domingo, 29 de setembro de 2013

Quem conta um conto ... - A Troca e a Tarefa de Lygia Bojunga Nunes


"A troca e a tarefa" de Lygia Bojunga Nunes


Eu tinha nove anos, quando a gente se encontrou: o Ciúme e eu.
Era verão. Eu dormia no mesmo quarto que minha irmã. A janela estava aberta.
De repente, sem nem saber direito se eu estava acordada ou dormindo, eu senti direitinho que ele estava ali: entre a cama da minha irmã e a minha. A noite não tinha nem lua nem estrela; e quando eu fui estender o braço pra acender mais a luz, ele não quis:
–– Me deixa no escuro.
Que medo que me deu.
Senti ele chegando cada vez mais perto. Fui me encolhendo.
"Pega a minha irmã" - eu falei – "Ali ó, na outra cama. Eu sou pequena e ela já tem 14 anos, pega ela! Ela é bonita e eu sou feia; o meu pai, a minha mãe, a minha tia, todo o mundo prefere ela: por que você não prefere também?
Mas o Ciúme não queria saber da minha irmã, e eu já estava tão espremida no canto (a minha cama era contra a parede) que eu não tinha mais para onde fugir, então eu pedia e pedia de novo:
–– Ela é a primeira da turma e eu tenho horror de estudar, olha, ela ta logo aí; e ela é tão inteligente pra conversar! Ela diz poesia, ela sabe dançar, o meu pai tá ensinando inglês e francês pra ela e diz que pra mim não vale a pena porque eu não presto atenção, então você pensa que eu não vejo o jeito que o meu pai olha pra ela quando todo mundo diz que encanto de moça que é a sua filha mais velha? Pega, pega, PEGA ela!
–– Não. Eu quero é você.
E o Ciúme disse aquilo com uma voz tão calma que eu fui me acalmando. E o medo foi passando.
–– Bom, –– eu acabei suspirando –– pelo menos tem alguém que gosta de mim mais do que dela.
E aí, o vento do mar entrou pela janela, soprou no Ciúme e apagou ele feito vela.
Fui crescendo. E cada ano que passava, o Ciúme aparecia mais vezes pra me ver. Eu não precisava nem olhar: de repente eu sentia que ele estava lá. E bastava ele chegar perto, pra eu começar a sentir um peso dentro de mim. Feito coisa que eu carregava uma pedra no peito. O peso só aliviava quando o Ciúme ia embora. Mas cada vez, ele demorava mais. Acabou morando lá em casa.
Aí eu quis me mudar.
Mas eu ainda ia fazer 13 anos: onde é que eu ia morar?
Resolvi ir pra um colégio interno.
A minha mãe não gostou muito da ideia: "vai custar muito caro".
Mas o meu pai achou ótimo –– Lá ela vai aprender a estudar direito feito a irmã dela (Ah, que depressa que o Ciúme apareceu quando o meu pai falou assim.)
Eu fui pro internato. Fiquei vivendo separada da minha família, só ia pra casa nas férias.
Lá no colégio, o Ciúme aparecia pouco; era nas férias que ele não me largava; quando eu voltava pra casa e encontrava todo mundo fascinado pela minha irmã.
Um dia (era férias) em frente da nossa casa, veio morar um rapaz chamado Omar.
Eu ficava horas na janela esperando ele chegar. Pra ver aquele pouquinho só: chegando, tirando a chave do bolso e entrando.
Quando eu soube que o nome dele era Omar eu fui pro quarto e escrevi uma poesia chamada O mar.
Foi a primeira coisa que eu escrevi. Aquela poesia pro Omar. E eu me senti tão feliz.
Eu nunca tinha me sentido assim feliz; fiquei pensando que era por causa do Omar (nem pensei que podia ser por causa da poesia).
E quando eu vi as férias já tinham acabado. De tanto que o tempo passou depressa comigo lá, esperando o Omar chegar, parar na porta, procurar a chave; entrar. E no dia seguinte, esperar de novo o Omar chegar. Pra namorar ele mais um pouco só de olhar.
No dia em que as férias acabar em, na hora do Omar pegar a chave pra entrar, ele se virou e olhou pra janela. E ficou muito, muito tempo olhando.
Mas não era pra minha janela: era pra outra: a da sala: onde estava minha irmã.
Lá no colégio eu não tinha mais tempo pra nada, nem pra estudar, nem pra fazer o dever, eu não tinha mais tempo pra ver o Ciúme, de tanto que eu passava o meu tempo pensando só no Omar.
 
Mas não era bom pensar no Omar, como eu gostava de pensar, que eu nunca pensei nele como eu não queria pensar, quer dizer, olhando pra outra janela.
Um dia chegou uma carta da minha mãe dizendo assim:
"... da mesma maneira que eu dei uma festa pra festejar os 15 anos da tua irmã, quero comemorar os teus 15 anos. Mas desta vez, a festa vai ser dupla: a tua irmã ficou noiva, e então quero festejar junto duas grandes datas. Já avisei à diretora que você vai sair no sábado de manhã."
Foi só ler a notícia do noivado que eu pensei na outra janela e o Ciúme apareceu logo: e se o noivo fosse o Omar?
Fiquei doida pra chegar logo em casa e saber de tudo. Mas ao mesmo tempo eu tinha tanto medo de saber que eu comecei a querer um pretexto pra não ir: quem sabe eu ficava doente?
Na noite de sexta pra sábado eu nem dormi: ia pra casa ou ficava doente?
Mas a curiosidade foi mais forte, e eram três e meia da tarde quando eu entrei em casa.
Que bonito que estava tudo, quanta rosa, quanto cravo enfeitando cada canto, é só fechar o olho que o perfume ainda chega aqui; e tinha uma agitação que só vendo, a minha mãe, o meu pai, minha irmã, todo mundo se arrumando, se enfeitando que nem a casa.
"Anda, menina, anda!" (era minha mãe dizendo), "vai tirar esse uniforme, o teu vestido já está passado em cima da cama, olha que daqui a pouco os convidados já estão chegando."
A mesa na sala de jantar estava de toalha bordada (a toalha que a minha vó tinha bordado pro casamento da minha mãe), e quanto doce, quanta coisa gostosa, e que lindo que era o bolo com as velas que eu ia soprar.
Eu andava devagar pela casa, olhando pra tudo em volta, mas só pensando uma coisa: é o Omar? é ele? É com ele que ela vai se casar?
Mas em vez de perguntar eu não perguntava. Só pra continuar esperando que o noivo que ia chegar fosse outro, qualquer outro! Mas não o Omar.
Foi chegando gente.
Família.
Amigo.
Presente.
E a sala já estava cheia quando o Omar chegou.
Eu e minha irmã vimos ele entrando na mesma hora. Ela correu. Eu me escondi. Pra ninguém ver o que eu estava vendo: o jeito que eles se olhavam, se davam a mão, se abraçavam, o jeito igualzinho que eu tinha pensado tantas vezes que ele ia me abraçar.
Nem precisava olhar pra ver: era o Ciúme que estava outra vez do meu lado, me dizendo no ouvido, não vou mais te largar.
Que vontade de chorar.
Peguei a vontade e a virei ela num soprão: apaguei as 15 velas de uma vez.
Tocaram música.
O Omar me pegou para dançar. Falando comigo feito eu fosse criança.
Que vontade de gritar.
A minha irmã estava tão feliz que nunca ela tinha sido assim tão bonita; e ainda por cima, era ela que tinha feito o bolo dos meus 15 anos e que delícia! todo o mundo dizia na hora de provar.
Ah. Que vontade de morrer.
Já tinha ficado de noite, a festa estava animada, todo mundo dançando, até meu pai tão sério sempre. Corri pro quarto. Me tranquei. Queria matar a vontade de chorar, de gritar, de morrer. Nem acendi a luz. E nem deu tempo de correr pra cama: o choro saiu ali mesmo, de cara encostada na porta; o grito saiu lá mesmo, e a música abafou; pulei a janela e corri pro mar.
Lá na praia tinha pouca estrela, barulho manso de onda e a lua era quarto minguante. Já ia entrando no mar. Mas senti medo. Dei pra trás. Me deitei na areia, e fiquei lá tanto tempo que acabei dormindo.
Sonhei um sonho que mudou minha vida.
Era um sonho muito bonito, todo acontecido em azul; tinha azul pra qualquer gosto, do mais fraquinho ao mais forte.
Eu estava lá mesmo, deitada na praia. E era de madrugada.
Na minha frente tinha uma parede tapando o mar.
Vi duas janelas na parede. Me levantei pra ir olhar. Numa estava escrito A TROCA; na outra A TAREFA. Uma estava fechada; espiei pelo vidro fosco, mas não enxerguei nada do outro lado. Bati no vidro, bati, bati com força. Mas só ouvi o barulho do mar.
Fui pra outra janela. Também fechada. E o vidro também: não me deixando ver o outro lado. Bati.
–– Que é?
Até que me espantei de ouvir a voz perguntando.
–– Abre –– eu respondi. –– Eu quero ver o outro lado.
A janela continuou fechada. Mas a voz falou:
–– Eu te livro desse amor, desse peso.
–– O quê?
Esse amor que você está sofrendo, essa vontade que você está sentindo de morrer: eu te livro disso.
–– De que jeito?!
–– Quando a história estiver pronta você vai ver.
–– História? Que história?
A voz falou mais baixo:
Escreve a história dessa dor e eu te livro dela. É uma troca: eu te prometo
–– O quê? fala mais alto, eu quase que só escuto o mar.
–– O mar. Lembra da poesia que você escreveu?
–– Foi tão bom!
Aí a voz se confundiu com o barulho do mar. Eu acordei. A noite já ia virando dia; o céu era meio vermelho e a praia estava muito bonita. Dentro de mim tinha uma curiosidade nascendo: será que eu ia conseguir fazer uma história da dor que eu estava sentindo?
Voltei pro internato.
Cada hora de recreio, cada domingo inteiro, cada hora-de-fazer-dever eu escrevia a história da minha vontade de morrer. E eu fui achando tão difícil de fazer, que em vez de sentir vontade de morrer eu só pensava como é que se fazia a história de uma vontade de morrer; em vez de sentir a dor do amor, eu só sentia a força que eu fazia pra contar a dor.
Então, quando um dia a história ficou pronta, a vontade de morrer tinha sumido; o amor pelo Omar também: no lugar deles agora só tinha a história deles.
Fiz que nem na poesia: transformei o Omar n’o mar. Um mar tão bom de olhar. E inventei uma ilha pra botar nele: uma ilha pra eu ir lá morar: de praia de areia fininha, onde o mar chegava toda hora. E fui inventando uma porção de coisas pra acontecer na ilha.
A história ficou tão grande. Acabou virando um livro. Foi o meu primeiro livro. Se chamou "Do outro lado da ilha".
Minha irmã tinha se casado. Mas a minha mãe, o meu pai, todo mundo não parava de pensar nela; e seu eu fazia alguma bobagem tinha sempre alguém me dizendo: tua irmã não faz assim. Bastava isso e pronto: o Ciúme já aparecia outra vez.
Então um dia eu pensei: quem sabe a troca que eu sonhei no sonho serve pro Ciúme também? E resolvi transformar o Ciúme em história. Só pra ver se acontecia a mesma coisa: se fazendo a história do Ciúme eu me livrava dele e ficava com a história.
O Omar eu tinha transformado em mar.
E o Ciúme? no que eu iria virar?
Eu achava ele tão feio. Resolvi virar ele numa coisa pra gostar de olhar. Transformei ele num pássaro lindo! bem grande; de peito amarelo e penacho vermelho na cabeça. E pra ele não poder mais entrar na minha vida eu prendi ele numa gaiola.
Tudo que o Ciúme tinha feito eu sofrer eu transformei em aventuras que aconteciam com aquele pássaro.
Quando um dia eu cheguei no fim da história a troca tinha acontecido de novo: no lugar do Ciúme eu agora tinha um livro. Um livro que eu chamei de "A Gaiola".
Achei tão bom poder transformar o que eu sentia em história que eu resolvi que era assim que eu queria viver: transformando. Foi por isso que eu me virei em escritora.
Os anos foram passando. E eu não parei mais de transformar: tinha me acostumado com aquilo.
Levantava (levantava cedo), tomava café (com leite), escovava os dentes (já pensando o que que eu ia escrever), fechava a porta (não sei transformar de porta aberta), e começava:
pegava a lembrança de uma amiga de infância que eu nunca mais tinha visto, imaginava a vida que ela tinha levado, virava ela num personagem principal;
pegava o quarto de um hotel em que eu tinha ficado numa viagem, e virava ele num capítulo;
pegava a vontade que eu tinha tido aos 10 anos de ser astronauta e transformava ela numa viagem espacial em 200 páginas;
pegava a saudade da minha mãe que tinha morrido (ela se chamava Violeta) e transformava a saudade num buquê que o herói do meu último livro ia dar para a namorada.
Fui me sentindo tão poderosa de poder transformar tudo assim!
Quando acabava um livro, mal descansava: já começava outro. Eu não queria mais descansar: eu só queria ficar assim: virando, escrevendo: aqui: na minha mesa de trabalho. Cada ano que passava eu ficava mais e mais horas aqui.
Eu conheço essa mesa mais do que qualquer outra coisa.
Cada pedacinho dela.
Sei de cor onde a madeira é mais clara, mais escura; se tem racha, arranhão, se tem mancha, de olhos fechados eu boto o meu dedo em cima: é aqui!
Tudo tem lugar certo na minha mesa, o papel, o lápis, o apontador, a borracha. Não sei transformar com máquina, só sei virar à mão: apagando, rabiscando, sentindo o cheiro do lápis (na hora de fazer a ponta então!).
A lâmpada também: está sempre no mesmo lugar. Bem aqui do meu lado esquerdo. E eu me habituei a ficar tantas horas nessa mesa, que a lâmpada ficava muito, muito tempo acessa.
Um dia eu dei pra transformar coisa curta:
transformava uma dor em vírgula;
virava um alívio em ponto de exclamação;
transformava uma esperança em interrogação.
Gostei. Me senti meio feiticeira.
Escrevi 26 livros.
Mas quando eu estava escrevendo o último capítulo do vigésimo sete livro, o sonho voltou!! O mesmo. O mesmo sonho que eu tinha tido na noite dos meus 15 anos. Todo sonhado em azul.
Começava igualzinho: eu estava deitada na praia; e o azul da areia era esbranquiçado. A parede na minha frente também esbranquiçada. E na parede as duas janelas: A TROCA e a TAREFA escritas em azul bem forte.
Me levantei. Sabendo que uma janela tinha respondido, mas a outra ainda não. Eu queria a resposta!
Bati com força no vidro, e a janela se escancarou: na minha frente estava o mar! Toda vida: azul-turquesa e de calmaria. No peitoril da janela, tinha um bilhete azul clarinho dizendo assim: "No dia que você acabar a tarde, tua vida acabará também!"
Tarefa? que tarde, eu pensei. Virei o papel.
Feito me respondendo, o bilhete dizia assim do outro lado: "A tarefa está desenhada na areia, na parte da areia que fica mais junto do mar."
Pulei a janela. E logo ali, entre o mar e a praia, bem junto de onde a onda chegava, a tarefa toda desenhada. Tinha 27 livros desenhados na areia.
Eu fui andando.
Olhando pra cada desenho.
Reconhecendo cada um dos meus livros. Lembrando de cada história. De cada personagem. Sentindo saudade de fazer cada um.
Fui passando por todos, até chegar no último livro.
Cada um dos 27 livros tinha sido desenhado na areia chegando sempre um pouco pra perto do mar.
O último ficou tão perto, que quando a onda vinha bater na areia, apagava um pouco dele.
Me ajoelhei na areia, querendo riscar de novo o que a água tinha desmanchado.
Mas a onda veio de novo e apagou.
Meu dedo riscou outra vez.
A onda desmanchou.
O dedo desenhou.
O mar apagou.
E eu comecei a sentir medo. Um medo que eu nunca tinha sentido. E aí eu ouvi a mesma voz que tinha me falado na hora da troca. A voz me disse assim:
–– Cada um tem uma tarefa na vida. A tua é escrever 27 livros. Na hora que você botar o ponto final no vigésimo sétimo livro a tua tarefa vai estar acabada e a tua vida vai terminar.
E me repetiu o aviso, e me repetiu de novo.
Tapei o ouvido não querendo escutar mais.
Ficou de noite, o azul de tudo tão marinho! E eu acordei (tinha dormido aqui mesmo na mesa, debruçada no último capítulo do meu 27º livro).
Olhei pro papel: e agora? Da mesma maneira que tinha sido verdade o aviso da troca, agora eu sabia que ia ser verdade o aviso da tarefa.
Empurrei o papel.
Lápis, borracha, empurrei tudo pra lá: era só eu não acabar o 27º livro que a minha tarefa não se acabava, e a minha vida também não.
Apaguei a lâmpada.
Não transformei mais nada.
Mais nada.
Nada.
 

O último capítulo do meu livro, o lápis, o apontador – ficou tudo como eu deixei a cinco anos atrás.
Continuo paralisada: acabando a tarefa a minha vida se acaba também, eu sei.
Vivi desesperada esses cinco anos. Um dia, pra ver se sossegava um pouco essa agonia de não poder mais terminar um livro, eu quis transformar de outras maneiras. Por exemplo: experimentei virar o meu desespero num boneco, num cavalinho, num cavalinho, numa figura qualquer de barro.
Mas a minha mão não se grudava na massa, me dava tanta aflição mexer com aquilo, era só enterrar os meus dedos no barro que eles ainda ficavam com mais saudades da maneira enxuta do lápis.
Experimentei transformar usando nota musical. Mas que o quê! - Eu não me ligo em sons.
Experimentei pintar uma aquarela; pintar com tinta a óleo eu também quis; pintar de qualquer jeito, mas quem diz? Tentei, tentei, cansei; não sei mesmo como é que se vira uma coisa com tinta, eu só sei, eu só quero é virar com letra.
Tempos atrás eu comecei a escrever essas anotações. Mas parei logo. Achei que minhas lembranças do passado estavam com jeito de história.
É preciso muito cuidado.
Não quero que ninguém, NINGUÉM, possa pensar que eu estou transformando as minhas lembranças em livro.
Há seis meses que eu não abria esse caderno, não pegava um lápis. Um dia (em agosto, eu me lembro) não aguentei mais: desatei a escrever cartas pros amigos. Mas eles me disseram que eu não escrevia cartas, escrevia histórias, e que eles estavam juntando elas todas pro meu editor publicar.
Que medo! Que aflição de recolher tudo correndo: qualquer livro publicado vai ser meu vigésimo sétimo livro.
Parei de novo com as anotações. Que nem eu parei com as cartas.
Eu não ando me sentindo bem. Tenho ido ao médico. Ele disse que eu estou emagrecendo muito. Pediu uns exames.
Se eu não tivesse me apaixonado por essa mania de transformar a vida em livro eu não ia me importar de morrer.
Mas estou sempre achando que vou me esquecer do aviso, que eu vou acabar a minha história, que vou fazer outras, que – ah!! vai ser feito ressuscitar.
Tenho ido todas as semanas ao médico.
O médico hoje veio aqui: não tive mais força pra sair de casa. Ele disse que não sabe que doença é essa que eu tenho: os exames não acusam nada.
Estou me sentindo cada vez mais fraca. Não saiu mais aqui da mesa. Essa noite nem fui pra cama: botei a minha cabeça num papel branco e dormi.
Hoje eu e um papel branco ficamos nos olhando tanto tempo que a minha vista doeu. Na hora que eu pensei que era um cisco no olho; fui no espelho ver. Que susto quando eu dei de cara comigo (nunca mais tinha me olhado no espelho): eu devo estar mesmo muito doente.
E os médicos só fazem é pedir mais exames.
Mais exames.
Hoje, finalmente, eu tomei a decisão de acabar o meu livro.
O aviso não me interessa mais. Tenho que transformar de novo: o resto não me interessa mais.
Se essa é minha paix...*
 
 



(Lygia Bojunga)


 
 
* Nota de Lygia Bojunga: A escritora morreu sem acabar a frase. Deram com ela debruçada na mesa, a ponta do lápis fincada na paixão.

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