Artista plástica checa Helga Weiss percorre os anos de 1938 a 1945, contando as privações que viveu na Praga ocupada pelos alemães e expondo em um texto ao mesmo tempo simples e cortante a barbárie que testemunhou
Monica Weinberg
Muitas crianças judias registraram em diários os horrores que viveram nos campos de concentração nazistas. Quase todos, porém, se perderam em meio aos destroços da II Guerra, o que faz do relato da artista plástica checa Helga Weiss, hoje com 83 anos, uma preciosidade histórica. Em papéis amarelados que passaram décadas mofando na gaveta - e agora foram reunidos no recém-lançado O Diário de Helga (Ed. Intrínseca, 256 páginas, 39,90 reais) -, ela percorre os anos de 1938 a 1945, contando as privações que viveu na Praga ocupada pelos alemães e expondo em um texto ao mesmo tempo simples e cortante a barbárie que testemunhou primeiro no campo de Terezín, depois em Auschwitz. Ali desembarcou aos 14 anos. Sobreviveu por um lance de sorte: Helga conseguiu se passar por mais velha e entrou na fila dos que eram considerados aptos para o trabalho. Em nenhum momento se separou da mãe, mas perdeu o pai, que a incentivou, ainda em Terezín, a abandonar os desenhos de temática infantil para despejar no papel o que via no campo. Uma amostra dessa intensa produção está nestas páginas - material que permaneceu intacto graças a um tio de Helga que trabalhava no departamento de registros no campo checo e escondeu o maço de papéis em um buraco cavado em uma parede de tijolos, para recuperá-lo depois da guerra. Os capítulos pós-Terezín foram escritos quando ela já estava em casa, no mesmo apartamento onde até hoje vive, em Praga. Diz Helga, viúva de um músico, que tem dois filhos e três netos: "Eu posso ter sobrevivido ao campo de extermínio, mas seus cheiros, sons e horrores nunca vão me deixar". A seguir, trechos da entrevista que ela deu a VEJA.
CHEGOU A NOSSA HORA
O antissemitismo se disseminava por Praga entre os anos de 1938 e 1940. Eu não podia mais ir à escola, ao teatro, ao cinema, nem andar em um parque vizinho à minha casa, cenário de minha infância, onde duas placas uma em checo, outra em alemão diziam: "Proibido judeus". Lembro da sensação de ter de pregar a estrela de um amarelo intenso com a inscrição "Jude" em minha blusa e ser tomada de raiva, ódio, vontade de gritar e chorar quando me olhavam com desdém no meio da rua. Mas congelava o semblante, num esforço sobrenatural para não demonstrar nenhuma emoção. Não queria dar esse prazer aos alemães. Um dia, veio a notícia que já esperávamos: eu e meus pais estávamos na lista dos convocados para o campo de Terezín. Comecei a embrutecer e a virar adulta ali, aos 12 anos.
A SOMBRA DA MORTE
Terezín funcionava como uma escala antes de Auschwitz e de outros campos de extermínio. Era alardeado pelos alemães como um lugar modelo mentira deslavada que um comitê internacional da Cruz Vermelha engoliu na famosa visita que fez ali em 1944. Avisados da inspeção, os nazistas se esmeraram para dar ares de humanidade ao local: pintaram paredes, demoliram as camas de três andares e construíram uma escola de fachada. A comissão ficou sem entender o horror que era. Todos os dias, pessoas morriam às dezenas de tuberculose, tifo ou vítimas de castigos públicos ao estilo medieval. Certa vez, mandaram um grupo para a forca. Era gente que tinha conseguido burlar a proibição de enviar cartas para fora do campo. Eu não podia sair do quarto, mas vi da minha janela a sombra deles a caminho da morte. Estavam curvados, resignados. Se alguém ousasse reagir ou fugir de Terezín, outros pagavam da forma mais terrível possível: a deportação imediata para Auschwitz.
IMAGEM DO INFERNO
Tudo o que sabia quando embarquei no trem que partia de Terezín em outubro de 1944 era que estávamos indo para o leste. O destino era Auschwitz. A primeira imagem que tive daquele lugar foi a de um mar de chaminés soltando uma fumaça espessa, escura. Achei que eram fábricas, mas um alemão esclareceu: "São câmaras de gás. Vocês estão num campo de extermínio". Entrei ao lado da minha mãe em uma fila da qual não se via o fim. Um homem ia analisando caso a caso. Ao que tudo indica, era Josef Mengele. Nunca vou ter certeza. Não olhei o seu rosto. Fixei-me apenas no dedo, que ora se movia para a esquerda - o lado das crianças e dos velhos que iam direto para as câmaras da morte -, ora para a direita - a fila dos mais fortes e aptos ao trabalho escravo no campo. Aquele homem tomava a decisão sobre quem ia viver ou morrer em questão de segundos. Não escondia o prazer que tinha de brincar de Deus. Eu tinha 14 anos, mas parecia mais velha, e acabei me juntando aos trabalhadores, com minha mãe.
"PERDI A MELHOR FASE"
Divertiam-se raspando nossa cabeça. Eu me imaginava horrorosa, mas não havia espelho em Auschwitz. Um dia, vi minha imagem refletida na janela, cadavérica, feia, velha. Não era uma adolescente. Na verdade, tinha de me esforçar muito para me sentir humana. Descobri da forma mais brutal possível que, a partir de certo estágio de degradação, você passa a ter as reações instintivas de um animal. Aprendi a viver à base de pouca comida. Perdi as contas de quantas vezes fiquei doente e, mesmo sem remédios, me curei, movida por uma vontade fora do normal de sobreviver. Isso eu nunca perdi. Mas, ao mesmo tempo, me perguntava: quando o arame farpado for arrancado e os muros demolidos, seremos capazes de viver entre aqueles que seguiram sua vida sem interrupções?
DOIS DIAS SALVADORES
Conforme os russos avançavam, os alemães fugiam de campo em campo, carregando num trem para gado os poucos judeus que restaram. Eu estava entre eles. Desembarcamos em Mauthausen, na Áustria, apenas dois dias depois de a câmara de gás ter sido desativada. Escapei da morte por esses dois dias. Sim, porque, mesmo diante da derrota iminente, os nazistas estavam decididos a seguir em frente com a solução final. Ocorreume pular daquele trem e fugir, mas minha mãe não aguentaria ir comigo. Enquanto os vagões cruzavam o cenário de terra devastada, pessoas na rua arremessavam pão em nossa direção, e eu'pensava: "Meu Deus, essas pessoas são boas!".
NINGUÉM QUERIA OUVIR
Depois da guerra, ficava me perguntando: por que justamente eu sobrevivi, se havia gente tão mais talentosa e inteligente? Há várias respostas possíveis. Fui útil no campo, trabalhando na colheita, depois na montagem de aviões. Também mantive a disciplina de comer mesmo quando tinha asco do que vinha no prato. A idade ainda contou a favor. Mas havia muita gente, assim como eu, que jamais teve a sensação de ser livre de novo. Tive sorte. Das 15000 crianças enviadas a Terezín, sobraram 100. Eu e minha mãe recuperamos o apartamento onde vivíamos antes, lugar que me trazia à mente as lembranças da infância ceifada e uma dor terrível pela ausência de meu pai, que nunca mais voltei a ver. Meu corpo aguentou todo o horror, mas, ao chegar em casa, desabei e fui levada a um hospital. A solidão de quem passou por um pesadelo como esse é algo insuportável. Em meio aos escombros e às feridas não cicatrizadas, ninguém queria ouvir minha história.
REVIRAR A MEMÓRIA
Meu diário ficou décadas acumulando pó no fundo da gaveta. Se lesse, era como se estivesse lá, no meio do inferno de novo. Resolvi publicá-Io agora porque estou velha e me aflige ainda ver a intolerância chegando a graus extremos na política, na religião, como se pouco, ou nada, se tenha aprendido sobre os riscos e as consequências de alimentar o ódio. Ter sido alvo de tamanha selvageria me tornou muito mais resistente às adversidades, e dura. Escrever meu diário foi a maneira que encontrei de me sentir humana. Em certo sentido, foi também o que me salvou.
REvistaVeja
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