Mais interessada em miudezas domésticas do que em temas como a Abolição - assim era a princesa Isabel, de acordo com um novo relato de sua vida ao lado do conde
Jerônimo Teixeira
Em sua inflamada militância republicana, Rui Barbosa criou epítetos maldosos para o par que deveria ocupar o trono do Império do Brasil na sucessão de dom Pedro 11: "a princesa anulada e o príncipe invasor". Neto de Luís Felipe, rei francês deposto em 1848, Gastão de Orléans, o conde d'Eu (1842-1922), sempre suscitou desconfiança entre os súditos brasileiros por sua condição estrangeira - daí ser chamado, com exagero retórico, de "invasor". Deve-se supor que o conde, como invasor insidioso que era, seria o "anulador" da princesa Isabel (1846-1921). Nesse ponto, porém, a fórmula de Rui Barbosa descola-se da realidade psicológica da personagem: submissa primeiro ao pai e depois ao marido adorado, a figura que a história consagrou e idealizou como signatária da Lei Áurea, que deu fim à escravidão no país, era, por personalidade, uma criatura quieta e doméstica. O alheamento em relação à política, portanto, não era uma anulação, mas antes sua disposição de espírito mais natural. "Aqui nossa pequena vida é bem regular e bem tranquila", escrevia em 1889, às vésperas da queda da monarquia. A vida em comum do conde e da princesa, felizes no casamento e desafortunados na política, é reconstituída com graça e detalhe em O Castelo de Papel (Rocco; 320 páginas;
34,50 reais), da historiadora Mary DeI Priore.
Em obras como O Príncipe Maldito e Condessa do Barral - A Paixão do Imperador, Mary tem colocado uma rigorosa pesquisa de fontes - sobretudo, da correspondência dos protagonistas - a serviço de uma narrativa que, com a fluidez de um bom romance, equilibra a existência íntima e a relevância histórica de seus biografados. Seu livro anterior, A Carne e o Sangue, examinava a escandalosa relação de dom Pedro I com a marquesa de Santos. Se ali havia vulgaridade sexual e até violência doméstica, no novo livro imperam a serenidade e a compostura. Citadas ao longo de todo o livro, as cartas trocadas entre o conde francês e sua consorte brasileira confirmam a conhecida máxima de Femando Pessoa (aliás, seu heterônimo Álvaro de Campos): todas as cartas de amor são ridículas. Isabel mandava beijos em profusão e abusava dos diminutivos - uma das cartas ao marido vai assinada "sua pombinha, sua bonitinha, sua engraçadinha". Mas nada há, na correspondência, que permita espiar dentro da alcova do casal.
O matrimônio da princesa de Bragança e do conde da casa de Orléans foi, como era praxe nas casas reais então, resultado de uma longa negociação. Quando Gastão partiu para o Brasil, seu pai, o duque de Nemours, tinha esperança de que o filho se casasse com Leopoldina, irmã mais jovem de Isabel. Uma união com a princesa que não estava na linha sucessória imediata daria a Gastão mais liberdade para viajar à Europa sempre que lhe aprouvesse. Leopoldina, porém, ficou com Augusto, um primo do conde d'Eu. Gastão e Isabel viajaram ao exterior com relativa frequência. Muitas vezes o pai imperador pressionava o casal para que retomasse logo ao país - mas porque ele mesmo desejava passear pelo mundo. Eis a medíocre tragédia palaciana do Segundo Império: ninguém ali tinha muita disposição para as responsabilidades do trono.
Católica devota, filha e esposa amantíssima e obediente, Isabel, já casada, ainda pedia ao pai imperador que lhe dirimisse dúvidas de uma lição de história. "Faça o favor de me dizer o que se passou durante a guerra dos holandeses, que não pude lembrar outro dia", escreveu certa vez a dom Pedro II. Seu interesse pela abolição foi tardio, impulsionado antes por um vago sentimento de caridade cristã do que por real convicção ideológica. Mary cita cartas em que a futura "Redentora" fala de seus escravos com um descaso senhorial. Dizia Isabel sobre um "doméstico mulato": "Outro dia faltou ao serviço. Quando quiseram castigá-Io, ele se escondeu". O conde d'Eu tinha lá seus pendores liberais, mas nunca pôde exercê-Ios, alijado que foI do centro das decisões pelo sogro. Fiel a uma noção de honra militar muito própria dos Orléans, insistiu para lutar na Guerra do Paraguai - mas, quando afinal foi chamado à ação, hesitou em embarcar para Assunção. Apesar de sua inexperiência, acabou fazendo boa figura nos combates de Campo Grande e Peribebuí, entre outros. Bem mais tarde, sobretudo nos anos 1970, "revisões" esquerdistas da guerra pintariam o conde como um sádico. Dizia-se que ele mandara incendiar um hospital, o que não tem base em nenhum documento histórico. Mas, em Maldita Guerra, uma das obras mais abrangentes e respeitadas sobre a Guerra do Paraguai, o historiador Francisco Doratioto apresenta testemunhos sólidos de que o conde ordenou a degola de prisioneiros de guer~ ra em Peribebuí - circunstância que Mary DeI Priore omite.
O conde d'Eu aboliu a escravidão no Paraguai ocupado. Já no Brasil, embora tivesse ligações com abolicionistas - em especial, foi amigo de André Rebouças -, era adepto do "vamos deixar para depois". Uma vez assinada a Lei Áurea por sua mulher, o conde teve uma razoável presciência de que o regime estava condenado. "A Abolição cavou um poço entre a monarquia e as classes que a ajudavam a manter-se", disse. No exílio, na França, Isabel e Gastão foram atormentados pela morte de dois dos seus três filhos. O conde ainda tentou, sem sucesso, recuperar títulos nobiliárquicos franceses para os descendentes. Mas, afinal, cercado de netos, o casal usufruiu da paz doméstica que foi sempre sua ambição maior.
34,50 reais), da historiadora Mary DeI Priore.
Em obras como O Príncipe Maldito e Condessa do Barral - A Paixão do Imperador, Mary tem colocado uma rigorosa pesquisa de fontes - sobretudo, da correspondência dos protagonistas - a serviço de uma narrativa que, com a fluidez de um bom romance, equilibra a existência íntima e a relevância histórica de seus biografados. Seu livro anterior, A Carne e o Sangue, examinava a escandalosa relação de dom Pedro I com a marquesa de Santos. Se ali havia vulgaridade sexual e até violência doméstica, no novo livro imperam a serenidade e a compostura. Citadas ao longo de todo o livro, as cartas trocadas entre o conde francês e sua consorte brasileira confirmam a conhecida máxima de Femando Pessoa (aliás, seu heterônimo Álvaro de Campos): todas as cartas de amor são ridículas. Isabel mandava beijos em profusão e abusava dos diminutivos - uma das cartas ao marido vai assinada "sua pombinha, sua bonitinha, sua engraçadinha". Mas nada há, na correspondência, que permita espiar dentro da alcova do casal.
O matrimônio da princesa de Bragança e do conde da casa de Orléans foi, como era praxe nas casas reais então, resultado de uma longa negociação. Quando Gastão partiu para o Brasil, seu pai, o duque de Nemours, tinha esperança de que o filho se casasse com Leopoldina, irmã mais jovem de Isabel. Uma união com a princesa que não estava na linha sucessória imediata daria a Gastão mais liberdade para viajar à Europa sempre que lhe aprouvesse. Leopoldina, porém, ficou com Augusto, um primo do conde d'Eu. Gastão e Isabel viajaram ao exterior com relativa frequência. Muitas vezes o pai imperador pressionava o casal para que retomasse logo ao país - mas porque ele mesmo desejava passear pelo mundo. Eis a medíocre tragédia palaciana do Segundo Império: ninguém ali tinha muita disposição para as responsabilidades do trono.
Católica devota, filha e esposa amantíssima e obediente, Isabel, já casada, ainda pedia ao pai imperador que lhe dirimisse dúvidas de uma lição de história. "Faça o favor de me dizer o que se passou durante a guerra dos holandeses, que não pude lembrar outro dia", escreveu certa vez a dom Pedro II. Seu interesse pela abolição foi tardio, impulsionado antes por um vago sentimento de caridade cristã do que por real convicção ideológica. Mary cita cartas em que a futura "Redentora" fala de seus escravos com um descaso senhorial. Dizia Isabel sobre um "doméstico mulato": "Outro dia faltou ao serviço. Quando quiseram castigá-Io, ele se escondeu". O conde d'Eu tinha lá seus pendores liberais, mas nunca pôde exercê-Ios, alijado que foI do centro das decisões pelo sogro. Fiel a uma noção de honra militar muito própria dos Orléans, insistiu para lutar na Guerra do Paraguai - mas, quando afinal foi chamado à ação, hesitou em embarcar para Assunção. Apesar de sua inexperiência, acabou fazendo boa figura nos combates de Campo Grande e Peribebuí, entre outros. Bem mais tarde, sobretudo nos anos 1970, "revisões" esquerdistas da guerra pintariam o conde como um sádico. Dizia-se que ele mandara incendiar um hospital, o que não tem base em nenhum documento histórico. Mas, em Maldita Guerra, uma das obras mais abrangentes e respeitadas sobre a Guerra do Paraguai, o historiador Francisco Doratioto apresenta testemunhos sólidos de que o conde ordenou a degola de prisioneiros de guer~ ra em Peribebuí - circunstância que Mary DeI Priore omite.
O conde d'Eu aboliu a escravidão no Paraguai ocupado. Já no Brasil, embora tivesse ligações com abolicionistas - em especial, foi amigo de André Rebouças -, era adepto do "vamos deixar para depois". Uma vez assinada a Lei Áurea por sua mulher, o conde teve uma razoável presciência de que o regime estava condenado. "A Abolição cavou um poço entre a monarquia e as classes que a ajudavam a manter-se", disse. No exílio, na França, Isabel e Gastão foram atormentados pela morte de dois dos seus três filhos. O conde ainda tentou, sem sucesso, recuperar títulos nobiliárquicos franceses para os descendentes. Mas, afinal, cercado de netos, o casal usufruiu da paz doméstica que foi sempre sua ambição maior.
Revista Veja
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