quinta-feira, 2 de abril de 2015

Artigo de Opinião - Licença para matar - de volta à Candelária 22 anos depois



“Redução da maioridade penal sinalizará para a ‘corja de assassinos covardes’ que a temporada de caça foi reaberta. Não demorará muito para termos cinquenta ou cem Candelárias”, diz filósofo

Bajonas Teixeira de Brito Junior *


Os mesmos políticos que recentemente aprovaram a reedição da farra das passagens aéreas aprovam agora a redução da maioridade penal. O fazem em ritmo apressado, acelerando como quem avança o sinal vermelho. E, na verdade, avançam mesmo um sinal vermelho, o que foi instituído pela Chacina da Candelária.  As ruas voltarão a ser tingidas de sangue muito em breve se ao fim, com a facilidade de um motorista bêbado, os parlamentares conseguirem  atropelar o artigo 228 da Constituição Federal, o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Não tem cláusula pétrea que um caminhão desgovernado não possa reduzir a pó.

O Brasil concedia, não faz muito tempo, licença absoluta para o assassinato de menores. Na época, eram chamados de meninos de rua e de pivetes, uma palavra francesa que foi sendo abrasileirada durante o século XX. Matavam meninos de rua como se mata rato, no varejo e no atacado, à unidade e às pencas. Quando a letra de Renato Russo escrevia vamos “Celebrar a juventude sem escolas, As crianças mortas, Celebrar nossa desunião”, era exatamente o clima dessa pandemia demoníaca que o seu sarcasmo nos convidava a celebrar.

A desenvoltura dos assassinos era tão grande que, por fim, houve a Chacina da Candelária, quando um grupo de policiais, sem sentir qualquer embaraço por se tratar de uma catedral (e porque sentiriam se, desde que se lembravam a igreja nunca usara seu prestígio para defender essas crianças?), disparou sobre um grupo de crianças que se abrigavam ali. Muito à vontade, eles sequer estavam à paisana mas, ao contrário, estavam uniformizados, de serviço e faziam uso de viaturas do estado. Tal era a cumplicidade no ambiente social que não sentiam nenhuma necessidade de dissimularem-se.

Esse foi o ponto a que chegamos na noite de 23 de julho de 1993. Foram oito mortos e vários feridos. O horror que se seguiu, o choque provocado, levou a sociedade brasileira a cair em si. Houve um intenso e prolongado repúdio ao assassinato de menores e a seus perpetradores. E, claro, porque a repercussão não foi só local, mas chegou às manchetes de muitos jornais importantes na Europa e nos Estados Unidos. O resultado foi uma drástica redução dos assassinatos. E assim estamos por pouco mais de 20 anos.

O Estado brasileiro tem essa qualidade única, só encontrada nos estados fascistas, de divisão do monopólio da violência entre o estado e os grupos paraestatais. Fios invisíveis ligam o estado aos grupos de extermínio, aos esquadrões da morte e às milícias; fios que são tecidos através da vista grossa, da impunidade, da indiferença. Assim, em uma de suas faces, a pública, o país pode se orgulhar de ser moderno, de valorizar os direitos humanos e as garantias da pessoa, enquanto noutra, dissimulada, sustenta a pena de morte e o assassinato em massa. Não temos 50 mil assassinatos por ano à toa. O Brasil possui o maior e mais vasto sistema de pena de morte do mundo.

Sobre a liberdade de ação dos grupos paramilitares, é interessante observar, por exemplo, o domínio das milícias que cresce ano após ano no Rio de Janeiro. Centenas já foram liquidadas por eles. Só agora, em março, coincidentemente em meio à conjuntura crítica de impopularidade que atravessa o governo Dilma, o ministro da Justiça afirmou que a invasão das casas e a expulsão de moradores do “Minha casa, minha vida” no Rio eram inaceitáveis e que a Polícia Federal iria investigar.  Mas isso é curioso porque, já em janeiro de 2014, mais de um ano antes, portanto, uma matéria do G1, fartamente ilustrada com um vídeo antes divulgado no Fantástico, mostrava o horror que as milícias impunham aos moradores do “Minha casa, minha vida”. Nada foi feito.

O que acontecerá se for reduzida a menoridade penal? Se essa lei for aprovada, poderemos batizá-la de “lei da nova Candelária”. Ela sinalizará para a nossa “corja de assassinos covardes” (perfeita expressão de Renato Russo) que a temporada de caça foi reaberta. Não demorará muito para termos cinquenta ou cem Candelárias.

Por que isso? Porque o Brasil vive mais um dos eternos períodos de virulência e histeria, manifesto muito especialmente com o racismo e outros crimes de ódio no segundo semestre de 2014. Foi dentro desse clima de violência simbólica que ganhou força a redução da maioridade penal.  É o que faz com que essa proposta longe de ser frágil, como uma flor de estufa, seja antes forte como um mutante transgênico, facilmente absorvido pelo organismo intoxicado dos políticos brasileiros. Defendendo a proposta, passam a imagem de alguma ação em proveito do interesse público, quando só estão escolhendo o caminho da violência.

Esse é um período bastante paradoxal. Enquanto o ódio aos negros é recorrente, e a Justiça teima em não ver racismo, a sociedade promove tudo que for branco, seja qual for a sua condição: assim tivemos o mendigo gato, a mendiga gata, e, para nada ficar de fora, o serial killer gato. Com 39 assassinatos confessados, o matador de mulheres de Goiânia, vigilante Thiago Henrique Gomes da Rocha, parece que conseguiu comover uma legião de fãs. E ainda temos o traficante notório, criado não em uma favela da Zona Sul, mas na praia de Ipanema cuja execução comoveu o Brasil.

A histeria da classe média e da cobertura televisiva, que contra os fatos, teima em apresentar menores como operadores do crime, quando as pesquisas mostram que eles são muito mais vítimas da violência, provavelmente dará os seus frutos podres de sempre, com o retorno da corja de assassinos. O clima geral do país, para quem tem olhos para ver, vai ficar cada dia mais desfavorável aos negros. Exemplo é o último caso, a expulsão de uma criança negra da frente da loja Animale em São Paulo. O pai, um estrangeiro, comentou:

“Isso é alimentado por uma mídia onde negro só aparece como bandido ou coitadinho, nunca como médico, engenheiro, executivo, cientista, etc. Os casos de racismo contra crianças que aparecem na imprensa costumam ser de famílias de classe média-alta/classe alta, e/ou onde pelo menos um dos pais é estrangeiro. E todos os outros casos que acontecem todos os dias?”

Tudo está voltando. Em 2015 o país vive exatamente as mesmas fantasmagorias dos anos 50 do século passado, com a gritaria de classe média clamando pelo golpe militar, com seus filhos, os filhos de “boa família”, cada vez mais delinquentes, servindo à criação de um vasto mercado de drogas sintéticas, revivendo as brigas de ruas, e cultuando os músculos em academias, exatamente como os personagens de Rubens Fonseca ambientados nessa época. Para coroar tudo isso, voltam às ruas os pegas, as motos barulhentas, os carros envenenados e os grupos de jovens que se reúnem para ouvir música alta e tomar uma “bolinha”, que agora é um domesticado LSD de playground.  É a atmosfera de juventude transviada, da Tijuca e de Copacabana nos anos 50.

Em mais de meio século, desde então, a classe média brasileira não aprendeu nada e nada esqueceu. Reúne numa mixórdia o ódio aos negros, aos pobres, aos programas sociais, ao acessos à bens públicos antes exclusivos, e o faz ressuscitando o velho fantasma do comunismo, da guerra fria, da apologia à tortura. Ela é macarthista 60 anos depois do repulsivo senador McCarthy. Numa atmosfera de extermínio, de Vietnã nos subúrbios, de holocausto, estaremos, com a redução da menoridade penal, dando um passo decisivo para uma política de morticínio sustentado.

Será a revogação do interdito à matança de pivetes cujo marco foi a Candelária. Mas hoje alguns setores do Brasil precisam, para dormir tranquilos, liberar um pouco a tensão, e poder usufruir, ao acordar e ir ao computador, de um rico cardápio de carnificinas nas homes. A coisa já está caminhando para isso. Hoje quem abre o G1 pela manhã encontra sempre um ou dois assassinatos registrados por câmeras de segurança. Pode se refastelar com um nutritivo prato antropofágico matinal. E, como a tendência agora é o vitelo, a carne infantil, estará muito bem servido: a menoridade aprontará o prato do dia.

Os ingênuos de boa-fé que (através das suas ONGs e associações) estão esgrimindo argumentos ponderados contrários à redução da maioridade mostram que possuem um conhecimento superficial do Brasil. Esse discurso argumentativo deixa a impressão de que vivemos num país normal, de civilização democrática instituída. Ora, um país de cinquenta mil fuzilados por ano não é um país boa praça. Ao fazer o discurso brandindo argumentos técnicos se está reforçando o horizonte de dissimulação em que a verdade política da morte ocorre no Brasil. O que o Congresso está em vias de aprovar, o que a gloriosa Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou na terça-feira (31), não foi a redução da menoridade penal. Foi a reabertura da temporada de caça aos pivetes. A memória curta do Brasil significa que dentro de certos intervalos de tempos, no caso, de 20 e poucos anos, se reeditam os mesmos pesadelos e monstruosidades. Isso é o que no Brasil se entende por Constituição e justiça.

* Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, autor do ensaio, traduzido pelo filósofo francês Michael Soubbotnik, Aspects historiques et logiques de la classification raciale au Brésil (Cf. na Internet), e do livro Lógica do disparate.

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