terça-feira, 30 de abril de 2013

Te Contei, não ? - Memórias dos anos de chumbo

 

Assayas ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza de 2012
Foto: Divulgação / Agência O Globo
 
 
Olivier Assayas tinha apenas 13 anos de idade quando o mundo virou de cabeça para baixo, em maio de 1968. Era jovem demais para participar da onda de protestos e passeatas ou mesmo entender o que se passava na França naquele momento. Mas a História o alcançaria, pois o garoto das redondezas de Paris amadureceu à sombra da revolução que pretendia romper com os valores da sociedade, que se alastrou pelo planeta na década seguinte. Uma experiência tão marcante que, quatro décadas depois, é revivida pelo hoje diretor de 58 anos em “Depois de maio”, que chega aos cinemas cariocas na próxima sexta-feira.
Vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza de 2012, o filme é um recorte da geração que cresceu sob o impacto da contracultura e dos movimentos pacifistas, alimentada por literatura alternativa, música contestatória e cinema de vanguarda. A história começa em fevereiro de 1971 com um protesto na Place de Clichy, em Paris, inflamado por um trecho de Pascal lido em sala de aula (“Entre nós e o Paraíso ou o Inferno há somente a vida, que é a mais frágil das coisas do mundo”), e é contada do ponto de vista de Gilles (Clément Métayer), um estudante secundarista que descobre sua vocação para as artes ao mesmo tempo em que se engaja no ativismo político.
A herança do pai, Jacques Remy
Gilles é uma versão menos poética e idealista do protagonista de “Água fria” (1994), também chamado Gilles, o primeiro filme de Assayas sobre o que foi adolescer nos anos 1970. Ambos, no entanto, herdaram a bagagem biográfica do diretor, filho do roteirista e cineasta Jacques Remy (1911-1981), que estudou literatura e pintura durante as turbulências daquela década, antes de se voltar para a profissão do pai.
— “Água fria” oferece uma visão mais genérica e abrangente dos anos 1970 e da juventude da época, carregada de estereótipos sobre a década e, portanto, cheio de distorções. Confesso que, no início dos anos 1990, quando comecei a pensar em fazer um filme sobre aquele período, não estava preparado para voltar ao passado, como me senti agora — explica Assayas ao GLOBO, por telefone, de sua casa em Paris. — “Depois de maio”, ao contrário, oferece uma visão mais realista e específica daquele momento, definidor do caráter de uma geração e que influenciou as que vieram depois. Queria fazer um filme sobre a beleza da rebeldia dos anos 1970 e seus ideias de vida comunitária, de liberdade sexual e de antimaterialismo.
“Depois de maio” contempla diversos aspectos do comportamento da juventude que queria mudar o mundo. Gilles e seus amigos Alain (Felix Armand) e Jean-Pierre (Hugo Conzelmann) não medem esforços na tentativa de criar uma sociedade melhor: distribuem panfletos incendiários, contribuem para revistas de esquerda e pintam grafites nas paredes da cidade. Quando um segurança é gravemente ferido por um coquetel molotov durante uma das manifestações do grupo, Gilles e sua namorada Christine (Lola Creton) fogem para a Itália e, depois, para Londres. No percurso, o protagonista cruza com ativistas das mais diversas correntes político-ideológicas, do anarquismo ao maoísmo, passando pelos social-democratas.
Quando, em algum ponto do percurso, os estudantes começam a se dar conta de que a vida real também exige praticidade, eles gradativamente retornam à convivência dos pais, aos estudos e às carreiras que tanto almejam. Mas aí eles já tinham deixado sua herança no mundo: nos meses e anos que se seguiram, levantes se repetiram na Polônia e na então Tchecoslováquia, antigos domínios da União Soviética, em Chicago e no interior da Inglaterra. Um pouco mais adiante, e a sangrenta Guerra do Vietnã (1955-1975) finalmente chegaria ao fim. “Depois de maio” enfatiza a desilusão política e a descrença no individualismo daquela geração, o que pode sugerir um paralelo com a juventude de hoje, que participa do Occupy Movement (movimento internacional que luta contra a desigualdade econômica) ou que enche as fileiras da Primavera Árabe, que sacode o Egito e outros países daquela região.
Um mundo mais justo
Mas não é bem assim:
— Uma analogia do espírito revolucionários de “Depois de maio” com os tempos que vivemos pode ser bastante cruel, para ambos os lados. Nos anos 1970 não desejávamos apenas mudar a sociedade, mas virá-la de cabeça para baixo, recriá-la. Vivíamos a utopia de que podíamos mudar o mundo, amparados pela consciência de que fazíamos parte de uma história de transformações, como a Revolução Russa, a Guerra Civil Espanhola, a Revolução Chinesa. A juventude de hoje vê a sociedade como uma instituição incrivelmente poderosa, na qual tenta ao menos fazer algumas emendas. Ela deseja um mundo mais justo, mas dentro da estrutura em que vive. O que eu sinto nela é a falta de fé na História — compara o diretor.
“Depois de maio” chega aos cinemas apenas dois anos depois de outro mergulho de Assayas nos anos 1970, com a minissérie para a TV “Carlos” (também lançada em salas de cinema numa versão compacta, com pouco mais de cinco horas), que recria a ascensão e queda do carismático terrorista venezuelano conhecido como Carlos, o Chacal. Descrito por uns como um idealista e por outros como um mero mercenário, Carlos é considerado um dos mais poderosos símbolos da inquietação política e social daquela época, eterna fonte de inspiração para o cinema.
— Os anos 1970 foram fascinantes, do ponto de vista cultural e social, que trouxe transformações profundas na sociedade Ocidental. Foi uma década em que as utopias se enraizaram e acreditava-se em energia coletiva. Isso tudo se foi — analisa Assayas. — O que fiz com “Depois de maio” foi usar elementos autobiográficos dentro da perspectiva daquela geração.


Jornal O Globo

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