RIO - Sem rimas ou palavras, uma outra poesia circulava no universo de Cecília Meireles. Nublado por tudo o que a poeta e jornalista significou, o artista plástico Fernando Correia Dias permaneceu até hoje à margem da mulher com quem foi casado por 12 anos. Uma seleção de suas gravuras, entre as dezenas guardadas a sete chaves por ela, chega agora aos olhos do público. Jaziam na casa onde a poeta morou, no Cosme Velho, desde o suicídio de Fernando, em 1935, aos 42 anos. Agora, estão reunidas no livro “Fernando Correia Dias — Um poeta do traço” (Editora Batel), do historiador português Osvaldo Macedo de Sousa, que será lançado no próximo dia 23, na Livraria da Travessa do Centro. A obra também será exposta no Real Gabinete Português de Leitura, no dia 21, e no Centro Luso-Brasileiro de Cultura, em Laranjeiras, no dia 22.
— Por força do suicídio, minha avó ficou chocadíssima. Ela sumiu com aquilo tudo — conta Alexandre Carlos Teixeira, um dos netos de Cecília, curador do livro. — Mas foi um sumiço pensado. Não tascou fogo. O material ficou o tempo todo lá, cada gravura envolta em papel neutro. Depois que me mudei para a casa, eu ficava olhando a exuberância daquela obra.
Até a morte de Cecília, em 1964, a mãe de Teixeira, Maria Mathilde, não deixava que ele tocasse nas obras. O neto da poeta teve acesso ao material quando se mudou para a casa do Cosme Velho, cedida em comodato a ele pelo primo Ricardo Strang, que comprou o imóvel em 2010.
Ilustrador dos livros da mulher, gravurista de jornais, escultor, Correia Dias era sucesso em Portugal quando decidiu morar no Brasil. Especialista em quadrinhos e artes plásticas, Macedo de Sousa estudara vida e obra de Correia Dias. Aqui, a exposição terá os mesmos moldes da mostra que se seguiu ao lançamento do livro em Portugal no ano passado, nos 120 anos da morte do artista: 30 painéis com uma cronologia de sua obra.
— Correia Dias foi um cenógrafo da vida, seja nas artes gráficas, nas artes decorativas ou na publicidade. Foi o primeiro artista português a criar uma página publicitária para os seus serviços multidisciplinares, como caricatura, ilustração, cartazes, vitrais, cerâmica, pirogravura, marcenaria. Seu Grupo de Coimbra seria o grande motor da introdução do modernismo em Portugal — sintetiza o historiador, em entrevista de Lisboa.
Ruptura com o naturalismo
O livro relata a relevância do Grupo de Coimbra, de artistas que ilustravam as capas dos jornais da renomada universidade portuguesa no fim do século XIX. Nascido em Penajoia, área rural de Portugal, Correia Dias viveu em Coimbra uma efervescência cultural, e foi diretor artístico de “O Gorro”, marco na história da arte portuguesa.
— Nessa cidade o que se cultivava eram as letras e as ciências, e muito pouco das artes. A sorte dele foi ter criado um grupo de jovens estudantes, de diferentes partes de Portugal, que ali desenvolveram a sua tertúlia plástica consultando as revistas que vinham da Europa e explorando estéticas, na ruptura com o naturalismo dominante — relata Macedo de Sousa. — Correia Dias foi um genial vanguardista, porque com a poesia do seu traço soube embelezar o cotidiano com originalidade.
Para o estudioso, o artista ampliou seu horizonte após a chegada ao Brasil, em 1914. Aqui, ainda antes de conhecer Cecília Meireles, mostrou sua face múltipla e suas influências:
— Em cada traço dele há um pouco de literatura, essencialmente poesia. Ele é o grande poeta do traço, e todos os artistas nos anos 1920 e 30 acabaram por beber um pouco dessa influência poética, dessa forma revolucionária de estar no desenho, nas artes, apesar de aí (no Brasil) ser pouco reconhecido.
O artista desembarcou no Rio com “quase uma centena de trabalhos para expor e vender”. Poetas, escritores e intelectuais o esperavam no cais. A fauna e a flora nacionais imediatamente se incorporaram ao seu traço, e ele se tornou colaborador dos principais jornais e revistas de então — entre eles “A Manhã”, “A Época”, “Diário de Notícias” e o GLOBO. Foi ainda um capista concorrido de livros, no Brasil e em Portugal. A poeta e o artista se conheceram por meio de amigos em comum e se casaram no ateliê de Correia Dias, em 1922. O enlace foi tema de notícias, cujos recortes também ficaram na casa do Cosme Velho.
O neto Alexandre acredita que o avô, no início do casamento, foi cicerone da avó nos meios artísticos e culturais do Rio. Depois, o brilho de Cecília teria ofuscado o marido:
— Ele a apresentou à roda de intelectuais, que era dele. A Cecília era lindíssima. Os caras ficaram doidos por ela. E era muito inteligente. Todo mundo ficava apaixonado.
O drama da depressão, diz o neto, ronda a família. Para ele, o fulgor e a exuberância da poeta nublaram o ânimo do avô. O cume da angústia teria se dado em 1934, um ano antes do suicídio: na primeira viagem de regresso a Portugal, feita a convite do governo, Correia Dias foi com a mulher e achou que seria ele a estrela:
— Mas o vovô já foi como um agregado. O convite foi para a Cecília. Imagino que ele pensasse que seria o regresso do filho à sua casa. Mas foi inevitável: Cecília virou estrela, foi dar palestra em Coimbra. Eles estavam juntos havia 12 anos. Na volta, minha avó já falava dessa depressão dele.
Osvaldo Macedo de Sousa considera que o casamento foi “bênção e maldição” para o artista:
— A família obrigou-o a optar por linhas menos revolucionárias, a trabalhar com maior regularidade para manter o equilíbrio financeiro da família. Essa pressão seria uma das razões da doença neurastênica que o levaria ao suicídio — relata. — Cecília foi sua musa, assim como ele seria a musa de Cecília, e ambos se ajudavam. Contudo, quanto mais brilhava a estrela de Cecília, mais ele se sentia minimizado.
O suicídio levou a poeta, então com 35 anos e três filhas, a encaixotar a memória:
— A família sentiu-se traída. Os amigos artistas, escritores, historiadores, para não ofenderem Cecília, evitavam falar de Correia Dias, e assim a memória se foi apagando, o esquecimento sepultando a importância desse mestre, não só pela sua obra, como pela influência entre os jovens.
O material encontrado está sob a guarda do condomínio que administra os direitos intelectuais de Cecília Meireles — fruto de disputa judicial desde 2000. No acervo guardado pela poeta há, inclusive, ilustrações do marido para capas de livros dela que não chegaram a ser publicados. E desenhos que ela fez influenciada pelo estilo do marido. Alguns estão no livro “Batuque, samba e macumba”, lançado após a morte de Cecília.
Emerge agora, junto com gravuras, charges e projetos do artista, a discussão sobre sua influência na “ruptura modernista” (já iniciada nos anos 1910, com J. Carlos). A revolução que Correia Dias imprimiu, na avaliação de Macedo de Sousa, está nas ilustrações, na diagramação e na criação de uma “nova dinâmica” nas capas dos livros:
— A particularidade do seu gênio é que ele nunca procurou impor o seu estilo à obra. A obra é que lhe reclamava um estilo único para cada trabalho. Assim podemos encontrar o iluminista medievalesco, o ilustrador barroco, o decorador simbolista, o vanguardista modernista, o nativista ao lado do afrancesado.
Em 2011, com a possibilidade de ver o espólio que a família guarda no Rio, o historiador português finalmente concretizou seu sonho:
— Consegui coser todos os retalhos que agrupei ao longo dos anos, mas ainda há muito mais por descobrir, porque este gênio é um poço de surpresas. Todos os artistas ligados às artes gráficas seguiram suas pegadas, desenvolveram seus conceitos, e agora que se vai redescobrir o seu legado haverá muito o que reescrever na história da arte carioca, diria mesmo da arte brasileira.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/livro-exposicao-revelam-obra-de-fernando-correia-dias-marido-de-cecilia-meireles-9461759#ixzz2eKpPXqSJ
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