Arnaldo Bloch
Dizem que é no trânsito que o ser humano mostra o pior de si. Junto com o ir e vir de carros, ônibus e motos, fluem o egoísmo, a burrice e a fúria.
Claro que toda essa insensatez está em outros lugares, se não em todos. Mas é nos fatos correntes do trânsito que ela assume sua expressão cotidiana mais corriqueira, identificável "a olho nu", testemunhada por quem vai, vê e passa.
As providências públicas são sempre exigidas e pouco tomadas, e os costumes, teimosos, resistem: se por um lado a Lei Seca freia impulsos, por outro centenas de táxis são equipados com sensores de pardais. Nos pontos cegos, enfiam o pé no acelerador para levar os apressados que bebem a seus destinos iniciais e finais. Dentro, mini-TVs, walkie-talkies, transmissores, sirenes, vozes e luzes negras produzem ambientes de confusão que, além do risco de vida e morte, assassinam funções cognitivas.
Os ônibus, continuam a "ligar o foda-se" - velha expressão, ainda bastante em uso, para designar o pisca-pisca dos grandões que só faz avisar que você será fechado violentamente e jogado para a outra pista de onde vem uma jamanta: o popular e sangrento sanduíche de automóvel. E, como há 30 anos, os buzuns fazem as mesmas curvas em alta em cima de viadutos e em túneis.
Párias do volante, os donos de carros, por sua vez, confundem o privilégio do seu conforto com uma condição delirante de cidadãos de primeira classe num safári urbano, esquecendo-se de que o transporte público é que atende à base da pirâmide, e que o transeunte, em última análise, é o Rei.
Onipotência é a substância que perpassa a mente e os nervos de todos os agentes espontâneos do caos, no trânsito ou fora dele. Mas é no trânsito que impulsos infantis de grandeza e poder ilimitado não só tomam conta de quem dirige (e de quem é transportado), como expressam-se em público cotidianamente.
A perversão, no trânsito, é transparente, mas só até certo ponto: assim como as difusas práticas do mercado financeiro, nas quais a posse dos valores a qualquer custo humano mistura-se na massa dos capitais, os brokers do trânsito usam seus fluxos multidirecionais para dificultar a apreensão dos detalhes de seus delitos.
A ópera de horrores do trânsito, nessa sua mistura de exibição com intangibilidade, guarda analogias também com o mundo do futebol, universo paralelo com leis próprias e relações sociais que, ao contrário de grande parte das atividades privadas, não sofrem ingerência decisiva dos poderes, a não ser quando estes precisam fazer uso, ou abuso, de sua fantástica máquina de mobilização. O trânsito, como o futebol, é um terreno onde também se consegue escapar à Lei permanentemente e flutuar num limbo de horror à margem dos poderes.
No trânsito, a burrice, que é mãe e filha da onipotência, dá show nos cruzamentos fechados, que não adiantam a vida dos sacanas e atrasam as dos milhares que vêm da transversal. Ou na ação do clássico imbecil que sai tesourando com tráfego lento e, ao parar no sinal, já está emparelhado de novo com o velhinho que ultrapassou e xingou lá atrás.
É no trânsito que playbas e infelizes em geral bufam como cavalos diante de qualquer obstáculo, e peço perdão aos equinos, inocentes de tudo. É nos transportes que o povo ainda se pendura em coletivos, repetindo, em escala de massa, o hábito do estribo de bonde. É no trânsito que o público entra às dezenas em vagões de metrô e trem sem qualquer cuidado, massacrando quem está lá dentro.
Nas motivações para a queda do ônibus 328, mesmo tendo em conta as responsabilidades da sociedade e dos poderes, e ainda que se considerem todos os fatos e se vá conhecendo os perfis do motorista e do passageiro agressor, o que transparece é a onipotência feita burrice: cada ato, ali, é quase uma fórmula matemática indicando as coordenadas para a calamidade.
Mas o que os move é a ilusão primária do poder sem limites: motorista e passageiro se veem desafiados e, diante do obstáculo, procuram uma solução para não ter que enxergar seus limites. Os limites estão claros: semelhantes cujas vidas estão em suas mãos, e as próprias vidas.
O paroxismo da cegueira e da burrice, então, desafiando qualquer resquício que houvera de razão, é o ato de chutar a cabeça do motorista, de quem seu destino depende, tirando-lhe a consciência.
Essa dinâmica, da qual o comportamento nos transportes é um painel vivo, não difere muito daquela de todas as relações. Na era do terceiro setor, das mobilizações e dos mutirões, do estímulo à autoorganização da sociedade civil, os impulsos individuais ainda prevalecem e mandam no jogo.
Eles se mantêm conectados às velhas práticas que não mudam sem uma transformação associada à formação educacional, único motor para a cidadania, essa palavra tão pronunciada e tão pouco apreendida.
Arnaldo Bloch é colunista do jornal O Globo
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