quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Te Contei, não ? - Duas traduções de Missa do Galo

Duas traduções de Missa do Galo

 

No próximo 29 de setembro, iremos para 105 anos da morte de um dos maiores escritores do Brasil. Daí que recupero um texto sobre os obstáculos mal vencidos em duas traduções de Missa do Galo.
De imediato, aos tradutores de Machado de Assis devemos prestar a nossa solidariedade, a nossa compreensão, o nosso agradecimento. Se possível, nessa ordem. E para que bem entendam as nossas boas intenções, daquelas que enchem o inferno, transcrevemos palavras da tradutora norte-americana Daphne Patai:
“Todo mundo que lê Machado entende por que ele é um escritor bastante difícil. Não é que ele use um vocabulário muito difícil, acho que não, mas a ironia e a sutileza com que ele escreve fazem com que qualquer tradução seja bastante difícil. É difícil, realmente, captar o tom e as nuances de Machado numa outra língua. E coisas que ele faz, com apenas uma ou duas palavras em português, dificilmente se traduzem para o inglês. Muitas vezes, o tradutor tem que não tanto traduzir, mas explicar o que Machado está dizendo”.
Guardadas as diferenças da nossa língua para o inglês, de quantidade e qualidade, a dificuldade mencionada se aplica também ao espanhol, essa língua irmã tão enganosamente semelhante ao português. Diríamos mais, a leitura de Machado de Assis por vezes exige uma tradução astuciosa até para os falantes nativos. E não dizemos isso por gosto do paradoxo. Machado, como todo grande escritor, cobra o preço de leituras amadurecidas, de saber e experiência feitas, antes de revelar o seu encanto. O gênio mulato cobra o preço de uma sensibilidade educada, uma cobrança que, por justiça, começa para os leitores da sua nacionalidade. Se isso ele faz com os leitores da própria língua, o que não fará com estrangeiros?
*
Cumprimentos prestados, vamos ao trabalho. Acompanharemos duas traduções do conto para o espanhol, uma de Gabriela Hernández, e outra de Elkin Obregón. Tentaremos comentar alguns pontos de divergência delas em relação ao original. E que Jesus nos ajude, porque assim começa Machado:
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.”
Gabriela Hernández:
“Nunca pude entender la conversación que tuve con una señora, hace muchos años, tenía yo diecisiete, ella treinta. Era noche de Navidad. Había acordado con un vecino de ir a la misa de gallo, preferí no dormirme; quedamos en que yo lo despertaría a medianoche”.
Elkin Obregón:
“Nunca pude entender la conversación que sostuve con una señora, hace muchos años, tenía yo diecisiete, ella treinta. Era la noche de Navidad. Habiendo convenido con un vecino en ir los dos a la misa de gallo, preferí no dormir; acordamos que yo iría a despertarlo a medianoche.”
À primeira vista, tudo é igual. Queremos dizer, a partir do primeiro parágrafo os leitores do original e das duas traduções sabem que o narrador se põe na pele do personagem, e passa a narrar uma conversação mantida com uma senhora, sendo ele um jovem, em uma noite de Natal. O fato, a cadeia de fatos, o “enredo” é mantido. Mas a segunda é mais fiel, nos parece, porque acompanha os tempos verbais do autor. Adiante.
“A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.”
Gabriela Hernández:
“La casa en la que estaba hospedado era la del escribano Meneses, que había estado casado en primeras nupcias con una de mis primas. La segunda mujer, Concepción, y la madre de ésta me acogieron bien cuando llegué de Mangaratiba a Río de Janeiro, unos meses antes, a estudiar preparatoria. Vivía tranquilo en aquella casa soleada de la Rua do Senado con mis libros, unas pocas relaciones, algunos paseos. La familia era pequeña, el notario, la mujer, la suegra y dos esclavas. Eran de viejas costumbres.
A las diez de la noche toda la gente se recogía en los cuartos; a las diez y media la casa dormía. Nunca había ido al teatro, y más de una ocasión, escuchando a Meneses decir que iba, le pedí que me llevase con él. Esas veces la suegra gesticulaba y las esclavas reían a sus espaldas; él no respondía, se vestía, salía y solamente regresaba a la mañana siguiente. Después supe que el teatro era un eufemismo. Meneses tenía amoríos con una señora separada del esposo y dormía fuera de casa una vez por semana. Concepción sufría al principio con la existencia de la concubina, pero al fin se resignó, se acostumbró, y acabó pensando que estaba bien hecho”.
Elkin Obregón:
“La casa en que me hallaba hospedado era la del escribano Menezes, quien había estado casado, en primeras nupcias, con una de mis primas. La segunda esposa, Concepción, y su madre, me acogieron muy bien, cuando vine de Mangaratiba a Río de Janeiro, meses antes, a hacer el curso de ingreso a la universi­dad. Vivía tranquilo, en aquella casa de dos plantas de la Calle del Senado, con mis libros, pocas relaciones, algunos paseos. La familia era pequeña: el escribano, la mujer, la suegra y dos esclavas. Costumbres a la antigua. A las diez de la noche todos estaban en sus aposentos; a las diez y media la casa dormía. Yo nunca había ido al teatro, y más de una vez, oyendo decir a Menezes que se iba al teatro, le pedí que me llevase con él. En tales ocasiones la suegra hacía una mueca, y las esclavas se reían con disimulo; él no respondía, salía y sólo volvía a la mañana siguiente. Más tarde supe que el teatro era un eufemismo en acción.
Menezes tenía amores con una señora, separada del marido, y dormía fuera de casa una vez por semana. Concepción había sufrido, al principio, por la existen­cia de la concubina. Pero al fin se había resignado, se había acostumbrado, y terminó pensando que aquello era una cosa normal”.
As divergências aqui deixaram de ser pequenas. Ambas traduções tentam melhorar o original, na esperança de torná-lo mais compreensível, ou razoável. Mas cada uma à sua maneira. Mirem.
Em Gabriela Hernández ocorre o que nos parece mais grave. Ela abre um parágrafo depois de “Eran de viejas costumbres”, e com isso fere a ambiguidade em Machado, que ao escrever “A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos…”, alcança com “Costumes velhos”, entre duas frases, as duas escravas e o costume da família em se deitar cedo. No corte feito por GH, não. As viejas costumbres se associam à prática de possuir escravas, o que Machado, mulato e humanista, não deixaria de observar. Pero não de maneira clara, digamos, pois estava na pele de um narrador integrado aos quadros de cima e costumes do Brasil. Nesse trecho, menos graves são as interpretações, em lugar do traduzir, de algumas palavras. O “assobradado” (casa rica, à semelhança de um sobrado, com pavimentos sobre o térreo) se transforma em “casa soleada”; as caretas da sogra sofrem um câmbio para gesticulación, e as escravas que “riam à socapa”, às escondidas, passam a escravas que “reían a sus espaldas”, às costas do senhor e patrão.
Em Elkin Obregón as adaptações são outras. O sobrado, ou o assobradado, se perde o fausto, ganha o sentido da raiz da palavra, porque se torna uma “casa de dos plantas”, de dois andares. Mas um abuso, menos pequeno, é quando a tradução encerra o parágrafo em “eufemismo en acción”, para reiniciar um com “Menezes tenía amores con una señora”, que explica o eufemismo das saídas para o teatro, que Machado escrevera. Não sabemos se isto – esses parágrafos de diagramação, de “estética”  se dá porque o leitor há de ser ajudado na vista, para ter uma leitura agradável, ainda que se mutile o pensamento, a expressão original. Não sabemos por quê. Será que tal coisa só é respeitada na escrita sem fim de Marcel Proust? Será que só uma pessoa da corte, sem corte de parágrafo, pode iniciar uma pergunta a Swan na página 9 para concluí-la na página 193 ?
Se nos permitem uma digressão plebeia, com rigoroso respeito a cortes, lembramos que no texto “Enmendando Cervantes”, nós chamávamos a atenção para o fato de que há um respeito quase místico dos tradutores pela poesia, quando poema. Já pela prosa, ah, prosa é prosa, acredita-se até que prosaico é o seu alter ego. Se se impõem parágrafos onde antes não havia, isso quer apenas dizer, talvez, que o leitor sai gratificado. Adiante.
“Boa Conceição! Chamavam-lhe ‘a santa’, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos…”.
Gabriela Hernández:
“Qué buena Concepción! La llamaban santa, y hacía justicia al mote, soportaba muy fácilmente los olvidos del marido. En verdad era de un temperamento moderado, sin extremos, ni lágrimas, ni risas….”
Elkin Obregón:
“¡La buena de Concepción! La llamaban ‘la santa’ y hacía honor al título, tan fácilmente soportaba los olvidos del marido. En verdad, era un temperamento moderado, sin extremos, sin muchas lágrimas ni risas…”
Acima, são trechos que falariam da inadequação de “mote’, apelido, na tradução de Gabriela Hernández, para a palavra “título” do original, ou de “sin muchas lágrimas ni risas”, na tradução de Elkin Obregón, para o “nem grandes lágrimas, nem grandes risos” que esclarece o sentido de moderado, na escrita de Machado. Há uma diferença de tom, de tonalidade, de gradação, do original para o traduzido. Isso poderia e poderá ser pontuado em toda a tradução, nessa particular de Missa do Galo, e em toda e qualquer tradução, em todo o mundo. A perfeita versão é impossível, o sentido e sabor que tem uma palavra na língua materna, isso se perde para ganhar outra nuance, em outro idioma. Sabemos. Daí que os tradutores, esses artistas tão mal remunerados, são facilmente transformados em saco de pancada, em punch ball de qualquer crítico amador. Em outro extremo, os tradutores, quando atingem um grau de excelência, se tornam uma ponte de culturas, uma ligação indispensável entre os mundos de gentes distantes. Eles terminam por conhecer além do peso específico de uma palavra. Em um extremo inalcançável, talvez, o tradutor ideal passearia com intimidade pela música, pela geografia, pelo cinema, pela gíria de classes, pela fala, acentos particulares, como se fosse um espião de outro país a se confundir com um nativo culto, em resumo. Não poderemos jamais exigir tanto, ainda que não estejamos proibidos de sonhar com essa provável impossibilidade.
Mas há uma exigência que temos o direito de exigir em uma tradução. Que é: devolvam-nos por favor o sentido que adentra o espírito, o quê de mistério e de estranheza, o quê de belo e de amargo e doce que há no original, quase como uma imagem física de uma pintura, onde ficamos horas a navegar, como certamente um dia ficaremos no Prado ou em Florença. Aquela aura, auréola, que não é de ouro, mas de atmosfera, aquele clima em torno, aquela concreção de carne ou de ar, aquele impulso de lançar uma taça de vinho ao teto, quando o entusiasmo nos faz gritar bravo!, arretado!, carajo!, isso gostaríamos de retomar na obra traduzida. Para cessar de erguer platitudes, digamos desde já que existe um momento nestas duas traduções de Missa do Galo que prejudica e muito o sentido original do conto de Machado de Assis. E nos perdoem se a nossa frustração não se tornar expressa. Mirem.
“Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
– Não! qual! Acordei por acordar”.
Gabriela Hernández:
“Concepción entró en la sala, arrastraba las chinelas. Traía puesta una bata blanca, mal ceñida a la cintura. Era delgada, tenía un aire de visión romántica, como salida de mi novela de aventuras.
Cerré el libro; ella fue a sentarse en la silla que quedaba frente a mí, cerca de la otomana. Le pregunté si la había despertado sin querer, haciendo ruido, ella respondió enseguida:
– ¡No! ¡Cómo cree! Me desperté yo sola”.
Elkin Obregón:
“Concepción entró en la sala, arrastrando sus chine­las. Vestía una levantadora blanca, mal anudada en la cintura. Siendo delgada, tenía un aire de imagen romántica que no desentonaba con mi libro de aven­turas. Cerré el libro; ella se sentó en la silla que estaba frente a la mía, cerca del canapé. Como yo le pregun­tase si la había despertado, sin querer, haciendo ruido, me respondió con rapidez
— No, de ningún modo; desperté porque sí”.
Notem. Missa do Galo retira, antes, robustece a sua força no clima de insinuação de erotismo que pervaga as personagens, o diálogo. A sensualidade não se exibe escandalosa, é uma nuvem que se deixa adivinhar, pela hora da noite, pela ausência do marido que está na casa de uma amante, pela situação em que se encontra o jovem, pelo cenário que desenha o narrador. A sua voz planta um lenço cifrado como Iago, enquanto as falas da senhora e do estudante contam outra coisa. Afirmaríamos mesmo, o que eles dizem pouco importa. O perfume e a embriaguez vêm de quem narra, traiçoeiro e venenoso com ares de inocência. Ele, a voz que narra, afirma que não entende o acontecido até hoje, e quer nos fazer entender que nós saberemos melhor do que ele, pelo que nos fala. Pela feição exterior, ele era um jovem tonto, bobo, ela era uma mulher pura, uma santa, a unir assuntos conexos e desconexos na noite de Natal, sozinhos no silêncio da casa grande. Pela feição realizada, há um carinho a ponto de explodir, pelos elementos dispostos pelo narrador, que usa as palavras como um certo Machado de Assis, esse bobo bruxo. O conto inteiro é uma possibilidade de amor. Armado e arrumado como está, o deslocamento de palavras básicas, insubstituíveis, repetimos, insubstituíveis, fazem uma falta tremenda no ambiente eletrizado. E é justamente aqui onde uma palavra é suprimida. Mirem. No original, Machado nos diz: “Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova”. Nas traduções a senhora assim nos vem: “Concepción entró en la sala, arrastraba las chinelas”; “Concepción entró en la sala, arrastrando sus chine­las”. Que diferença! Os leitores nas duas traduções perderam a alcova.
Ou no contexto do conto, perderam a sua promessa. Como um parágrafo de esperança.
***
De Machado de Assis a Boitempo publicou Terpsicore, conto inédito em livro e por muito tempo esquecido até ser descoberto na Gazeta de Notícias de 25 de março de 1886. A edição da Boitempo conta ainda com um prefácio de Davi Arriguchi Jr.
***
 
 
Soledad no Recife, de Urariano Mota, está à venda em versão eletrônica (ebook), por apenas R$10. Para comprar, clique aqui ou aqui.
***
Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

Nenhum comentário:

Postar um comentário