terça-feira, 21 de abril de 2015

Personalidades - Aurora Miranda


RIO - Em meados de 1934, Aurora Miranda estava preocupada. Ela deveria ou não gravar uma marchinha recém-composta por André Filho? A canção, uma tal de “Cidade maravilhosa”, parecia boa aos ouvidos da moça de 19 anos, que, com a maioridade recém-alcançada, passou a se apresentar pelo Rio de Janeiro, sozinha ou ao lado da irmã famosa, Carmen. O problema era que a música entraria na disputa do concurso de marchinhas do carnaval de 1935, e, segundo a lógica altruísta de Aurora, o mais correto seria que a irmã, cantora profissional desde 1928 e já adorada pelo público, emprestasse voz à canção. Por insistência da própria Carmen, no entanto, Aurora cedeu e, hoje, quem ouvir a gravação original, de 4 de setembro de 1934, encontrará uma voz doce, de menina, costurando a letra à melodia que três décadas depois viraria, por decreto do governo, o hino oficial da cidade.


Aurora era a mais nova das moças da família Miranda — além de Carmen, havia Olinda, que morreu de tuberculose aos 23 anos, e Cecília, que não seguiu carreira artística. Nascida em 1915, com a família de origem portuguesa estabelecida no Rio (Carmen nascera ainda em Portugal, em 1909), Aurora completaria 100 anos de idade no próximo dia 20. Ela conheceu a era de ouro do rádio na década de 1930, período em que foi a segunda cantora a gravar mais discos no país. Na frente dela, claro, apenas Carmen. É unanimidade, porém, que as duas nunca se enxergaram como rivais. Eram, ao contrário, unha e carne, conhecidas à época como “as irmãs Miranda”.

— A Aurora nunca se sentiu ofuscada pelo sucesso de Carmen. Ela sabia que tinha talento. O problema é que não tinha... vocação. Tanto que, na primeira oportunidade, parou com tudo e foi ser só dona de casa e mãe. A grande diferença entre elas é que Carmen tinha o talento, a vocação e a garra. Aurora, só o talento. E talvez ela fosse até classicamente mais bonita, mas não tinha nem sombra da faísca e do carisma da irmã — avalia o escritor Ruy Castro, autor de “Carmen, uma biografia”, livro que, segundo ele, é o único dos muitos sobre a Pequena Notável que não usou Aurora apenas como fonte de informações, mas contou também sua trajetória.

DUETO BEM SUCEDIDO COM FRANCISCO ALVES

Ainda adolescente, Aurora já cantava com técnica, mas teve que esperar até os 18 anos para ser levada por Josué de Barros, responsável por lançar Carmen, para a Rádio Mayrink Veiga. A partir daí, a menina passou a se apresentar periodicamente no “Programa Casé”, da Rádio Philips. Foi também Josué de Barros que a levou para gravar seu primeiro disco na Odeon, em dupla com Francisco Alves. O álbum conquistou o público com seu carro-chefe, a marchinha “Cai, cai, balão”, de Assis Valente. Logo no mês seguinte, a Odeon lançaria outro sucesso com a dupla, o fox “Você só... mente”, composto pelos irmãos Hélio e Noel Rosa. Mas a recordação que deleitou Aurora pelo resto da vida foi o número feito ao lado da irmã no filme “Alô, alô carnaval”, de 1936.

— Em uma cena do filme, as duas interpretam “Cantoras do rádio”. Décadas mais tarde, Aurora me disse que achava que tinha sido a sua melhor apresentação — conta o pesquisador musical Ricardo Cravo Albin.

Albin não conheceu Carmen, que morreu em 1955, depois de morar por 16 anos nos Estados Unidos. Naquela década, ele começou a cultivar uma amizade com Aurora que duraria até a morte dela, em 2005.

— Eu conheci a Aurora em 1936, no Cassino da Urca. Ela cantava demais e era muito bonita. Só não era namoradeira. Ela e a Carmen não davam confiança para ninguém — lembra, aos risos, Bob Lester, nome artístico de Edgar Almeida Negrão de Lima, que, hoje com 102 anos, foi o primeiro sapateador contratado do Cassino da Urca.


Depois de uns poucos namoricos, ela conheceu o comerciante carioca Gabriel Richaid.

— O meu pai contava que havia passado um trote na minha mãe. Não sei exatamente o que ele disse nessa primeira conversa por telefone, mas o fato é que a convenceu a encontrá-lo. Ele sempre foi muito apaixonado por ela, até a morte, em 1989 — conta a filha do casal, Maria Paula.

CENA CLÁSSICA COM PATO DONALD E ZÉ CARIOCA

O casamento dos dois, em 1940, foi às pressas, porque Carmen tinha se mudado um ano antes para os Estados Unidos e insistia para que a irmã passasse a viver lá também.

— Meus pais foram morar na casa da tia Carmen, em Beverly Hills — diz Maria Paula.

Em solo americano, Aurora atuou e cantou no clássico “Você já foi à Bahia?”, lançado em 1944 pelos estúdios Disney. Em uma das cenas, ela flerta com Zé Carioca e Pato Donald enquanto canta “Os quindins de Iaiá”, de Ary Barroso. Ela também participou de outros filmes e de programas de rádio ao lado de Orson Wellles e Rudy Vallee, além de se apresentar em casas noturnas, mas considerava que “aquela vida de Hollywood era para Carmen”. Sua grande preocupação, com o passar do tempo, voltou-se para os filhos que ainda queria ter. Com dificuldade para engravidar, ela recorreu a tratamentos médicos em Los Angeles, até que, em 1947, teve seu primeiro bebê, que recebeu o nome do pai. Dois anos depois, nasceu Maria Paula. Enquanto isso, a irmã havia sofrido um aborto espontâneo e perdia as esperanças de ter herdeiros.

— Aurora, na verdade, se realizou mais do que Carmen, porque foi mãe, coisa que Carmen queria desesperadamente ter sido e não foi — sentencia Ruy Castro.

O aspecto decisivo para que a cantora retornasse de vez para o Brasil com o marido e os dois filhos, no início de 1952, foi a rotina de brigas entre ela e o cunhado, David Sebastian. Também empresário de Carmen, ele mantinha para a cantora uma exaustiva agenda de compromissos, o que era reprovado pela irmã.

— A minha mãe achava que, se a tia Carmen tivesse um marido realmente apaixonado por ela, ele teria freado a vida agitada que ela levava. Ele a colocava para trabalhar sem parar, e por isso ela bebia muito, tomava calmantes e barbitúricos. Minha mãe via isso e brigava muito com ele. Ela veio embora com muito desgosto, sempre o detestou. Nos meus registros ele é como um fantasma — conta a filha de Aurora. — Minha mãe encheu a paciência do meu pai para eles virem para o Brasil. Ele não queria voltar porque estava estabelecido lá, mas fez a vontade dela.

A devoção à irmã era tamanha que Aurora chegou a dizer ao amigo Albin, num desabafo, já viúva na década de 90, que, se pudesse, trocaria sua vida amorosa bem-sucedida com a de Carmen, apenas para vê-la feliz.

De volta ao Brasil, Aurora passou por Urca, Copacabana, Ipanema e viveu seus últimos anos no Leblon. Entre uma ou outra visita de ilustres como Caetano Veloso, que vez ou outra passava em sua casa, ela passou a se dedicar aos cuidados com o legado da irmã. Participou de várias homenagens póstumas à Carmen e foi deixando, aos poucos, sua própria carreira cair no esquecimento.

— A própria Aurora não se valorizava como artista. Quando voltou para o Brasil, alguns anos antes da morte de Carmen, tentou timidamente retomar sua carreira, mas ela mesma não levou adiante. E, depois que Carmen morreu, parou de falar de si mesma e passou a falar só sobre Carmen. Com isso, os repórteres passaram a perguntar só sobre Carmen. Donde a culpa não foi só da imprensa, foi dela também — considera Ruy Castro. — Quem se dispuser hoje a reabilitar Aurora Miranda estará prestando um serviço à cultura nacional.

Aurora morreu em casa, em dezembro de 2005, em decorrência de um ataque cardíaco. No próximo dia 20, data de seu centenário, o Instituto Cultural Cravo Albin realizará uma mostra de discos da cantora. Também será postada no site da instituição uma lista de músicas interpretadas por ela, para serem ouvidas gratuitamente.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/musica/aurora-miranda-irma-discreta-da-bombshell-carmen-15848400#ixzz3XyB40AP1




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