A discussão sobre a redução da maioridade penal coloca o Brasil diante de um dilema: como punir os adolescentes que cometem crimes graves
Leandro Loyola
Aos 15 anos, o americano Charles Andrew Williams era um garoto tímido, vítima freqüente da perseguição de colegas, com vida familiar complicada. Na manhã de 5 de março de 2001, ele entrou no banheiro masculino de sua escola, a Santana High School, em Santee, na Califórnia, sacou um revólver calibre 22 e começou a disparar. Matou dois colegas e feriu outros 13. A Justiça da Califórnia decidiu que, pela gravidade do crime, Williams deveria ser julgado como adulto. Ele foi condenado a 50 anos de prisão. Ficou até os 18 num reformatório. Desde 2004, cumpre o resto da pena na penitenciária de Calipatria State. Se nada mudar, só sairá de lá em 2051, quando for um senhor de 65 anos. Em 1999, dois anos antes do crime de Williams e três dias antes de completar 18 anos, o brasileiro Rogério da Silva Ribeiro matou com um tiro o estudante de Jornalismo Rodrigo Damus, de 20 anos. Com a ajuda de mais três conhecidos, maiores de 18 anos, Rogério planejou o roubo para conseguir dinheiro para bancar sua festa de aniversário. Os três maiores de idade foram condenados a penas de 22 anos. Estão presos e recorrem para tentar reduzir seu tempo de cadeia. Rogério não. Como ainda era menor de idade no dia do crime, foi condenado a cumprir medidas socioeducativas na Febem. Passou um ano e oito meses internado e foi solto.
OS SUSPEITOS
Fotomontagem elaborada com imagens de menores envolvidos em crimes.Da esquerda para a direita: Champinha, que confessou ter assassinado, aos 16 anos, o casal Felipe Caffé e Liana Friedenbach; Baianinho, acusado de cometer dez homicídios antes dos 18; Catatau, acusado do assassinato de um turista chileno aos 15; Batoré, acusado de cometer 15 homicídios antes dos 18; e o adolescente de 16 anos que participou do assassinato do garoto João Hélio, arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro |
Williams e Rogério são o resultado das diferentes escolhas feitas por seus países para lidar com o problema dos jovens delinqüentes. O Brasil - como mais de 150 nações - adota os 18 anos como idade a partir da qual todos são considerados adultos perante a lei, limite conhecido no jargão jurídico como maioridade penal. Antes dos 18 anos, os criminosos estão sujeitos a penas mais leves. O motivo para isso, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): em tese, os menores ainda não têm noção completa das conseqüências de seus atos. Devem, por isso, estar sujeitos apenas a medidas socioeducativas, como internação com atividades esportivas, escolares e artísticas, de modo que possam ser recuperados para o convívio social. A crescente participação de menores em crimes bárbaros, porém, tem chocado a população e tornado mais presente uma discussão: devemos mudar a legislação para julgar adolescentes como adultos? Em que casos? Chegou a hora de rever a maioridade penal no Brasil?
A resposta para essa questão está longe de ser consensual. Sempre que um crime de contornos selvagens revolta a população, é natural que os ânimos se exaltem e que os cidadãos clamem por todas as formas de solução contra a violência, entre elas a pena de morte ou a redução da maioridade penal. O último desses casos, em fevereiro, foi o bárbaro assassinato do garoto João Hélio Vieites, de 6 anos, arrastado até a morte por 7 quilômetros pelas ruas do Rio de Janeiro, preso ao cinto de segurança do lado de fora de um carro. Entre os cinco acusados de assassinar João Hélio estava um jovem de 16 anos. Na semana passada, a sociedade reviveu outro pesadelo urbano que envolveu um menor de idade. Depois de fugir pulando o muro da unidade da Febem na Vila Maria, em São Paulo, foi recapturado o criminoso Roberto Aparecido Alves Cardoso, conhecido como Champinha, condenado pelo seqüestro e assassinato, em 2003, do casal de namorados Felipe Caffé, de 19 anos, e Liana Friedenbach, de 16, numa mata de Embu-Guaçu, zona rural da Grande São Paulo. Quando cometeu o crime, Champinha tinha 16 anos. De acordo com a polícia, ele e dois comparsas executaram Felipe com um tiro. Depois, durante os três dias seguintes, os criminosos violentaram e mataram Liana.
Champinha é um criminoso extremamente perigoso. Portador de deficiência mental e transtorno de personalidade, ele tem consciência de ter cometido um crime, de ter feito algo errado. Só que é incapaz de compreender a gravidade disso. De acordo com o ECA, deveria ser internado numa instituição especial, capaz de proporcionar um tratamento individualizado, evitar sua fuga e mantê-lo longe da sociedade. Mas um lugar como esse simplesmente não existe. Na falta de instalações adequadas, desde 2003 ele era mantido isolado em diferentes unidades da Febem. Nem mesmo os outros menores sabiam de sua presença, para evitar represálias. Seu tratamento psiquiátrico foi limitado. Champinha deveria ter sido solto em novembro do ano passado, quando o tempo de internação terminaria. Apesar de perigoso, por lei ele não poderia ser encaminhado a um manicômio judiciário, pois foi condenado como menor de idade, não como adulto. O Ministério Público encontrou então uma alternativa jurídica para mantê-lo internado por tempo indefinido. "O ECA tem uma falha nesse aspecto", diz o promotor Wilson Tafner, responsável pelo caso.
AS VÍTIMAS
O garoto João Hélio entre os pais (na pág. ao lado). O menor de 16 anosque participou de sua morte bárbara, em fevereiro, ficará no máximo três anos internado. Liana Friedenbach (à esq.) foi violentada durante três dias e morta em 2003 pelo criminoso Champinha. Perturbado, na semana passada ele fugiu da Febem e acabou recapturado |
No calor da emoção gerada por casos revoltantes como o de Champinha, é pouco razoável decidir questões controversas como a redução da maioridade penal. Também é evidente que o Congresso não deve votar projetos de segurança pública motivado exclusivamente por um ou dois crimes, pois o resultado pode ser contaminado pela irracionalidade. Mas também é evidente que esses casos, pela própria natureza bárbara e cruel, chamam a atenção para uma discussão mais que necessária. "É no calor dos fatos que as leis são elaboradas e alteradas: o Código Penal foi construído assim, tudo é resultado da vida real", afirma Luiza Nagib Eluf, procuradora do Ministério Público de São Paulo com 25 anos de experiência na área criminal. "Será que o Congresso americano, logo após os atentados de 11 de setembro, não deveria ter aprovado nenhuma medida antiterrorismo só para não ser influenciado pela emoção?" Na questão da segurança, o Brasil já vive há algum tempo seu 11 de setembro.
Para tratar essa questão com a seriedade que a sociedade exige, é imperativo enfrentar as deficiências da lei brasileira. Sob o nobre pretexto de proteger os direitos do cidadão inocente, a tendência da legislação é conceder o maior número de recursos, atenuantes e proteção aos acusados de qualquer tipo de delito. Repita-se: o objetivo é nobre - evitar injustiças. Só que esse pacote de boas intenções resulta em um sem-número de brechas aproveitadas pelos delinqüentes. "A legislação penal tem a tendência de favorecer o criminoso", diz o promotor Roberto Porto, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado do Ministério Público paulista. "Estamos na contra-mão: enquanto o mundo inteiro endurece contra o crime, tudo no Brasil favorece o bandido." A punição mais fraca é um incentivo natural para atos ilícitos, pois há um cálculo - consciente ou não - na mente de quase todo criminoso: o risco de ser pego e punido é comparado com o benefício do crime. Uma lei mais branda leva a mais "crimes que compensam".
Essa tendência "pró-bandido" da lei brasileira precisa ser encarada com toda a franqueza se a sociedade quiser combater a violência. São conhecidos os casos de criminosos condenados por delitos graves que, beneficiados por um artifício jurídico conhecido como "progressão da pena", saem da cadeia depois de cumprir apenas um sexto do tempo de condenação. A lei protege ainda mais o criminoso quando ele é menor de idade. O mesmo princípio de redução de pena válido para os adultos é replicado no Estatuto da Criança e do Adolescente. Sancionado em 1990, o ECA trouxe avanços como o combate à prostituição, ao trabalho infantil e à violência contra a criança. Mas sua parte punitiva, com o passar do tempo e o endurecimento da realidade das ruas, mostra deficiências. Mesmo gente contrária à redução da maioridade considera pouco razoável que um criminoso cruel como Champinha ou o garoto de 16 anos cúmplice do assassinato do menino João Hélio sejam punidos com apenas três anos de internação em uma instituição. "Três anos é muito pouco para casos de assassinato, para crimes cruéis", diz o advogado criminalista e ex-juiz Luiz Flávio Gomes, contrário à redução da maioridade. "É preciso aumentar o tempo de internação para esses casos mais graves."
De acordo com uma pesquisa encomendada pelo Senado, uma ampla maioria da população é favorável à revisão dos critérios de maioridade penal. Uma enquete feita com 1.068 pessoas em 130 municípios dos 26 Estados e Distrito Federal - semanas depois do caso João Hélio, portanto sem o componente emocional associado ao evento - detectou que 87% dos brasileiros são favoráveis a penas iguais para maiores e menores de idade. Na prática, o brasileiro parece querer o fim do princípio da maioridade. Entre os entrevistados favoráveis à medida, 36% acham que a idade mínima para enfrentar a lei como adulto deveria ser reduzida de 18 para 16 anos. Há duas semanas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou o projeto do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) para redução da maioridade de 18 para 16 anos, quando o crime praticado for hediondo. Para se transformar em lei, o projeto precisa ser aprovado em dois turnos por três quintos dos senadores, passar pela Câmara, para depois ser sancionado pelo presidente Lula. "Também fiz passeatas contra a redução da maioridade", afirma Torres, ex-promotor de Justiça em Goiás. "Mudei de posição por uma questão de realismo."
Revista Época
Nenhum comentário:
Postar um comentário