sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Crônica do Dia - Um beijo no país dos mentirosos

Poucas aferições decifram melhor o que vai pela alma brasileira — quinhão especialmente complicado dos humanos — do que a pesquisa formulada pela antrópologa Lilia Schwarcz, no seu livro “O espetáculo das raças” (Companhia das Letras, 1993). Um par de perguntas preciosas, que gerou respostas definitivas para se entender como a banda toca nesta terra tolerante e ensolarada.

Você é preconceituoso? 99% das respostas foram “não”.
Você conhece alguém preconceituoso? 98% dos entrevistados cravaram “sim”.
Assim somos os brasileiros — uns mentirosos. A hipocrisia grassa nas relações humanas, especialmente no confronto permanente das classes, no reino supremo da desigualdade econômica. Nos convescotes dos bacanas (e, a bem da verdade, entre os pobres também), rigorosamente ninguém se assume racista, nem admite que não gosta de negros, tampouco reconhece que detesta judeus. Em público, só tem gente plural.
Mas na vida real, o negócio é muito outro, como atesta a pesquisa da antropóloga. Esta semana, no entanto, um punhado de brasileiros lamentáveis permitiu-se desfilar o preconceito em público. Desocupados o suficiente para tratar das coisas do clube durante um dia normal de trabalho, cinco torcedores do Corinthians foram à porta do CT do clube protestar contra Emerson Sheik, o jogador que se deixou fotografar domingo dando uma bicota num amigo.
Atacante de excelente qualidade, autor de gols e lances decisivos por quase todos os clubes por onde passou (marcou vários, por exemplo, na Libertadores do ano passado, a primeira conquistada pelo alvinegro paulistano), o craque tem um robusto prontuário de bandalheiras em sua carreira. Entre outras, falseou o próprio nome de batismo (Márcio) para viabilizar uma contratação no início da carreira, e envolveu-se em transações irregulares de automóveis. Mas dentro de campo, Emerson bate um bolão. Gaiato, resolveu fazer a foto, que parece uma brincadeira — ou talvez a promoção do companheiro de selinho, dono de restaurante. O mundo caiu na cabeça dele.
“Vai (sic) beijar a P.Q.P.! Aqui é clube de homem”, berrava a faixa levada pelos cinco à-toa, que ainda cantaram “Não é mole não, tem de respeitar a camisa do Timão”. A cena patética dos torcedores teve a silenciosa aprovação de milhares de brasileiros, simpatizantes de clubes os mais variados. Pouco importam os (ótimos) desempenho e currículo do atacante. Na lógica burra — o menor dos defeitos, diga-se — da discriminação, precisa ser varrido do mapa mosqueteiro.
Como prova de que muito mais gente pensa como os quatro ociosos da faixa, os cartolas do clube guardaram silêncio cúmplice e deixaram Emerson na chuva da hostilidade. Poderiam ter apostado na tolerância, ao menos pedindo moderação à torcida, e, no bojo, se posicionando do lado certo, na luta diária contra o preconceito. Seria pedir demais.
Como se vê, é longo e penoso o caminho que os brasileiros ainda temos de percorrer até rebaixar o preconceito de regra para exceção. Todos precisamos, ao fim de cada dia, ter a atitude pregada pelo sociólogo Sérgio Abranches: examinar cada ato em busca de poder dizer “eu não discriminei hoje”. E fazer de novo, e de novo, e de novo...
Por enquanto, estamos mentirosamente na fase da negação.

Aydano André Motta - O Globo

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