Há algum tempo, visitei uma minifazenda onde as crianças podiam conhecer galinhas, porcos e vacas. Entusiasmados, os pimpolhos se divertiam vendo os bichos e tentando estabelecer uma relação mental entre os animais e os bifes, pernis e asinhas fritas do cardápio cotidiano. Para elas, era algo tão misterioso como as cartinhas para Papai Noel. Como é que os pintinhos amarelinhos, tão lindos, se transformariam, um dia, em frango à passarinho?
O mundo em que vivemos é marcado pela hipocrisia. A culinária é uma prova disso. Sou de uma época em que se compravam as galinhas vivas. Eram mortas e depenadas em casa. Tudo bem. Eu mesmo não gostaria de assassinar galinhas como parte do meu cotidiano, em meio a cacarejos assustadores. Mas o frango de supermercado hoje em dia se assemelha a um derivado do petróleo. É um produto criado artificialmente, com uma vaga origem animal. O sabor está mais para plástico. Aquilo realmente teve penas ou é produzido em laboratórios? Pior que ele, só mesmo o peru de Natal, com gosto de coisa nenhuma. Outro dia um amigo recusou-se a comer um frango assado. Simplesmente porque parecia com... um frango!
– Fiquei com dó! – disse para a mãe, surpresa.
Walcyr Carrasco
Quando fiz meu curso de sushiman (sim, sou um sushiman diplomado!), espantei-me ao receber um peixe para abrir, limpar, tirar as espinhas e a pele. Atum, salmão, tilápia, linguado. Cada peixe exige uma técnica. Confesso, adorei passar por aquela experiência desconhecida, manual, de cuidar da minha própria comida. Até então, minha relação com a comida japonesa limitava-se a devorar filezinhos de peixe, sem identidade óbvia. Não quero pirar. Mas, à medida que amadurece minha consciência sobre o que vem à mesa, eu me pergunto:
– Este peixe sonhava?
– Esta vaca se apaixonou, alguma vez?
Tenho um amigo tão radical que não come mariscos nas cascas. Por dó. Ou camarões, também por sentir piedade, já que reconhece os bichinhos. Se vierem numa moqueca, ele traça!
Ao que leva toda essa reflexão? Para mim, a mesa tornou-se um exemplo de como nosso mundo refugia-se numa hipocrisia tácita. Assim como fingimos não devorar galinhas, também não nos sentimos tocados por uma guerra em algum lugar distante. Ficamos comovidos pelos sem-teto, pelas dificuldades em estudar, pelos desempregados. O Congresso faz alguma bobagem, ficamos furiosos, mas é como se fosse algo distante, não nos pertencesse. Achamos linda a vaquinha no pasto, mas adoramos um churrasco. Não acho que seja um fenômeno localizado, mas algo que corrói a sociedade em todos os campos. É a alienação em relação a quem somos, ao que consumimos e a nossa postura como cidadãos. Talvez, na época em que se matavam as galinhas em casa, as pessoas tivessem mais consciência da realidade.
O mundo em que vivemos é marcado pela hipocrisia. A culinária é uma prova disso. Sou de uma época em que se compravam as galinhas vivas. Eram mortas e depenadas em casa. Tudo bem. Eu mesmo não gostaria de assassinar galinhas como parte do meu cotidiano, em meio a cacarejos assustadores. Mas o frango de supermercado hoje em dia se assemelha a um derivado do petróleo. É um produto criado artificialmente, com uma vaga origem animal. O sabor está mais para plástico. Aquilo realmente teve penas ou é produzido em laboratórios? Pior que ele, só mesmo o peru de Natal, com gosto de coisa nenhuma. Outro dia um amigo recusou-se a comer um frango assado. Simplesmente porque parecia com... um frango!
– Fiquei com dó! – disse para a mãe, surpresa.
Seu problema não é o ser, mas o parecer. Observo essa tendência em muita gente que conheço. Querem se esbaldar com o prato, mas sem estabelecer a relação entre o bicho e o banquete. Os vegetarianos, veganos e macrobióticos são mais sinceros. Têm princípios. Recusar a carne e até produtos de origem animal é um deles. Tudo bem, desde tempos imemoriais o ser humano come carne. Mas a civilização, hoje em dia, pode se dar ao luxo de existirem vegetarianos. Do ponto de vista culinário, entretanto, a hipocrisia aumentou de século para século. Na época medieval, os animais eram servidos com aparência mais próxima da que tinham em vida. Os bichos assados eram inseridos em suas peles. As penas de um pavão, graciosamente recolocadas. Para nossos sentidos tão sensíveis, devia ser um horror! Mesmo porque, hoje em dia, quem pensaria em assar um pavão? Rechear um pescoço de avestruz? Certos pratos foram banidos do cardápio, pelo menos regionalmente. Ainda se comem pombos na Itália. Quando comento que já comi tatu e gostei, vejo uma cara de nojo. Há uma diferença essencial entre um tatu e uma galinha? Não me refiro ao problema das espécies ameaçadas. Mas a algo mais intangível, a chama da vida. O mundo não foi criado com uma cadeia alimentar? Para sobreviver, não tenho de devorar um ser que viveu? Radicalizando: alface também não sente? Brócolis choram? Houve algumas experiências com vegetais e música. Constatou-se que são sensíveis à clássica. Muitos seres humanos não são. Um pé de tomate seria mais sensível que um ser humano, pelo parâmetro das sinfonias.
Walcyr Carrasco
Quando fiz meu curso de sushiman (sim, sou um sushiman diplomado!), espantei-me ao receber um peixe para abrir, limpar, tirar as espinhas e a pele. Atum, salmão, tilápia, linguado. Cada peixe exige uma técnica. Confesso, adorei passar por aquela experiência desconhecida, manual, de cuidar da minha própria comida. Até então, minha relação com a comida japonesa limitava-se a devorar filezinhos de peixe, sem identidade óbvia. Não quero pirar. Mas, à medida que amadurece minha consciência sobre o que vem à mesa, eu me pergunto:
– Este peixe sonhava?
– Esta vaca se apaixonou, alguma vez?
Tenho um amigo tão radical que não come mariscos nas cascas. Por dó. Ou camarões, também por sentir piedade, já que reconhece os bichinhos. Se vierem numa moqueca, ele traça!
Ao que leva toda essa reflexão? Para mim, a mesa tornou-se um exemplo de como nosso mundo refugia-se numa hipocrisia tácita. Assim como fingimos não devorar galinhas, também não nos sentimos tocados por uma guerra em algum lugar distante. Ficamos comovidos pelos sem-teto, pelas dificuldades em estudar, pelos desempregados. O Congresso faz alguma bobagem, ficamos furiosos, mas é como se fosse algo distante, não nos pertencesse. Achamos linda a vaquinha no pasto, mas adoramos um churrasco. Não acho que seja um fenômeno localizado, mas algo que corrói a sociedade em todos os campos. É a alienação em relação a quem somos, ao que consumimos e a nossa postura como cidadãos. Talvez, na época em que se matavam as galinhas em casa, as pessoas tivessem mais consciência da realidade.
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