terça-feira, 30 de abril de 2013

Te Contei, não ? - O nascimento da cultura e do estilo de praia do Rio

Julia O’Donnel escreveu o livro após presenciar uma discussão Foto: Gustavo Stephan / Agência O Globo
 
 
Era um sábado de calor escaldante em Copacabana, em pleno verão de 2010. Em uma pequena rua do bairro, duas senhoras disputavam a mesma vaga de estacionamento aos gritos, vociferando farpas. O bate-boca encerrou-se de repente quando uma das mulheres sentenciou: “Não tem cacife para morar na Zona Sul? Volta para o subúrbio, então, que lá é o seu lugar!”. A cena chamou a atenção da antropóloga Julia O'Donnell, que agora, três anos mais tarde, lança o livro “A invenção de Copacabana” (Zahar), um profundo estudo da cultura praiana do Rio e do significado do tal “cacife” que cerca a Zona Sul da cidade — em especial os bairros litorâneos — no imaginário coletivo do carioca.
Tese de doutorado em antropologia social de Julia no Museu Nacional (UFRJ), o texto iria abordar, inicialmente, a urbanização do Rio na década de 1920. Em meio à pesquisa, a autora percebeu que o processo estava atrelado ao crescimento de Copacabana.
— O livro é uma metonímia. Copacabana foi o símbolo desse movimento para a região litorânea da cidade — diz Julia, paulistana cujo amor pelo Rio já tinha sido declarado em “De olho na rua: a cidade de João do Rio” (Zahar, 2008), mas que agora foi reafirmado ao longo das 255 páginas da nova publicação. — Sempre quis entender esse discurso que envolve morar na Zona Sul. É um discurso que supera o material, é um estado de orgulho. Algo muito particular do Rio.
Na tentativa de destrinchar o que significa inflar o peito para dizer que mora em Copacabana, Ipanema ou Leblon, a antropóloga se aprofundou no surgimento da cultura praiana do Rio. No livro, Julia derruba o mito de que esse espírito livre, leve e solto de ser do carioca sempre existiu e prova que o doce balanço a caminho do mar, na verdade, só foi visto com poesia e status depois de uma insistência maciça e artificial de tornar a praia — e o estilo de vida que a cerca — algo charmoso.
É o que Julia chama de “projeto praiano civilizatório”. Segundo ela, a ideia do Rio como uma cidade que tem a praia como um de seus pilares culturais foi totalmente construída:
— Na década de 1920, um grupo de pessoas, tanto do setor privado como do governo, proclamava que o uso da praia deveria ser constituído nos padrões europeus.
Surgiu, assim, o hábito de circular pelo calçadão, passar o dia na praia, cultuar o corpo, tostar no sol (antes, o bronzeamento era sinônimo de trabalhadores braçais) e desfilar uma moda praia que evoluía a cada verão — de trajes ultra pudicos ao maiô, as décadas de 1920 e 1930 em Copacabana viveram uma verdadeira revolução no quesito vestuário.
Em uma das passagens mais curiosas do livro, Julia descreve a reação revoltada, em 1930, do mesmo grupo que defendeu a cultura da praia. Tanto fizeram campanha, que a moda de fato pegou entre a população, pobres e ricos. E a turma que achava que as areias deveriam seguir padrões europeus a lá Biarritz, na França, ficou indignada. Em um trecho da revista “Beira-mar” de 1929, contido no livro, é evidente o preconceito com a popularidade, como aliás existe até hoje:
“Muitos levam cotoveladas vigorosas que põem equimoses na pele. Outros recebem pontapés dados por acaso, safanões sem destino... esse referver de criaturas, bem ou mal vestidas, limpas ou sujas, de todas as cores e nacionalidades, afeia os balneários, que, assim, se assemelham a praias habitadas de focas e não praias vaidosamente chamadas de elegantes. Balneários de capitalistas, de cozinheiros, de diplomatas, de chauffeurs, de artistas, em mistura, é possível que sejam democráticos, não, porém, elegantes.”
Recheado por belas imagens de época, como um Túnel Velho novo em folha, um Copacabana Palace sozinho na paisagem e um areal onde se veria, mais tarde, uma Avenida Atlântica espetada por arranha-céus, o livro é dividido em seis capítulos. O primeiro esmiúça a transformação do antigo areal num polo de atração de investimentos; o segundo discute como diferentes sujeitos incorporaram os bairros atlânticos ao seu cotidiano; o terceiro volta no tempo para tentar explicar o porquê desses bairros terem ganhado destaque; o quarto analisa os principais articuladores desse estilo de vida; o quinto trata do culto ao corpo, da moda e do consumo que surgiram; e o último foca na década de 1930 para falar do projeto civilizatório que transformou Copa em um território associado à modernidade e à elegância.


Jornal O Globo

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