sábado, 21 de setembro de 2013

Te Contei, não ? - Abaixo o silêncio

Cartas inéditas em que Alceu Amoroso Lima critica o governo militar e denuncia a falta de coragem e lucidez da imprensa, da academia, da sociedade e até da Igreja durante o AI-5 são reunidas em livro

Ana Weiss
Eram passadas duas semanas da sexta-feira 13 em que o País mergulhou na mais escura de suas passagens políticas. O Ano-Novo em 1969 era de um Brasil também novo, mas pior, e ainda não inteiramente consciente do aprisionamento político e social instaurado pelo Ato Institucional nº 5, decreto que dava aos generais-presidentes a partir daquele dezembro um poder só conhecido, até então, pelo absolutismo. Mas era Ano-Novo e o professor Alceu Amoroso Lima começava o feriado de Confraternização Universal, como começava quase todos os dias. Depois de ler os jornais, sentava-se diante de uma folha em branco e escrevia à mão cartas para a filha Lia, que havia 18 anos vivia enclausurada no Mosteiro da Paz em São Paulo, onde recebia a correspondência em seu nome de abadessa, Maria Teresa. 
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As cartas, em letra quase indecifrável, foram guardadas por ela até o fim da vida, em 2011. Esse lote de escritos críticos, políticos, por vezes raivosos e decepcionados de seu pai ainda pôde ser revisto por ela, que, praticamente cega, ajudou o irmão, Alceu Amoroso Lima Filho, a decifrar a difícil caligrafia do pai nas missivas que cobrem quase diariamente os 14 meses que sucederam o AI-5. Esse material, testemunho íntimo e livre de censura de um dos maiores intelectuais brasileiros ligados à Igreja Católica, chega às livrarias na obra “Diário de um Ano de Trevas”, com a organização assinada por Alceu Amoroso Lima Filho e por Frei Betto e edição do Instituto Moreira Salles.
A censura é, a propósito, um dos temas mais recorrentes na correspondência de Amoroso Lima. Colaborador de jornais sob o pseudônimo de Tristão de Athayde, ele comunicava à filha não só as arbitrariedades militares contra os órgãos de imprensa, mas também atitudes menos lembradas pela história do jornalismo, como a autocensura e o colaboracionismo. Em carta de 28 de março, ao comentar a prisão do metalúrgico Tibor Sulik, fundador da Juventude Operária Católica, ele escreveu que o “Jornal do Brasil”, no qual publicava com frequência, não dava esse tipo de notícia. “O J do B não as publica por ser mais covarde e cúmplice dos milicos (que o “Correio da Manhã”), registrou. Em janeiro, quando do anúncio do abrandamento da intervenção nos diários: “...pobres majores encarregados da ‘censura’ nos jornais, que estavam em palpos de aranha, pois já não sabiam o que censurar, pois não havia inimigo algum à vista!”
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Frei Betto, organizador do volume ao lado de Alceu Amoroso Lima Filho,
passou um ano trabalhando no texto. Acima, capa do livro,
lançado pelo Instituto Moreira Salles
Para transformar o lote de missivas em livro foi importante o trabalho de garimpagem e identificação de pessoas e instituições, muitas vezes referidas em siglas no original.
O levantamento rendeu material para a redação de quase mil notas de rodapé, que, sozinhas, segurariam um volume sobre o período. “Foi uma tarefa imensa”, diz Frei Betto, que, além da profunda conexão com as arbitrariedades da ditadura e da resistência católica contra ela – da qual Alceu Amoroso Lima foi uma das vozes mais potentes –, foi amigo e aluno do pai de Maria Teresa e, por isso, considerou a missão difícil e emocionante. “O doutor Alceu foi meu professor na faculdade de jornalismo, nos anos 1960. Quando deixei a prisão, em 1973, ele prefaciou meu livro (‘Cartas da Prisão’, escrito no mesmo ano), algo muito importante para mim”, disse à ISTOÉ.
As prisões sob o decreto ocupam longos parágrafos da correspondência. A indignação, entretanto, não se dirige somente aos algozes, tratados com ironia (“o Dops, a única autoridade efetiva que nos governa”), mas também aos cúmplices, muitas vezes assim considerados por omissão. Como quando fala de Marília Masset, uma conhecida da família que se dizia envergonhada pelo filho preso, acusado de ter abrigado reuniões com Marighella em sua casa.
“O Américo (Lacombe, juiz federal e historiador), seu marido, deve ensinar a ela que todos os homens públicos do Brasil foram revolucionários e conspiradores ou, pelo menos, herdeiros e beneficiários deles.”
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“Precisei muito da família Amoroso Lima para localizar esses nomes”, conta Frei Betto, que também se valeu do Google para a redação das notas e reescritura do texto. “Posso dizer que fiz um trabalho de restauração. Isso porque foi necessário mexer na redação, atualizar a ortografia, ajeitar a pontuação – que, afinal, servia a uma comunicação coloquial entre pai e filha. E fazer tudo isso preservando a integridade do texto e a intenção do autor”, diz o organizador.
Além das muitas histórias de bastidores – como a aproximação dos militares com a Academia Brasileira de Letras e as politicagens nas disputas pelas cadeiras imortalizadoras, das quais o autor ocupara a de número 40 –, um dos pontos mais interessantes do livro é a mudança de tom com o passar dos meses. Em janeiro de 1969, ele descreve os militares por trás do AI-5 como “patetas que acreditam, talvez com sinceridade, que estão realmente conduzindo os acontecimentos, quando estão sendo apenas conduzidos por eles”. Pouco mais de um ano depois, escreve para a filha sobre o então governante Emílio Garrastazu Médici, chamando-o de lobo em pele de cordeiro a tirar a máscara. “O Médici chegou de mansinho, com luva de pelica (...) agora é que se está revelando um caudilho gaúcho da pior espécie.” “Sem dúvida que a crítica vai se tornando mais convicta, e profunda”, concorda o organizador e autor das notas. “Ainda se as mulheres pudessem nos governar, seriam certamente melhores que os uniformizados”, diz a última frase da última carta escolhida para o livro.
 
Leia um trecho do livro:


Rio, 1º de janeiro de 1969
Para Mamãe1 – e naturalmente para os seus comandados de
Paissandu 2002 – o novo ano entrou com a luta habitual contra
a “cozinha”... A biruta autêntica, que estava aqui substituindo a
“franga”, e já queria dar o fora no dia de nossa volta, não apareceu
esta manhã e deixou Mamãe e os seus comandados na
mão, como amostra do que é o problema doméstico que, nos
Estados Unidos, já foi superado pela supressão da classe, mas
que, aqui, vai se arrastando, como tudo mais, aos trancos e barrancos,
como essa enxurrada de decretos-leis com que os milicos
e seus asseclas iniciam o novo ano, como sempre acontece
com os novos Estados Novos, inundando o país de verborragia
(não li nem ouvi a falastração do milico-mor ontem à ½ noite,
a não ser o título: “O ai-5 vem consolidar a Revolução”). São
todos uns patetas que acreditam, talvez com sinceridade, que
estão realmente conduzindo os acontecimentos, quando estão
sendo apenas conduzidos por eles. Nos jogam esses confetes
de decretos-leis tão copiosos em palavras que, dificilmente, se
entendem no seu jargão econômico-financeiro que, no fundo,
querem dizer apenas que tudo continua na mesma, embora com
outras e numerosas palavras. Enquanto isso, o país caminha,
porque não pode deixar de caminhar, como uma canoa levada
rio abaixo pela corrente, com os canoeiros remando desesperadamente
contra a correnteza, com a ilusão, ou pensando que
comunicam aos viajantes das canoas, a ilusão de que eles é que
estão manobrando as canoas. Pobre gente! Pobres de nós!
Em face disso me penaliza ver Mamãe desgrenhada, a se estafar
indo lá embaixo, onde ainda dorme a biruta, tentar em vão
convencê-la a assar os frangos que ficaram à espera do forno...
E tudo porque Mamãe não queria deixar passar o 1 de janeiro
de 69 sem reunir, para o almoço, ao menos os três que estão
aqui. Mamãe ainda pensa em termos de “casa grande” ou de
“Dona Mariana”, com o séquito fiel das “velhinhas” que vinham
de outros tempos, Angé, Babá Emília ou, então, os Manés que
representavam ainda, ou já, uma transição para as “frangas” e
“birutas” de hoje, que representam o último elo de uma cadeia
em vias de extinção completa. Por mim não me incomodo, e com
o meu temperamento de alfinete, que se acomoda facilmente
às “situações novas” (consolo-me com a frase de um psicóloalceu
go francês que aqui deu conferências há 30 anos: “L’intelligence
c’est la capacité de s’adapter aux circonstances nouvelles ou
imprevisibles...”), mas Mamãe sofre com isso, pois é da estirpe
dos “antes quebrar que torcer”, e não se consola de não poder
reunir os pintos que restam próximos sob o seu agasalho. É uma
beleza isso, mas custa suores, sangues e lágrimas, que nem ao
menos ela manifesta e, antes, concentra, prejudicando a sua saúde
que, incontestavelmente, foi ótima (nunca vi Mamãe de cama,
senão quando vocês nasciam), mas que vai sendo minada com
esses crescentes aborrecimentos com a cozinha, e mesmo com
a situação doméstica em geral, desde que a Isaura nos deixou,
depois de nove anos de presença com uma falta apenas (sic)!
Desde então tudo desandou e Mamãe não teve mais sossego. Só
imagino agora o dia em que Arminda faltar, caso ela vá antes de
nós! Ainda ontem ou anteontem ela disse, lá de Petrópolis, que
“não estava passando bem da pressão”.
Mas tudo isso é café pequeno ao lado do que está ocorrendo
com o Brasil em geral e, mais além, com o mundo, continuamente
à beira de catástrofes, especialmente nesse barril de
pólvora que é o Oriente Médio e a luta imemorial entre árabes
e judeus. Fica-se realmente na dúvida se o sionismo (isto é, a
reconstituição de um Estado político de Israel, patrocinado pelos
ingleses depois da guerra de 14-18) foi uma medida sábia
ou mesmo justa, ou se foi uma mancada para a paz universal.
Mas como não podemos resolver nada por nós, fiquemos apenas
nas conjecturas e procurando os sinais dos tempos profundos
ou através das agitações da superfície. Ainda agora leio no J do
B (a vantagem dos jornais com política local - e a vantagem lá é
que a política internacional aparece melhor) de um colaborador
do New York Times mostrando, com exemplos históricos, que
a força da inércia é tão grande no mundo social como no mundo
físico. Vou ver se te mando, porque tem uma referência ao
caso Paulo vi, repetindo Pio ix, como estamos vendo, claramente,
aliás. João xxiii só será continuado em 2000 e tantos por algum
futuro João ou mesmo Paulo vii ou viii, mas, no momento, a volta
ao silabismo é que domina e poderá agravar-se. Como também
poderá atenuar-se. Não há bem que sempre dure nem mal que
nunca acabe! Essa sabedoria popular, de tipo lafontaineano,
também não perde nunca sua atualidade. E (não sei por que me
ocorreu isto) ontem, conversando no José Olympio com várias
pessoas, inclusive a Dinah Silveira de Queiroz, tratou-se do
problema “Igreja em crise”, “recuo de Paulo vi” etc. A nora do
José Olympio (que renovou pedido para que eu me encontrasse
com uma equipe de casais, de que já o Coley, o marido, me
falara) estava bastante irritada ou perplexa com a tal frase de
Paulo vi que tanto escândalo causou pela exploração que O Globo
e outros jornais ultras, que viraram com o espírito de porco
corçoniano, tão típico dessa espécie de imprensa da inércia, e
eu procurei responder com aquela interpretação de que o papa
visava mais aludir às lutas dos católicos entre si que “podem
destruir a Igreja”, não no sentido literal da palavra destruir. E falei
que era preciso ler os documentos colocando-os no contexto
literal e circunstancial, e menos no “sentido de humor” (estou
no momento com essa receita: o mal do mundo e do Brasil, em
particular, é a falta de senso de humor, e o remédio é restaurar
esse “espírito esportivo” (que é outra modalidade do sense of
humour) tanto no mundo e no Brasil, como em casa, como acabo
de dizer a Mamãe, quando me trouxe uma limonada deliciosamente
fresca neste dia tórrido de estio, sem cigarras no momento,
pois as cigarras também fazem sua sesta na hora do sol
e preferem cantar de madrugada ou no crepúsculo, tão bonito,
tão verão, tão lírico, que a gente (Mamãe não, pois as cigarras a
enervam) volta a ser menino com elas e só penso nas arrumações
de Senador Vergueiro deliciosas quando os exames terminados
eu prelibava os dois meses na Renânia, lendo Shakespeare
(...) ou o folhetim do Jornal do Commercio na varandinha
da casa da Renânia, à beira do rio... Eta chô!
Vamos almoçar figos com sorvete, em vez de frangos e feijão e
salada, mas é bem melhor para um dia tão quente.
(...)
Não terminei o que queria contar, no encontro na José Olympio,
que era uma frase da Dinah. Fiquei conversando com um
irmão do José Olympio, que estava meio bebido, fazendo umas
declarações de admiração incondicional – quando, não sei por
que, a Dinah me disse, dirigindo-se aos outros: “Este (eu) é um
misto de Buda e Cristo, tendo sensibilidade de Buda e não sei o
quê (não me lembro do que disse) de Cristo”...
Era só, mas, como você gosta de ouvir essas “précieuses
ridicules” nas suas cartas, lá vai. Da última vez que estive lá
no José Olympio, a “précieuse” era a filha do Guimarães Rosa.
Ah, o Daniel, o irmão do jo, que cuida das edições, me mostrou
o calendário de cultura de 1969, do Conselho Nacional de
Cultura, onde lembram, a 17 de junho, os 50 anos do Tristão.
Então, conversa vai conversa vem, o Daniel me disse por que não
organizava eu uma espécie de antologia de teoria crítica para ser
publicada por eles, creio que independente do outro volume (ficou
de me mandar amanhã o índice de matérias do Vidas bem
vividas). Bem, o José, que é o chefe, disse que estudássemos o assunto.
Eu fiquei pensando: será que você, nas suas pesquisas, seria
capaz de mais este esforço pelas bodas do Tristão? Eu mesmo tenho
minhas dúvidas que ainda haja coisas a pesquisar para uma “antologia
crítica”, depois do que já foi publicado na Estética literária
e o crítico, que está esgotado sem dúvida e, talvez fosse melhor,
inclusive, reeditar pura e simplesmente. Eu pediria autorização à
Agir, que já demonstrou não ter interesse algum em reeditar livros
meus de certo vulto, em vez de fazer uma antologia. Ou, então, tirar
mesmo do Estética o que for de “antologia”, ajuntando outros textos
tirados de artigos não publicados e livros!
Não sei se estou me explicando com clareza (já não digo a clareza
escrita, pois esta...), mas penso que você me responderia se
a conversa fosse verbal: “Já vi tudo”.
Pense e me diga o que pensa. Até eu poderia auxiliar, relendo
o Estética e marcando trechos. E você se encarregaria dos artigos.
Pena que não tenhamos, neste janeiro, uns dias longos de
“tête-à-tête” parlatorial para levar avante a tarefa. Mas, mesmo
à distância, você me indicaria os artigos possíveis para um livro
de umas 150 a 200 páginas, e eu veria o que é possível, caso também
o José Olympio confirme o que pode ter sido apenas uma
conversa de boca pra fora de fim de ano!
(...)
Voltando ao nosso almoço de 31 de dezembro (Hamilton, José
Carlos, Rubens Porto, Sobral e eu) – o relato que o Sobral
fez dos seus três dias de prisão e, principalmente, do modo como
foi arrastado por três homenzarrões da polícia, porque só assim
iria, era de se gravar. O Sobral se comportou como um leão e um
modelo de bravura pessoal etc. e tal. E o episódio pode mesmo
servir de modelo a todos nós, os mansos (na missa de ½ noite
a que fui com Mamãe na Santíssima Trindade, o Evangelho que
leram foi o das bem-aventuranças! Que rio de sabedoria eterna!
Que fonte de água fresca!).
Por falar na homilia sobre a paz. Tudo perfeito. Apenas... na
estratosfera. Como se os preceitos vigorassem para uma faixa
de gravidade lunar ou lunática, e nós estivéssemos aqui. Sem
querer esse tipo de homilia nos habitua, e os ouvintes então,
99% de catolicões médios, veem a vida política e a religiosa em
planos totalmente opostos. Mas só isso daria para mais umas
dez páginas, e já estou – não digo cansado – mas com os dedos
duros, salvo seja...
Mas o Sobral passou o almoço se deliciando com as suas
“proezas do menino Sobral”... E teve mesmo, a certa altura, esta
fraqueza: “Faltava isso para minha biografia”... Como os mais
valentes são fracos... Em nível muito inferior lembra uma frase
que o velho livreiro Francisco Alves contou a tio Afrânio, que
teria ouvido do Gilberto Amado, quando este lhe perguntou, de
volta de uma viagem à Europa, depois do julgamento de seu crime,
se tinha vendido muitos dos seus livros. E à resposta negativa
do velho livreiro, o Gilberto teria respondido: “Nem para isso
serviu o meu crime.” A frase talvez seja apócrifa, pois tio Afrânio
tinha raiva do Gilberto, mas... quem sabe.
Bem, por hoje é tudo. Que Deus te abençoe durante todo este
1969, e nos dê força para nunca falharmos à Sua Graça! Aleluia!
 
 
Revista Isto É

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