Contei, não ? - Um time que transpira música

Leonardo Lichote


Chico Buarque: dono do campo, cérebro do time
Foto: Agência O Globo / Marcelo Theobald
Chico Buarque: dono do campo, cérebro do time Agência O Globo / Marcelo Theobald



RIO - Em campo, dezenas de referências musicais. A linha atacante é apelidada gloriosamente de “Trio Elétrico”. O “estádio” é o Centro Recreativo Vinicius de Moraes. A escalação da pelada é repleta de cantores, compositores e instrumentistas. O time, diz um deles, “joga por música, como um Barcelona mais criativo e com menos vigor físico, um slow motion Barcelona”. Outro compara o papel de cada um ali ao integrante de uma orquestra (“Tem que ter o spalla, que é o craque”). Politheama, o escrete montado por Chico Buarque há 35 anos — em sua versão de carne e osso, porque antes disso era seu time de futebol de botão — e que joga religiosamente três vezes por semana no Recreio, transpira música (além do suor, sob o sol das 14h). Consciente disso, Silvio Cesar aproximou as notas e a bola em seu recém-lançado CD “Agosto”, convidando quatro colegas de camisa para participações especiais: Chico Buarque, Carlinhos Vergueiro, Hyldon e Sombrinha. Nos cinco peladeiros, um tanto da alma do Politheama, como nota facilmente quem os vê jogar da pequena arquibancada.
A equipe da reportagem chega e, do campo, Sombrinha se dirige a ela no mesmo instante:
— Pode anotar aí, já marquei três.
Silvio Cesar desdenha:
— Sombrinha não é nem sombra do que já foi.
Em duas falas curtas, revelam-se as personalidades dos dois no campo. Sombrinha, classificado pelos colegas como o clássico “fominha” (“A primeira coisa que a filha dele falou foi: ‘Dá a bola, pai’”, brinca Hyldon). Silvio Cesar, frasista inspirado que solta mais aforismos que passes ao longo do jogo (um, histórico, dirigido a um jogador que respondeu a uma reclamação sua, foi: “Preferes a mentira? Boa bola”). A memória do Politheama guarda — além da inacreditável (mesmo) e famosa estatística de nunca ter perdido uma partida oficial — um longo anedotário sobre os dois jogadores:
— Tenho algumas frases, sim — conta Silvio. — Costumo dizer que tinha dois sonhos: jogar num time em que fosse o mais velho e o pior. Nunca consegui realizar o segundo.
Carlinhos Vergueiro (integrante do temido “Trio Elétrico”, ao lado de Chico Buarque e de Vinicius França, empresário do dono do campo) define Sombrinha como “um artista”:
— Se ele perder de 10 X 1 mas der duas canetas, umas pedaladas, para ele está ótimo. Uma vez, (o então candidato a prefeito do Rio, Marcelo) Freixo esteve aqui jogando e gravando umas cenas. Sombrinha deu uma caneta nele, ficou todo feliz e disse a ele: “Relaxa, pode editar”.
Vergueiro é descrito por Hyldon como “o melhor passe do Politheama”.
— Como o próprio Carlinhos costuma dizer, o último passe antes do gol é sempre dele — comenta o autor de “Na rua, na chuva, na fazenda”.
O elogio é devolvido por Vergueiro — que mantém a precisão mesmo depois de ter rompido os ligamentos dos dois joelhos. Foi ele quem “contratou” Hyldon para o time titular do Politheama, por suas qualidades como zagueiro — Chico o apelidou de Dimas, o bom ladrão da Bíblia, por suas roubadas de bola.
— Contrato sempre zagueiros e goleiro bons para relaxar lá na frente — explica Vergueiro.
Independentemente da atuação de cada um na pelada, Chico é a estrela do Politheama — discreta, sem ostentação, mas estrela. Ausente do jogo há um tempo, recuperando-se de contusão, o compositor é lembrado pelos colegas como figura central da pelada:
— Jogando futebol, ele aplica toda a inteligência que a gente conhece do compositor. Ele volta bastante, é o que mais ajuda a defesa. E é o cérebro do Politheama, um time que joga com tática, faz a bola rolar, como um jogo de xadrez — afirma Hyldon, o que comparou o grupo ao Barcelona. — E é um agregador, leva o time a sério.
Vergueiro transcende o campo ao falar do amigo, com quem joga desde 1975 — antes portanto da fundação do Centro Recreativo Vinicius de Moraes, em 1978.
— Chico é o responsável por esse mistério bonito que existe sobre o Politheama. O campo sempre foi aberto, sem porteiro, sem carteirada. E nunca houve problema. Sem falar nada, sem caderninho de regras, Chico mantém essa mágica.
O compositor criou o espaço com parte do dinheiro da renovação de contrato com sua gravadora. Era a música financiando o futebol — o início do cruzamento dos dois mundos no Politheama. O grupo de cinco do disco de Silvio Cesar é apenas uma parte disso. A pelada inclui artistas como Ruy Faria (ex-MPB4), Afonso Machado (Galo Preto) e Jorge Vercillo. E outros já passaram por lá, como Fagner, João Nogueira e Djavan — em meio a craques como Pelé e Pagão, grande ídolo de Chico (“Eu procurava imitar as jogadas do repertório dele, ele era que nem Tom na música”, já comparou o autor de “A Rita”, aproximando mais uma vez os dois universos). O compositor italiano Sergio Bardotti, amigo de Chico e versionista de suas canções, foi escolhido presidente. João do Vale, de “Carcará”, assumia o cargo interinamente na sua ausência, explica Vergueiro.
Bob Marley também jogou ali, em 1980 (“Os caras da banda dele eram meio grossos, mas ele era inteligente, jogava bem”, conta Vergueiro). E, durante os anos 1980, o bar do Severino, instalado no terreno do campo, sediou pagodes comandados por João Nogueira que se estendiam do fim da pelada até alta noite, com reforços como Clara Nunes e Roberto Ribeiro. Ali também, num encontro musical, Chico tentou fazer uma composição coletiva, com uma turma que incluía Edu Lobo, Francis Hime e João Bosco. A experiência não deu muito certo, mas o compositor saiu dali com o ponto de partida do que seria “Vai passar”.
Severino cuidou do espaço desde 1978 até o ano passado, quando morreu. Hoje, o responsável é seu filho Leandro Coutinho, de 28 anos. Cercado de fotos de diferentes formações do Politheama, troféus e uma camisa do Internazionale autografada por Ronaldo Fenômeno, a poucos passos de uma calçada da fama que tem os pés de craques como Pelé, Zico, Zizinho, Pagão, ele conta que cresceu testemunhando os encontros musicais, as peladas e as estratégias usadas pelo Politheama para se manter invicto (“Com alguns empates”, Chico costuma dizer).
— Quando o time está perdendo, eles sempre dão um jeito de arrumar um pênalti, Vinicius (França) chuta em cima de alguém para bater na mão... Já vi várias vezes — conta Coutinho. — E eles estendem o jogo (como comenta Hyldon, “o tempo é variável, às vezes uma hora pode ser uma hora e meia”) até o Politheama empatar ou virar. Uma vez, para acabar com isso, trouxeram um relógio para pôr na beira do campo. Num certo momento, Chico saiu do jogo e, sem ninguém ver, foi lá escondido mexer no relógio.
No disco de Silvio Cesar, Chico lê o texto “O sábio”. Na voz dele, as palavras sobre o homem experiente soam como autorretrato, mas Silvio escreveu para falar também de si próprio:
— É uma homenagem ao sábio do campo, o jogador mais velho do time. Eu sou o sábio do Politheama — diz Silvio, que responde de bate-pronto quando ouve a pergunta sobre qual o papel do sábio em campo. — Decorativo.
O lugar em que o tempo é relativo
“Agosto”, o nome do disco, é referência ao mês de inauguração do campo do Politheama e do nascimento de Silvio (em 1939). O compositor — já gravado por Roberto Carlos, Elis Regina e Gal Costa, entre outros — reuniu no CD canções inéditas que, em sua definição, “circulam em torno do campo de futebol e do mês de agosto”.
— Música e futebol dependem da mesma palavra-chave: harmonia — afirma de forma categórica o sábio do Politheama.
Hyldon aponta outra ideia central presente nos dois campos:
— Música é matemática. E futebol também, você fica o tempo todo fazendo cálculos, a velocidade em que o cara vai chegar na bola, o lugar em que você tem que se posicionar.
No campo do Politheama — o lugar em que o tempo é, retorcendo Einstein à brasileira, relativo — há poucas regras que carregam a clareza objetiva dos números. Bateu na mão é mão, não tem discussão sobre a intenção ou falta dela. A lei da vantagem não existe, ou seja, a falta para o jogo. E por reunir muitos músicos, que às vezes precisam fazer shows na noite da pelada, somado ao fato de quase nenhum deles ser mais um garoto de 40 anos, a pelada é tranquila, com pouco contato físico. O que não quer dizer que ela não exija do condicionamento físico dos atletas, como nota Hyldon:
— O jogo é de 13h até umas 15h. É muito quente. Já pedi ao Chico para botar para 16h, 17h. Ele diz que não e argumenta que, pelas estatísticas, nunca ninguém morreu nesse horário.

Jornal O Globo

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