Em que terra estão pelados os meninos quando o herói está desnudo?!
Celso Sisto*
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Carlos Drummond de Andrade
A literatura infantil sempre se valeu da heroicização de seus protagonistas para atrair o olhar do leitor infantil. Fosse esse herói criança ou não. Fosse esse herói constituído e instruído por um modelo clássico ou não.
De todo modo, estamos diante de uma estratégia, eficaz, para segurar (e conquistar) o leitor: a manipulação bem dosada de um percurso aventureiro que vai sempre do desequilíbrio ao equilíbrio final; da falta ao preenchimento de um vazio; do desafio à conquista de objetivos; do deslocamento ao retorno; da missão à remissão; do não-saber ao conhecimento, do desvalor à glória.
Por trás desta estratégia há modelos de heróis a serem percebidos, desvelados e discutidos. Por vezes esse herói pode variar do mítico ao urbano, do adulto ao infantil, do solitário ao coletivo, do egocêntrico ao social, do psicológico ao psicossocial.
Mas, a intenção de alçar o protagonista à categoria de herói é claramente uma prerrogativa das obras infantis? Não seria este o alvo de toda obra para crianças? Tornar herói é distinguir, incensar, valorizar, condecorar, tornar exemplar, multiplicar (e até emocionar!).
Todas essas características positivas já são, por si só, suficientes para fazer a festa dos que olham a literatura infanto-juvenil com olhar utilitário! Mas também são suficientes para promover a reflexão sobre a existência de um estatuto que precisa fazer de toda história para crianças uma história de feitos e missões, como se, em última instância, para ter ressonância e permanecer, fosse preciso beirar ao aventureiro, ao hiperbólico e ao “vangloriável”! Bem sabemos que obras várias seguem outros caminhos. E nem por isso deixam de gerar grande interesse no leitor! E nem por isso deixam de seduzir e encantar. Mas, deixemos isso de lado, por ora. Ainda é tempo de levantar outras questões!
Voltemos à epígrafe deste ensaio, que curiosamente está no livro “Alguma poesia”, do poeta Drummond, publicado em 1930. O poema chama-se “Poema de sete faces”, e, dele, nos interessa o numeral e o nome próprio. O numeral, porque sete é sempre um número mágico e com vasta simbologia: são sete as vidas do gato, as cores do arco-íris, os dias da semana, os pecados capitais, as maravilhas do mundo, as notas musicais, as cordas da lira... E Raimundo, o nosso herói cheio de possibilidades poéticas na pena de Drummond, passa a ter aqui, na obra de Graciliano Ramos, a equivalência ao bicho que ele diz que vai levar para o reino de Tatipirun, quando lá voltar: o gato.
Para celebrar as sete vidas do gato, vamos multiplicar a vida de Raimundo por sete, para seguir seu trajeto na aventura de tornar-se herói em “A terra dos meninos pelados”, livro que em 1937 (olha o sete novamente aqui!) ganhou o prêmio de Literatura Infantil do Ministério da Educação. O livro só foi publicado em 1939 pela Livraria do Globo, de Porto Alegre, e encontra-se hoje na 29ª edição. Curiosamente essa novela inicialmente publicada sozinha, passou a aparecer também, desde 1962, em outra obra de Graciliano Ramos, intitulada “Alexandre e outros heróis”, que reúne mais dois livros: “Histórias de Alexandre” (contos do folclore infanto-juvenil) e “História da República” (sátira à história do Brasil); e que se encontra hoje na 44ª edição, agora no catálogo da editora Record.
Preparando os novelos para deixar saltar o gato
A obra de Graciliano Ramos, diz a crítica, é sempre contundente e associa estética e ética, num todo orgânico1. O comprometimento político do autor, refletido em sua obra, faziao levantar a voz (ou a pena!) em prol dos oprimidos, dos artistas, e também para defender suas posições políticas. Baseado nisto, tentaremos averiguar que tipo de herói constrói Graciliano nesta obra.
A terra dos meninos pelados conta a história de Raimundo, um menino diferente, que tem a cabeça pelada e um olho preto e outro azul. Os outros meninos viviam mangando dele.
Ele por vezes não se zangava, às vezes se entristecia, por outras se aperreava demais. Os outros meninos fugiam dele. Ele falava só, desenhava na calçada coisas do reino de Tatipirun, onde todos eram fisicamente iguais a ele: cabeça pelada e olhos cada um de uma cor. Num dia em que a brincadeira com água e terra não foi suficiente para mantê-lo alheio às provocações dos outros meninos, ele levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal, subiu o morro e aí começou a vislumbrar a terra de Tatipirun.
No Reino de Tatipirun, Raimundo descobre que as coisas falam, bem como pedra, árvores, automóvel, bichos, etc. Além da serra de Taquaritu, na beira do rio das Sete Cabeças, encontra os meninos pelados, vários, uns quinhentos, brancos, negros, grandes, pequenos, iguais e diferentes uns dos outros, crianças de cinco a dez anos. Vai fazendo amizade com Pirenco, com Talima, Sira, com o Sardento, o Anão, Fringo, a Caralâmpia. E nessa convivência com o grupo, Raimundo vai travando, parece que pela primeira vez, contato com uma vida comunitária, com o coletivo, já que antes era absolutamente sozinho e sem amigos.
Mais do que tudo, nessa terra em que não há noite e nem casas, o aprendizado da liberdade mistura-se com uma certa alegria de viver, celebrada pelo canto, pelo riso e pela dança. Não faz frio, não chove, não há doença, não envelhecem, dorme-se ao relento, embaixo de discos voadores capitaneados por cigarras.
Apesar de ser uma terra em que só se anda pra frente, Raimundo está preocupado em voltar para Cambacará, nome fictício com o qual ele mesmo batiza o lugar de onde veio.
Alega que precisa fazer sua lição de geografia. Mas admite também ter vontade de se mudar pra lá e trazer o seu gato. Enquanto as crianças querem correr, saltar, dançar, ele quer brincar de bandido. Até que resolvem sair à procura de um bicho que saiba histórias compridas e bonitas. Deparam-se com uma guariba velha e cabeluda, uma espécie de macaco. Pedem pra ela contar histórias antigas. Raimundo lembra-se de seu tio estudioso, que dizia coisas atrapalhadas como a Guariba. Ela conta uma história e pega no sono e a história não termina nunca. As crianças deixam-na falando dormindo, gemendo e resmungando. Seguem caminho.
Caralâmpia conta uma história de onde andou quando esteve perdida, uma história sem pé nem cabeça. Depois disso, Raimundo faz o caminho de volta, com a desculpa de que não pode ficar porque precisa mesmo estudar sua lição de geografia. Vai embora, mas com saudade.
Promete voltar, se acertar o caminho; promete ensinar o caminho de Tatipirun a todos que não acreditarem nele. Chega à beira do rio, troca de roupa - estava com um túnica azul, de seda, tecida pela Aranha vermelha -, atravessa, desce a serra de Taquaritu, chega ao morro conhecido, perto de casa, passa pelo quintal e pelo jardim e pisa na calçada. E está de volta.
As cigarras chiam e as crianças brincam na rua.
Os sete passos e as sete vidas
O Sete designa a totalidade das ordens planetárias e angélicas, e todos os conjuntos perfeitos, segundo o mais famoso dicionário de símbolos2. Tem a ver com ciclo completo, a perfeição dinâmica, “indica o sentido de uma mudança, depois de um ciclo concluído e de uma renovação positiva”. Tomando por base essa simbologia, foi possível perceber um “desenho” igualmente simbólico para a trajetória do nosso herói Raimundo. Para fechar o ciclo de tornar-se herói, atribuímos-lhe sete vidas e sete passos (sete é ainda a totalidade do espaço e do tempo, a totalidade do universo em movimento). E achamos por bem associar isso ao gato, que é o animal de estimação de Raimundo. E já que gato está ligado, a um só tempo, às atitudes ternas e dissimuladas, logramos perceber uma certa semelhança de Raimundo com o referido animal. Ainda mais que gato evoca a noção de caos primordial, força e agilidade, sagacidade, reflexão e clarividência. Isso já nos basta!
Para iniciarmos esse percurso, vamos lançar mão ainda da estrutura narrativa, usada por Nelly Novaes Coelho3 (1991, p. 100), para estudar os contos tradicionais, a partir da simplificação de Propp. A saber: 1. Desígnio ou Missão; 2. Viagem; 3. Desafio ou Obstáculos; 4. Mediador ou Auxiliar Mágico; 5. Conquista do Objetivo. A partir desta estrutura, foi possível chegar a uma outra estrutura, um pouco mais estendida, para fechar o trajeto do nosso herói em sete momentos. É o que iremos descrever a seguir. Cada uma das sete vidas que atribuímos a Raimundo está rimada com um atributo, que diz respeito àquela etapa vivida por ele. A rima é, novamente, uma maneira de recuperar Drummond da epígrafe.
Primeira vida: Raimundo rima com furibundo No princípio é a falta. Raimundo é um menino diferente, mas falta-lhe algo. Falta-lhe parecer com os outros, encontrar seu grupo. Os meninos mangavam dele exatamente por que ele não tinha as características físicas que o fariam pertencer ao grupo deles: tinha a cabeça pelada, e um olho azul, o outro preto. Embora, aparentemente ele tenha se acostumado com os apelidos que colocavam nele, no fundo no fundo se aborrecia. Se os meninos fugiam dele, ele
fugia para as atividades que fazia ao brincar sozinho, desenhando na calçada, inventando um reino em que todos tinham a cabeça pelada e um olho de cada cor. É para suprir essa falta, a falta de pertencimento, que Raimundo dá seu primeiro passo, movido pela raiva.
Segunda vida: Raimundo rima com rubicundo Neste estágio, Raimundo está rubicundo (vermelho) de vergonha e de raiva. O seu desequilíbrio vai chegar ao extremo, exatamente porque enquanto brincava na areia, com água, construindo a Serra de Taquaritu e o Rio das Sete Cabeças, os meninos aparecem para gritar e mexer com ele. Diante do insuportável, ele fecha os olhos, para anular-se, anular tudo, fazer sumir, inclusive, vozes. Por fim, quando decide agir, tomado pelo impulso, levanta-se, entra em casa, atravessa o quintal, ganha o morro e finalmente vê surgir a terra de Tatipirun, junto com o espantoso fato de uma ladeira que se abaixa para buscar o caminhante.
Terceira vida: Raimundo rima com fecundo Apesar da fuga, Raimundo encontra-se fecundo. Está disposto a aventurar-se no novo, fazer descobertas, conhecer o que havia, de certo modo sido inventado por ele mesmo. Ao subir a Serra de Taquaritu, ele vai deparando-se com seres “animados”: um automóvel, uma laranjeira, que lhe preparam o terreno para o que ele ainda vai encontrar adiante. E ele desloca-se, sempre para a frente, na tentativa de encontrar os meninos pelados, seus iguais.
Quarta vida: Raimundo rima com facundo Raimundo chega à beira do rio das Sete Cabeças. As margens do rio se aproximam para ele passar, e se afastam depois, tal qual o Mar Vermelho bíblico. E é aí que ele vê os meninos pelados pela primeira vez. Primeiro ele ronda os meninos, com um certo receio de puxar conversa, até finalmente conversar com Pirenco. Aqui começa a possibilidade de um Raimundo facundo, uma abertura para o discurso individual, para a eloqüência do falar, para a destreza do seu imaginário, que já era rico, antes de ele chegar até ali. É esse imaginário eloqüente que vai permitir a Raimundo dialogar com aqueles meninos e meninas, tão iguais a ele na forma física – cabeça pelada e olhos de cores distintas - mas tão diferentes, cada um com suas particularidades. O grupo não elimina o individual! Cambacará – o lugar de onde veio é o elo de ligação e de interesse dos meninos. Mas Raimundo ainda está vulnerável e, quando os meninos riem dele, foge às pressas, atravessa o rio, e se esconde detrás de um tronco. Surge o primeiro obstáculo.
Quinta vida: Raimundo rima com profundo
O trajeto de Raimundo para tornar-se um ser social vai se aprofundando. Ele conhece a Aranha Vermelha, aceita a túnica de seda, tecida por ela, e se despe. Os meninos se aproximam, vêm a seu encontro e, estando Raimundo com nova roupagem (e tendo feito esse pequeno ritual da troca de pele), conhece finalmente os outros do grupo: Talima, o Sardento, Sira, o Anão, e fica sabendo da existência da Caralâmpia. Há um certo desafio no ar: ser aceito por seus iguais. O que Raimundo quer é ser aceito, pertencer, fazer parte do coletivo. E nesse diálogo das trocas, Raimundo fica sabendo que aquele era um universo muito diferente do seu: não há noite, as crianças dormem só com um olho, embaixo dos discos voadores pilotados pelas cigarras, não chove ali, não faz calor ou frio. E, paulatinamente ele vai sendo aceito, tão bem aceito, que até o Sardento se sente à vontade para apresentar-lhe seu projeto de vida: fazer com que todos tenham sardas, como ele. A maior prova de que Raimundo percebe a unidade na diversidade é reprovar a proposta do Sardento. E depois desse diálogo meio escondido, eles se incorporam ao grupo, que já ia adiante.
Sexta vida: Raimundo rima cm vagamundo Raimundo começa, enfim, a ganhar uma certa independência naquele reino de Tatipurun.
Começa a mover-se mais à vontade. A conquistar o seu lugar no grupo. E suas descobertas continuam. Agora sabe que ali ninguém adoece, que ninguém envelhece. E, com mais leveza, secundado pela dança, canto, palmas que se agitam (como num Domingo de Ramos?), eles reencontram a Caralâmpia, que é agora uma princesa de mentira. Raimundo se aproxima dela, conversam, falam do gato que ele gostaria de trazer para viver ali e finalmente, ganhando maior mobilidade, eles todos saem à procura de um bicho que saiba histórias compridas e bonitas.
Quando encontram a Guariba velha, começa o processo de remissão de Raimundo. Ele imediatamente liga-a a seu passado, lembrando-se do tio sábio que é tal qual àquela espécie antiga de macaco. A Guariba começa a contar a sua história e emperra, dorme no meio (ou no fim?) da história e geme e resmunga. As crianças deixam-na sozinha e vão embora. Agora é a vez da Caralâmpia inventar uma história para o seu desaparecimento. Raimundo também vai dando ao grupo pinceladas de sua história pessoal, sem muitas peripécias, porque afinal, interessa é o grupo, o ser social. E sua existência social ainda não guarda muitas memórias.
Sétima vida: Raimundo rima com jucundo
Raimundo começa o seu processo de retorno. Afasta-se lentamente, vai e não quer ir, vai e quer voltar. As crianças o seguem ao longe. De novo ele tem que atravessar o rio, praticar o ritual do despir-se, subir a serra de Taquaritu. Enquanto se despede, afirma que ficou gostando muito deles, que vai sentir saudades (prova evidente do lastro, da raiz), vai relembrando em seu discurso praticamente tudo o que viveu ali, e admite que talvez não ache o caminho de volta, quando quiser vir de novo ao reino de Tatipirun. Pode-se, vislumbrar, de algum modo, um comportamento jucundo, um certo ar aprazível, prazenteiro de Raimundo ao assumir sua decisão de voltar. Ele encontra nesse trajeto os mesmos seres “animados” que encontrou na vinda. Os meninos somem, finalmente ele atravessa o quintal, o jardim, pisa na calçada e está em casa. Ao redor, as cigarras chiam nas árvores e as crianças brincam na rua.
E ele traz a possibilidade de ver o seu mundo com outros olhos. Mas traz também a glória de ter se encontrado como ser social, pertencente ao mundo e preparado para pertencer ao grupo (seja ele qual for!).
Vidas que se somam
Gato é animal domesticado, coisa que Raimundo não é no princípio da aventura e passa a ser, de algum modo, ao final! Transcorridas as sete vidas, Raimundo é herói. Algumas perguntas, entretanto, persistem: quanto mais se marca o protagonista com características negativas, mais ele se torna exemplo? Autores da literatura adulta fazem isso de forma diferente quando escrevem para crianças (essa é uma pesquisa a ser feita). Há mais jogo? A linguagem é mais rica? Fazem menos concessões? O destinatário claro do texto é mais eficaz? Ou as apropriações de obras que se destinam primeiramente ao leitor adulto tem mais a nos dizer e são, portanto, mais sintomáticas, mais esclarecedoras quando eleitas pelo leitor criança? Tendo o autor experiência ou não em escrever para crianças, seria antes necessário compreender os conceitos de “infantil”, “infância” e “criança” que estão por baixo de uma obra destinada a esse leitor, pois o herói da literatura infantil não é igual ao herói da literatura para adultos.
Diz Kothe; “não há consciência sem crítica” (1997, p. 23). O herói, para completar o seu ciclo, deveria tomar consciência de sua mudança, de seu amadurecimento. Só depois de se criticar, de se auto-analisar, de se reconhecer, se tornaria consciente de seu avanço, mudança, progresso, melhoria, amadurecimento. Raimundo esboça isso, mas não o diz claramente.
O herói infantil, apesar de mudado, não faz necessariamente esse exame de consciência (normalmente quem faz isso é o leitor!), essa avaliação crítica de suas ações e de sua natureza, exceto em obras infantis, cujo protagonista é adulto (como por exemplo, Gulliver).
Raimundo é uma personagem que se modifica ao longo da narrativa. É complexo. Os vários estágios que ele atravessa são estágios pertencentes ao comprometimento de fazer aflorar um Raimundo como ser social. Mas “não é a consciência que determina o ser, mas basicamente o ser social do homem que determina a sua consciência” (KOTHE, 2000, p. 6). É de um vazio; do desafio à conquista de objetivos; do deslocamento ao retorno; da missão à remissão; do nãosaber ao conhecimento, do desvalor à glória.
assim que Raimundo, de certo modo, chega às margens de seu ponto de partida, ao final do livro. A dinâmica social presente na obra é a de uma sociedade “governada” pelo grupo e para o grupo.
Este é o mote de Raimundo: alguém que está marcado, isolado, diferenciado, e foge, e que, ao fugir, depara-se ainda mais consigo mesmo e com as situações das quais estava fugindo.
Esse herói solitário, individualista, é obrigado a conviver com o grupo, coisa que até então parecia não fazer parte do seu repertório de vida. O mais curioso é que é através de uma porta aberta pela fantasia que ele percorre o caminho da expiação, afinal, o reino de Tatipirun, a Serra de Taquaritu são criações dele mesmo. Mas, a despeito de ser uma trajetória social (a que ele faz no tal reino) porque coletiva, grupal e de interações com o outro, ela é também um mergulho em si, já que o tal reino de Tatipirun é fruto de sua própria criação. È como se o texto comprovasse que ele entra em casa, para sair de si, chegar ao outro e voltar!
O “governo” do sistema social daquele grupo é o coletivo, mediado pela fantasia. E no coletivo, emergem as individualidades. O “gesto semântico” da obra (KOTHE, 2000, p. 7) é apontar para essa sociabilidade como inerente ao sujeito:
“se as obras literárias são sistemas que reproduzem em miniatura o sistema social, o herói é a dominante que ilumina estrategicamente a identidade de tal sistema.
Rastrear o percurso e a tipologia do herói é procurar as pegadas do sistema social no sistema das obras.” (KHOTE, 2000, p. 8)
De algum modo é isso o que fazemos aqui. De algum modo é isso o que faz Graciliano ao escrever A terra dos meninos pelados. Mas há, nesse tipo de obra, uma predisposição do autor para mostrar como o herói honra a sua honra, mais do que a conquista, uma vez que já sabemos, de antemão, que essa é a função do protagonista. Ou seja, sabemos que ele é o herói e, ciente disso, parece querer nos mostrar como honra a sua honra (que poderia ser também traduzida por sua reputação). É isso! Em última análise, o trajeto do herói é a sua justificativa para o lugar que sabemos que ele ocupa!
Mas isso é leitura de adulto. Será que as crianças percebem assim? Eis aí uma outra pesquisa: a recepção do herói, pelo leitor criança.
A terra dos meninos pelados tem pontos de contato com os contos clássicos: não sabemos quando acontece a história, há uma indefinição de tempo.
Raimundo se aproxima do herói trágico, se pensarmos que seu percurso origina-se na fuga e no esconder-se. “O herói trágico se constrói pela queda” (KOTHE, 2000, p. 13). Mas é essa queda que vai elevar Raimundo, pois tendo a opção de ficar entre os “iguais-diferentes” do reino de Tatipirun, ele opta por voltar, provavelmente modificado e com força suficiente para enfrentar os meninos que sempre mangavam dele. Mas sua queda inicial é para o alto, pois, para chegar ao reino de Tatipirun, é preciso subir o morro (que se aplana para recolher seu novo caminhante). E esse subir é também um descer ao encontro dos outros e, por fim, ao encontro de si mesmo. Mas não há na obra essa dimensão psicológica como nesta leitura que agora faço! Essas possibilidades são entrelinhas!
Graciliano, com tal obra, também se mostra interessado na representação da criança na literatura infantil brasileira. Aqui ele “encena” a luta do herói Raimundo para aceitar-se como tal; para encontrar seu lugar no mundo.
Afinal, a lição de geografia que ele tem que estudar não pode estar distante desse
mapeamento pessoal, dessa localização geográfica, desse eu, desse ser, num contexto social. E essa lição, quando Raimundo5 decide que é hora de voltar, já está estudada e, quiçá, aprendida.
Os modernistas já tematizavam em sua obra, à época da publicação de “A terra dos meninos pelados”, esse sentimento de melancolia, solidão, frustração, angústia e perplexidade diante da vida. Em última análise, é também a reflexão do destino humano (que tal olhar isso em Cassiano Ricardo, por exemplo?).
Esta é, de fato, uma história sobre exclusão, e “a busca do herói nasce do desejo de preencher essa carência” (o ser excluído), que significa “descobrir que espaço lhe compete no universo” (ZILBERMAN, 2005, p. 69).
O narrador não soluciona o conflito proposto pela história. Ele mostra, de certa forma, um percurso mágico, e ao mesmo tempo real, de aventura, mas pára a narrativa exatamente no momento em que o menino volta para casa. Sua inserção e aceitação neste mundo “real” é presumível, mas não é mostrada concretamente pelo livro. É, portanto, um final aberto.
Mas Graciliano Ramos não chega a apresentar ao leitor essa criança por dentro (o que faz, por exemplo, Lygia Bojunga, em várias de suas obras). Ele se atém a mostrar as relações sociais estabelecidas por seu protagonista a partir da diferença e da igualdade no trato com o coletivo.
Talvez, por estar focado na relação social, o texto conserve uma certa agilidade do narrador, uma “rapidez na comunicação e interação com o leitor”, que se concretiza de forma enxuta e direta.
Raimundo também quer saber quem ele é, mas é um “quem ele é” em relação ao outro; ou melhor, na relação com o outro. É o ser social que interessa para o ser individualizante. Ele foge de casa, não é claro na nomeação do lugar de onde veio (inventa na hora o nome Cambacará), mas se nega a mudar de nome; quer ser Raimundo, e não Pirundo, como quer Talima. O itinerário de Raimundo, bem se vê, é o de conhecer o igual para aceitar se
diferente. E ainda assim, isso não faz dele um herói individualista (ou individual), pois é esse o reconhecimento de que necessita para conviver socialmente com os outros.
A construção não está focada numa liberação interior do personagem às amarras da não aceitação. Parece-me que ele já se aceita como diferente – não totalmente, é claro, porque então não haveria história. A viagem é a viagem da comprovação de que, na diferença e na igualdade, as individualidades podem ser preservadas. Não é preciso abdicar de suas características para conviver com o grupo! Por isso Caralâmpia pode ser princesa inventada; o Anão pode viver choramingando; o Sardento, em Tatipirun também aprende isso. E é exatamente Raimundo quem o faz ver a irrelevância do seu projeto de que todos tivessem na cara manchas iguais às suas. O sintomático é isso ser veiculado por Raimundo, como se a situação do Sardento sublinhasse com mais força, que a solução também para ele não é desejar que, em seu mundo de fora de Tatipirun, todos tivessem a cabeça pelada e um olho preto e o outro azul. Ele ensina ao outro uma “verdade” que ele acaba de reconhecer.
Dado importante na caracterização desta obra e das personagens é que a fantasia suplanta a realidade. O trajeto de Raimundo é por um reino inventado. Mas ele mesmo decide voltar, para enfrentar a realidade; superando-se, de alguma forma; a fantasia ajudou-o a superar a solidão. Será que isso é amadurecer? Como indivíduo ou como ser social? Embora o foco da obra não recaia na dimensão psicológica do protagonista, o amadurecimento (talvez ainda não constatado pelo próprio personagem) pode ser encarado nos dois âmbitos, tanto
para o individual como para o ser social.
Fica, ainda, para o leitor responder, ao longo da leitura, algumas dúvidas: esse menino é urbano ou rural? Quanto tempo Raimundo “fica” em Tatipirun? Algumas respostas nos escapam! E, talvez, continuem escapando do leitor. E talvez escapar do leitor seja seu propósito! Vejamos: se Tatipirun é um reino de fantasia, inventado pelo menino Raimundo, os episódios vividos por ele ocorrem apenas na sua intimidade? Eis aí uma suspeita! Mas como a passagem entre os dois universos pelos quais ele transita, (o real dele e o imaginário dele), dá-se de forma natural (como o fantástico, por exemplo, irrompe no Sítio do Pica-pau
Amarelo, sem divisão clara e sem maiores questionamentos), fica a possibilidade do uso de recurso semelhante. Por outro lado, podemos observar que só um dos universos tem existência distinta e “concreta”: Raimundo em Cambacará. O outro universo espacial só passa a existir quando Raimundo extrapola esse espaço e penetra concretamente em sua fantasia!
Como nós, leitores, podemos acompanhar os sinais de amadurecimento do personagem? Não há uma trajetória de percalços íntimos, de fragilidades e sentimentos individuais e nem um mergulho no mundo interior da personagem, que nos faça acreditar num trajeto psicológico! E nem é a alma do protagonista que está em exposição!
Mas sua vivência é preenchida pela aventura intermediada pela Fantasia! O desejo insatisfeito (de convivência social) só encontra ressonância na fantasia (da imaginação). Mas como a história é interrompida quando ele volta desse lugar da imaginação, jamais saberemos se a experiência de conviver bem com os outros após essa viagem frustra-se ou não. Se quiséssemos afiançar o contrário, poderíamos convocar as palavras de Zilbermam, que diz que “a criança cresce e se engrandece, quando ruma na direção da realização dos anseios interiores, independentemente da colaboração dos demais – sejam outras crianças ou adultos, companheiros ou parentes” (ZILBERMAN, 2005, p. 77-78).
Talvez a maior liberação do herói Raimundo seja exatamente tirar de sobre si mesmo o peso de necessitar da aprovação dos outros. Ele agora poderá transitar mais livre, quem sabe, nesse mundo hostil?
Raimundo, por fim, se converte de discriminado em herói, sem ter que repudiar ou abdicar de suas características físicas: a cabeça pelada pode converter-se em “cabeça aberta ao novo, às novas experiências”, nua, para ser povoada de muitas idéias (que aliás, ele teve sempre, desde o início), um olho azul e outro negro podem sinalizar a possibilidade, sempre louvável de poder ver as coisas (e o mundo!) com olhos distintos, com olhar diferente, com o lugar da alteridade. Que conquista, heim?!!
Voltando a Graciliano, é extremamente gratificante perceber, que ele também era um autor preocupado em “ampliar as possibilidades de representação do mundo” da criança, de modo direto, enxuto, lúdico e emancipador para a literatura infantil que se “praticava” até então, na época de publicação da referida obra.
Há uma licença mágica a governar essa história: os bichos e as coisas falam. Portanto, o homem está em pé de igualdade com tudo, principalmente com a natureza. E Raimundo se não volta feliz, volta com a possibilidade de tomar consciência do que pode acontecer em volta de si. E Raimundo, se não aprende sobre sua natureza individual, aprende sobre sua natureza humana. Ele já dava sinais de querer enfrentar os outros meninos (quando, por exemplo, passou a assinar Dr. Raimundo Pelado) ou suas atitudes anteriores seriam, antes, uma aceitação para evitar o confronto? Ele volta com uma capacidade ampliada do seu potencial de protesto, revolta e enfrentamento, certamente! Ele primeiro se conformava e aceitava. Agora, certamente além de assumir-se diferente, poderia rebelar-se de frente, sem precisar se esconder. A vivência adquirida num espaço e tempo mágicos – em Tatipirun –
certamente o qualificarão a enfrentar o presente do real.
Outras características ainda serviriam para caracterizar o herói, em seu trajeto de volta: a autonomia e autoconfiança. Raimundo certamente já vislumbra esses dotes, do contrário, não desejaria voltar para Cambacará. Mas o processo dele, por ser um processo social, é de fora para dentro. É do contato com o grupo, com os meninos de Tatipirum, que ele toma forma, que a individualidade emerge.
Por uma unidade mística entre herói e indivíduo A fisiologia mística, baseada no setenário, propõe sete etapas na via mística, por sete vales: o primeiro é o da busca; o segundo, o do amor; o terceiro, o do conhecimento; o quarto, o da independência; o quinto, o da unidade; o sexto, o do maravilhamento; e o sétimo, o do desenlace e o da morte mística. Esse trajeto também pode ser associado ao trajeto de Raimundo.
Grosso modo, ele sai em busca do seu grupo, é aceito, portanto encontra o segundo estágio místico, que é o do amor, aqui traduzido por fraternidade. Na seqüência, conhece o grupo e a si mesmo no grupo. Depois reconhece sua independência ao reconhecer sua individualidade. Desta forma encontra a unidade com o outro nele mesmo. Volta encantado, maravilhado com tudo o que aprendeu de si, dos outros, do mundo. Ao pisar seu lugar de origem, seu ciclo se completa e, se quisermos, ainda é possível ver uma “morte” nesse ato: ele abdica de ficar em Tatipirun, quer voltar para completar sua lição de geografia, que nada mais é do que mapear a dimensão do povo, do coletivo, do grupo, para dimensionar-se a si mesmo.
Não ficar é morrer e renascer!
E, para deixar aqui os traços do belo trabalho do psicanalista Bruno Bettelheim, poderse- ia louvar a conquista da integração obtida por Raimundo: “a luta simbólica pela integração caótica” ocorre, enfim (BETTELHEIM, 1980, p. 95). As duas naturezas opostas de Raimundo, enfim se integram, a social e a individual.
“Um herói, qualquer herói, distingue-se do comum das gentes por certas virtudes especiais” (FURTADO, 2006, p. 13). A de Raimundo talvez seja exatamente a de usar a sua exacerbada Fantasia para poder enfrentar o Real. Mas isso ele ainda terá que provar, pois estamos ainda no princípio do rito de iniciação social de Raimundo. Essa historia representa exatamente isso! Esse herói pertencente à época moderna, em que a humanidade deve ser novamente (e eternamente) aprendida!
* Celso Sisto é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá (RJ), ator, arte-educador,
especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em
Literatura Brasileira, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutorando em Teoria da Literatura,
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e crítico literário de várias colunas
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