Poucas aferições decifram melhor o que vai pela alma brasileira — quinhão
especialmente complicado dos humanos — do que a pesquisa formulada pela
antrópologa Lilia Schwarcz, no seu livro “O espetáculo das raças” (Companhia das
Letras, 1993). Um par de perguntas preciosas, que gerou respostas definitivas
para se entender como a banda toca nesta terra tolerante e ensolarada.
Você é preconceituoso? 99% das respostas foram “não”.
Você conhece alguém preconceituoso? 98% dos entrevistados cravaram “sim”.
Assim somos os brasileiros — uns mentirosos. A hipocrisia grassa nas relações
humanas, especialmente no confronto permanente das classes, no reino supremo da
desigualdade econômica. Nos convescotes dos bacanas (e, a bem da verdade, entre
os pobres também), rigorosamente ninguém se assume racista, nem admite que não
gosta de negros, tampouco reconhece que detesta judeus. Em público, só tem gente
plural.
Mas na vida real, o negócio é muito outro, como atesta a pesquisa da
antropóloga. Esta semana, no entanto, um punhado de brasileiros lamentáveis
permitiu-se desfilar o preconceito em público. Desocupados o suficiente para
tratar das coisas do clube durante um dia normal de trabalho, cinco torcedores
do Corinthians foram à porta do CT do clube protestar contra Emerson Sheik, o
jogador que se deixou fotografar domingo dando uma bicota num amigo.
Atacante de excelente qualidade, autor de gols e lances decisivos por quase
todos os clubes por onde passou (marcou vários, por exemplo, na Libertadores do
ano passado, a primeira conquistada pelo alvinegro paulistano), o craque tem um
robusto prontuário de bandalheiras em sua carreira. Entre outras, falseou o
próprio nome de batismo (Márcio) para viabilizar uma contratação no início da
carreira, e envolveu-se em transações irregulares de automóveis. Mas dentro de
campo, Emerson bate um bolão. Gaiato, resolveu fazer a foto, que parece uma
brincadeira — ou talvez a promoção do companheiro de selinho, dono de
restaurante. O mundo caiu na cabeça dele.
“Vai (sic) beijar a P.Q.P.! Aqui é clube de homem”, berrava a faixa levada
pelos cinco à-toa, que ainda cantaram “Não é mole não, tem de respeitar a camisa
do Timão”. A cena patética dos torcedores teve a silenciosa aprovação de
milhares de brasileiros, simpatizantes de clubes os mais variados. Pouco
importam os (ótimos) desempenho e currículo do atacante. Na lógica burra — o
menor dos defeitos, diga-se — da discriminação, precisa ser varrido do mapa
mosqueteiro.
Como prova de que muito mais gente pensa como os quatro ociosos da faixa, os
cartolas do clube guardaram silêncio cúmplice e deixaram Emerson na chuva da
hostilidade. Poderiam ter apostado na tolerância, ao menos pedindo moderação à
torcida, e, no bojo, se posicionando do lado certo, na luta diária contra o
preconceito. Seria pedir demais.
Como se vê, é longo e penoso o caminho que os brasileiros ainda temos de
percorrer até rebaixar o preconceito de regra para exceção. Todos precisamos, ao
fim de cada dia, ter a atitude pregada pelo sociólogo Sérgio Abranches: examinar
cada ato em busca de poder dizer “eu não discriminei hoje”. E fazer de novo, e
de novo, e de novo...
Por enquanto, estamos mentirosamente na fase da negação.
Aydano André Motta - O Globo
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