sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Personalidade - Ornela Mbenga Sebo - A REFUGIADA QUE REENCONTROU A LIBERDADE NO RIO

RIO - O sorriso bem branco, que contrasta com a pele negra, chega fácil e pontua quase todas as frases. A fala mansa, num português fluente, mas com um leve sotaque que já confundiram com o de uma baiana, às vezes é interrompida por uma sonora gargalhada. A africana Ornela Mbenga Sebo, de 23 anos, é assim: leve, bem-humorada, colorida como as roupas que usava em seu país, a República Democrática do Congo. Quando ela começa a contar sua história, os olhos permanecem secos, as mãos não se crispam e, mesmo nas frases em que a brutalidade impera, o tal sorriso não se apaga de todo. É o interlocutor que costuma se mexer, incomodado, espantado, perguntando-se como uma menina que fugiu da guerra, tendo presenciado toda a brutalidade possível e também a inimaginável, consegue seguir adiante.

Ornela também não tem explicação. Desconfia que a crença em Deus a ajuda a esquecer o passado, que se tornou sombrio em janeiro de 2011 e começou a ganhar novos contornos em meados do mesmo ano, quando ela desembarcou no Porto de Santos após passar 15 dias clandestina, escondida no compartimento de lixo de um navio que saiu da Tanzânia. Hoje trabalhando como recepcionista no Centro Tecnológico da UFRJ, Ornela, que nunca ouviu falar na homônima atriz italiana com olhos de gato, já perdeu a conta de quantas vezes ouviu que sua vida daria um filme. Filme, não. Mas Ornela será a heroína de um livro que a jornalista Ana Paula Laport vai escrever. As entrevistas começam semana que vem.
— A ideia é fazer um romance baseado na história de Ornela. O que me impressionou foi a força que ela tem depois de ter passado por tudo o que passou — diz Ana Paula.
A história é impressionante mesmo. Tem lances de fuga, desespero, privação, um bom moço encontrado no meio do caminho, e um final, se não feliz, pelo menos de superação. O início da biografia de Ornela foge dos estereótipos que a maioria das pessoas tem da África. Ela morava numa casa de quatro quartos em Walikale, cidade na parte oeste da República Democrática do Congo. O pai dava aulas numa universidade local e pagava US$ 500 mensais para que ela cursasse Jornalismo. A mãe era dona de casa e as irmãs mais novas, estudantes. Nada faltava à família, que costumava viajar para o exterior e já conhecia África do Sul e Angola. No dia 18 de janeiro de 2011, tudo mudou. Walikale foi atacada por rebeldes do M23, uma milícia que o governo acusa de ser inflamada pela vizinha Ruanda, que se aproveitaria ilegalmente da região, rica em minérios.
Ornela estava no banco onde trabalhava quando os tiros começaram. Acostumados a ataques, os 40 funcionários se esconderam num abrigo no subsolo. Cinco horas depois, saíram para testemunhar o fim da Walikale que conheciam.
— A cidade pegava fogo e havia vários mortos pelas ruas. Corri para a minha casa. Quando cheguei, ela estava em chamas. Larguei a bolsa no chão, tirei os sapatos e comecei a perguntar se alguém tinha visto meus pais, minhas irmãs. Mas todo mundo lá também estava procurando um parente, ninguém sabia de nada. Os rebeldes estavam se aproximando de novo, e fugi com um grupo de vizinhos. Nossa ideia era ir para a capital.
Para chegar a Kinshasa, são quatro dias viajando de ônibus. A pé, Ornela e seu grupo permaneceram mais de um mês na mata. Comida? Nada das folhas de aipim com peixe, degustadas com fufu, o milho misturado com mandioca que é um dos pratos típicos do país. Ornela comia frutas, quando as achava. Banho? Foram três em quase 40 dias, todos em rios encontrados por acaso no meio do caminho. Talvez por isso hoje Ornela sempre cole o mesmo adjetivo quando fala a palavra sabonete: gosta de “sabonete cheiroso”.
No trajeto, Ornela viu o indizível. Mas o relata com todas as letras.
— Tinha muitos mortos, gente decapitada, pendurada em árvores. Outras tendo o corpo comido por cachorros. O que mais me impressionou foi uma mãe, que viajava com a filha de 3 anos, e que morreu sangrando, após perder parte da perna numa explosão. A menininha perguntava pela mãe o tempo todo, e eu me indagava se a minha mãe estava viva, se ela estava em algum lugar perguntando por mim também — diz Ornela, no único momento em que baixa a guarda.
Coberta por cadáver para poder viver
Ornela conta que, certo dia, o grupo foi descoberto por rebeldes. Tiros ecoaram, e o instinto de sobrevivência fez com que ela se jogasse no chão e puxasse o corpo de um homem para cima do dela. Sujou-se com o sangue do morto, prendeu a respiração e rezou, imóvel. Teve o pé descalço cutucado pela bota de um soldado, que deu o veredito: “estão mortos”.
Morta por dentro, Ornela já estava, mas conseguiu, depois do susto, seguir caminho. Só que outra armadilha esperava os sobreviventes, dias depois. Cerca de 60 pessoas foram capturadas pelos rebeldes, armados até os dentes.
— Puseram a gente num helicóptero sem porta. Imagina! Andei num helicóptero sem porta — ri Ornela, para depois emendar outra história de arrepiar.
Levada para um acampamento na Tanzânia, virou escrava. Era forçada a limpar o acampamento e a transportar 30 baldes de água por dia. Viu uma mulher ser morta porque disse que não faria sexo com os rebeldes. O estupro, como se sabe, é uma arma de guerra na África. Mas sobre esse tipo de violência, Ornela — evangélica criada para casar virgem e só namorar depois dos 20 anos, com a aprovação dos pais — se cala.
Durante quase um mês e meio, ela ficou no acampamento, sendo espancada e comendo os restos que os rebeldes deixavam no chão, após as refeições. No caminho até o local onde buscava água, encontrou um rapaz, que ficou curioso com a jovem suja e macérrima — dos quase 70 quilos que tinha, ela só estava com 50. Ele tentou se aproximar diversas vezes, mas ela, com medo, fugia. A insistência foi tanta que um dia a jovem cedeu. Contou o que se passava e recebeu uma promessa de ajuda. Dias depois, fugia do acampamento, de madrugada. Após uma breve caminhada, embarcava num navio:
— Ele me deu um saco de amendoim e pediu para o amigo dele, que trabalhava no navio, me dar água e pão. Tive febre, frio, mas cheguei.
Ornela desembarcou em Santos, desorientada, desidratada, faminta e sem saber onde estava. Entrou num bar pedindo esmolas e reconheceu a sonoridade da língua. Além de falar francês, inglês e o dialeto local, ela arranhava o português.
— Antes da guerra, passamos um ano em Angola, meu pai foi dar aula numa universidade de lá. Das três filhas, eu fui a única que ele obrigou a estudar português. Eu não queria, não gostava, mas ia às aulas três vezes por semana. Foi o que me ajudou. Ninguém acredita, né? — diz, ela mesma abismada com a coincidência.
Ornela contou seus percalços no bar de Santos e perguntou se alguém conhecia um africano. A sorte tinha mudado. Sim, um homem era vizinho de um angolano e a levou até a casa dele.
— Ele era um estudante e, quando me viu, chorou. Ele me deu comida e abrigo. Disse que conhecia no Rio umas pessoas do Congo e que iria me ajudar. Ele ligou para os amigos, que mandaram passagem de ônibus. Hoje, moro com eles, são minha família — diz Ornela, que perdeu o contato com seu salvador, que voltou para a África.
Os conterrâneos no Rio — estudantes da PUC, UFRJ e UFF — ajudaram Ornela a obter documentos provisórios e a sustentaram.
— Ela chegou magrinha, magrinha mesmo. Ela chorava muito. Não sabia fazer nada. Cozinhávamos para ela, éramos carinhosos. Eu a levava para passear, para ela se distrair — conta Freddy Ndele.
Estudante de Engenharia de Computação, foi ele quem fez o currículo que Ornela apresentou numa agência de empregos.
— Ela tinha as qualidades que procurávamos, falava inglês e francês. Quando soube da sua história, quis ajudar. Ao chegar ela era muito tímida, introspectiva. Hoje, é outra pessoa. É gratificante fazer parte deste capítulo dela, de reconstrução da vida — diz Maurício Guedes, diretor-executivo do Parque Tecnológico da UFRJ.
Adaptada ao Brasil, Ornela recusa o papel de vítima, prefere o de sobrevivente. Vaidosa, de argolas douradas, namora um rapaz do Congo e diz que não vive sem ir ao salão de beleza. Duas vezes por semana, faz escova nos cabelos que estão crescendo — estavam tão sujos e emaranhados quando ela chegou ao Brasil que não teve outro jeito senão cortá-los bem rente. Já elegeu suas marcas preferidas, uma delas é “aquela que tem dois peixinhos” (Hering). Do salário de pouco mais de R$ 1.200, cerca de R$ 450 vão para pagar o aluguel e despesas do apartamento de três quartos no Irajá que divide com os amigos. Com o que sobra, não nega seu lado mulherzinha.
— Meu namorado me deu uma bronca. Gastei R$ 400 em calças da Levi’s. Estavam na promoção. Tive que comprar quatro, né? — gargalha.
Os tempos de gastos pessoais estão ficando para trás. Hoje, ela tenta economizar. Para quê? Em mais um lance que ficaria bom nas telas de um cinema, Ornela recebeu, há cerca de dez meses, um telefonema no seu celular. Quando atendeu, ela se jogou no chão do prédio da UFRJ:
— Eu não sabia o que fazer. Sentei no chão, levantei, me joguei de novo. Chorava tanto que juntou gente para ver. O prédio todo desceu para a recepção para ver o que estava acontecendo.
Solidariedade e choque cultural
Do outro lado da linha estava Blandine, a mãe que Ornela julgava morta. Ela conseguiu localizar um irmão, que já havia achado Ornela pelo Facebook e falado por telefone com a sobrinha. Duas horas de conversa atualizaram as notícias da família separada pelo conflito: os pais e as irmãs da jovem conseguiram fugir de ônibus para o Senegal, levando as economias que tinham em casa. Hoje, moram em Chicago. A mãe é camareira de um hotel, o pai está desempregado.
— Já consegui juntar R$ 2.400. Mas preciso de mais para comprar a passagem, tirar o visto. Meu sonho é reencontrar minha mãe, que é minha melhor amiga — sonha Ornela.
O namorado, Serge Tabanga, entende a saudade e a possível separação:
— Ela hoje está alegre, mas chora no dia do aniversário, no fim do ano. De vez em quando, fica meio esquisita, no meio da conversa desliga, fica viajando. Já superou muita coisa.
Sensibilizados, os funcionários do Centro Tecnológico da UFRJ começam esta semana campanha para arrecadar fundos para ajudar Ornela a ir para Chicago em 2014. A ideia é fazer uma vaquinha virtual no site Catarse, no perfil Ornela Mundi.
Das lembranças do Rio, a africana diz que jamais vai esquecer a solidariedade que encontrou. Os dois anos na cidade ainda não a fizeram carioca — o choque cultural falou mais alto.
— Fiquei espantada com a falta de roupas das mulheres. E aqui namoram com 12 anos — horroriza-se, para depois contemporizar. — Mas aqui vocês têm o mais importante, a liberdade. Não viu os protestos? No meu país, se você fizer manifestações por cem anos, vai continuar sem mudar nada.


Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/refugiada-africana-reencontra-liberdade-no-rio-9775621#ixzz2eA9xRIJp

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