RIO - “A beleza enche os olhos d água”, disse certa vez a poeta Adélia Prado. Assim viajamos no tempo ou na correnteza cristalina de lágrimas que jorram desse manancial de emoções chamado Conceição Evaristo.
Em seu novo livro de contos, “Olhos d’água” (Pallas/Seppir/FBN), a escritora, marcada pela mineirice e pelo engajamento no movimento de mulheres negras, reconta histórias da sua “escrevivência”, motor de todo o universo narrativo que, ao longo dos últimos anos, a transformaram em uma autora bastante engajada e, sobretudo, estudada, nas academias dentro e fora do Brasil — em março, foi um dos nomes mais festejados da delegação brasileira no Salão do Livro de Paris.
Festejada pelo percurso narrativo das suas histórias, ambientadas no jeito simples de mulheres e homens, Conceição Evaristo vem chamando a atenção pela construção de personagens e falas eivados de segredos e memórias. Mulher forjada na lida difícil do dia a dia, teve uma infância dura e pobre. Os estudos foram feitos aos trancos e barrancos: o trabalho de empregada doméstica desde os oito anos ou a lavagem e a entrega de trouxas de roupas para as patroas retardaram o seu destino. Mas, guerreira e determinada, tornou-se mestra pela PUC-Rio e doutorou-se em Literatura Comparada pela UFF.
OBRA CADA VEZ MAIS ESTUDADA
Nas letras, começou colaborando para os históricos “Cadernos Negros”, publicação do Grupo Quilombhoje, de São Paulo, onde escreveu poesias e contos. A memória, no entanto, é o fio condutor dos “causos” que conta: sejam nas relembranças da família, através da mãe (“A voz de minha mãe / Ecoou baixinho / No fundo das cozinhas alheias / debaixo das trouxas / roupagens sujas dos brancos”), como disse no poema “Vozes-Mulheres”, ou nos textos em prosa, espécie de palimpsesto, que acompanha os seus passos como que escrito sobre sua pele negra.
A impressão que se tem é que surge daí o cerne da sua produção textual: em literatura, Conceição é a essência da mulher-fala, da mulher-gozo, da mulher-vida, da mulher-povo. Seu itinerário espiritual literário refaz o caminho da sua ancestralidade feminina, presa na senzala da mente e subscrita nas lágrimas que descem dos olhos das mulheres que enchem seus livros de dor e sensações.
Na prosa há também, e especialmente, a Conceição autora de romances. O mais conhecido deles, “Ponciá Vicêncio” (2003), já traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos, é o marco de sua escrita, talvez urbano-realista. Famoso pelos inúmeros estudos que vem suscitando, “Ponciá Vicêncio” (que está sendo preparado para o cinema pelas mãos do diretor Luiz Antônio Pillar), na mesma linha de “Becos da memória” (2006), reedita o modelo da tradição das narrativas a partir do ponto de vista da crítica social, da visão de costume, mas sob o aspecto do triste legado deixado pela escravidão brasileira, com ênfase na violência e na miséria. Em “Becos da memória”, por exemplo, Conceição assume o papel da mãe-velha — a griot —, através dos corpos-textos embutidos nas falas das mulheres, como as muitas Marias Novas de suas histórias.
Conceição está muito próxima do contundente testemunho de “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus (1914-77), ou do grito das escritoras negras do seu tempo presente, que não se deixam silenciar nunca — sua escrita, rica de imagens e significados, serve para dinamitar metros cúbicos de túneis por onde ela cria atalhos para sua voz respirar.
E no volume de contos “Olhos d’água”, não é diferente. Neste livro ela pavimenta bem o seu caminho de escritora, o arcabouço linguístico de sua comunicação com o mundo (a exemplo da ousada escritora moçambicana Paulina Chiziane, que esteve ano passado no Brasil, durante a Flink Sampa). Nos contos deste volume, é evidente a tessitura, o sutil acabamento e a concisão de palavras no enfeixamento de histórias como a “Olho d’água”, “Luamanda”, “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”, “A gente combinamos de não morrer”, “Di lixão”, “Ana Davenga”, “Os amores de Kimbá”, entre outras. São relatos recheados não só de lágrimas e de dor, na perspectiva de crianças, homens e mulheres, mas de sentimento, violência e de fé. Se em cada uma dessas histórias as lágrimas não param de rolar, de mistura com o vermelho do sangue, ao mesmo tempo, na essência de sua criatividade, a voz da autora também não se permite calar.
Personagens e enredos têm muitas razões de choros e angústias. Aliás, é um livro muito lacrimejante, pode-se dizer, onde praticamente todos choram por alguma razão, menos de alegria. Mas há quem chora “diante da novela”, ou quem parece ter “rios caudalosos” sobre a face, ou, ainda, “águas correntezas”. O homem de Ana Davenga, neste caso, tinha um copioso “choro-gozo”, enquanto Luamanda, no gozo-dor, entre as pernas, “lacrimevaginava”, Dorvi tinha um “rio-mar” que rolava pela face abaixo, e no conto “Quantos filhos Natalina teve?”, a personagem chegava a chorar “silenciosamente”, como devia ser choroso costurar a “vida com fios de ferro”, como fazia a mãe de uma personagem.
Ora, são muitas as passagens marcantes de “Olhos d’água”: um livro revelador, impactante, forte, mas sem sentimentalismos, unindo poética à ficção. Sem dúvida, Conceição Evaristo se revela uma importante escritora da nossa atualidade. Vale a pena a conferir.
*Uelinton Farias Alves é jornalista e escritor, e trabalha atualmente numa biografia sobre Carolina Maria de Jesus
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/livros/o-fio-da-memoria-de-conceicao-evaristo-15766815#ixzz3Xc2m5PEG
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