por Luiz Ruffato
Lembro-me que nos meus tempos de escola ainda se discutia qual o maior escritor brasileiro de todos os tempos, se José de Alencar, se Machado de Assis, ambos os lados defendidos com ardor por leitores e especialistas. Com o tempo, cresceu o prestígio do autor de Dom Casmurro - sua complexa obra, cada vez mais estudada, no Brasil e no exterior, vem alçando alturas impensáveis, assegurando- lhe o legítimo lugar no panteão da literatura universal. A fama do autor de Iracema injustamente decaiu. Escasseiam os trabalhos acadêmicos e seu nome ainda circula quase exclusivamente em função da obrigatoriedade da leitura nas escolas. Por isso, a importância de O inimigo do rei, do jornalista Lira Neto, que se junta às pouco mais de uma dezena de biografias de José de Alencar, um número minúsculo dada a importância do personagem.
Parece que quem melhor compreendeu a importância de Alencar foi exatamente Machado de Assis. Em diversas ocasiões, o escritor carioca discorreu sobre a obra de seu colega mais velho, de quem afirmava "nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira" e para quem predizia que, contra a conspiração do silêncio, trabalhava por ele a "conspiração da posteridade". Vaidoso, rancoroso e contraditório, Alencar sozinho indicou os caminhos possíveis para a literatura ulterior, em temas e linguagem - só tendo equivalente em Mario de Andrade, no século XX.
Nascido em 1829, em Mecejana, Ceará, José Martiniano de Alencar era o primogênito da união entre o padre José Martiniano Pereira de Alencar e a prima Ana Josefina - o casal teve mais sete filhos. Sempre às voltas com conspirações políticas, o padre Martiniano descendia de uma família tradicional do Ceará, tendo participado de episódios da história brasileira, como a Confederação do Equador [movimento de resistência a D. Pedro I, em 1824] e o "golpe da maioridade", que conduziu D. Pedro II ao trono do império com apenas 14 anos. Exerceu ainda a presidência da província do seu estado natal e foi senador. A paixão pela política insufloua no filho, como também suas contradições e reviravoltas ideológicas.
O gosto de Alencar pela literatura nasceu dos tempos em que lia para a mãe e amigas "não somente as cartas e os jornais, como os volumes de uma diminuta livraria romântica". Em sua importantíssima autobiografia intelectual, Como e porque sou romancista, diz que a primeira aproximação com as letras deu-se por meio das charadas, que lhe teriam alimentado o "dom de produzir a faculdade criadora". Ainda na adolescência tentou um poema heróico sobre a Confederação do Equador e um romance histórico, Os contrabandistas.
Acredito que o momento fundamental da aprendizagem ocorreu na adolescência, quando de sua passagem por São Paulo, para onde havia se mudado para estudar direito: o contato com a obra de Honoré de Balzac. Além de uma conseqüência imediata, a de renunciar aos romances que andava rascunhando - de "mistérios e pavores" -, houve outra, muito mais importante, que reverberaria no futuro: a influência do autor francês. Penso que a elaboração que tentou Alencar, a de um amplo painel da nação brasileira, encontra-se intimamente ligada à concepção balzaquiana da Comédia humana, que em seus quase cem romances e contos buscou abarcar os mais diversos aspectos da vida francesa.
Há diferenças evidentes, claro. A mais vistosa é que Balzac, escrevendo sobre a nascente sociedade burguesa, ao esmiuçar o frenesi do capitalismo e suas conseqüências no indivíduo, assentava-se em toda uma vasta história literária anterior. Já Alencar, vivendo em um país jovem, rural e escravocrata, necessitava edificar uma tradição, partindo do nada. E, para isso, recorreu principalmente ao modelo similar norte americano, Fennimore Cooper, e ao escocês Walter Scott, numa estranha porém funcional mistura de realismo contemporâneo e romantismo ultrapassado. Assim, inventou mitos fundadores (Iracema e O guarani), percorreu a história colonial (As minas de prata e Alfarrábios), trafegou pelas mais diversas regiões do país (O gaúcho e O sertanejo) e encontrou-se com sua época nos romances urbanos (Lucíola e Senhora), estes prenunciadores do realismo que vingaria no fim do século XIX.
Em fins de 1847, o padre Martiniano, então senador, refugia-se no sítio Alagadiço Novo, em Mecejana, para cuidar da saúde. Alencar, que estudava em São Paulo, resolve passar as férias escolares perto do pai, redescobre as paisagens da infância e então "uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer- se com o primeiro broto d'O guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia". Demoraria muito para que esses romances se consubstanciassem: O guarani lançou-o dez anos mais tarde; Iracema aguardaria ainda 22 anos.
Em Mecejana, Alencar toma uma decisão: transfere o curso de direito para Olinda e enfia-se na biblioteca do convento de São Bento, onde esboça duas novelas de cunho histórico, O ermitão da glória e A alma de Lázaro - que comporiam, 25 anos depois, junto com O garatuja, o volume Alfarrábios -, e onde contrai tuberculose, doença que o carregaria para a morte. De volta a São Paulo, em 1850, forma-se na Faculdade do Largo de São Francisco e transfere-se em definitivo para o Rio de Janeiro, onde se impregna de literatura romântica - Dumas, Byron - e advoga por quatro anos.
Seguindo os passos do pai, Alencar namora a política, via jornalismo. Lira Neto informa que sua estréia no periodismo ocorre nas páginas do Diário do Rio de Janeiro, por meio de quatro folhetins não assinados, "editados regularmente entre o final de julho e meados de agosto de 1854" e nunca reunidos em livro. No mesmo ano, muda-se para o concorrente Correio Mercantil, encarregado da seção Páginas Menores, e assina as crônicas de Ao correr da pena, onde tomaria gosto pelas polêmicas - muitas ao longo de sua curta vida. Cerca de um ano depois, abandona o jornal, em protesto contra a censura imposta a um de seus escritos, em que comparava uma lista de subscritores da Estrada de Ferro D. Pedro II ao "livro negro da polícia". Seria esse seu rompimento tácito com o imperador.
Alencar adquire em 1856 o decadente Diário do Rio de Janeiro e, redator-chefe, publica, em "meia dúzia de folhetins", aquele que será seu primeiro livro impresso, a pequena novela Cinco minutos. No ano seguinte, entre fevereiro e abril, escreve o folhetim O guarani. Embora sucesso de público, Alencar reclama, como faria até o fim da vida, da pouca atenção da imprensa a seus trabalhos. Em 1862 surge Lucíola, romance urbano, o primeiro dos chamados "perfis de mulher". Diva, publicado em 1864, foi, conforme o autor, "o primeiro que recebeu hospedagem da imprensa diária, e foi acolhido com os cumprimentos banais da cortesia jornalística". O reconhecimento que não angariava da imprensa obteve-o um ano mais tarde, ao publicar sua obra-prima, Iracema: "De todos os meus trabalhos deste gênero nenhum havia merecido as honras que a simpatia e a confraternidade literária se esmeraram em prestar-lhes".
No "prefácio interessantíssimo" a Sonhos d'ouro, de 1872, Alencar classifica, retrospectivamente, sua obra até então, reivindicando para si, com absoluta consciência, papel determinante e solitário na criação da literatura nacional. Segundo ele, o "período orgânico" da literatura nacional já contava com as seguintes fases: a primitiva, com as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada, e Iracema corresponderia a esse momento; a histórica, quando o povo invasor chega à terra americana, e cita O guarani e As minas de prata; a terceira, começada com a independência política, representada por O tronco do ipê, Til e O gaúcho.
Há ainda um quarto momento: "Nos grandes focos, especialmente na corte, a sociedade tem a fisionomia moderna, vaga e múltipla, tão natural à idade da adolescência. É o efeito da transição que se opera, e também do amálgama de elementos diversos". Desta luta "entre o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira" nasceram Lucíola, Diva, A pata da gazela e Sonhos d'ouro.
As questões do vernáculo e da literatura nacional consumiram muito de seu tempo - assim como absorveria o de seu interlocutor privilegiado, dezenas de anos depois, Mario de Andrade. O cearense iria tratar do tema nas Cartas sobre a Confederação dos Tamoios; no pós-escrito de Diva; no longo pós-escrito da segunda edição de Iracema; no prefácio a Sonhos d'ouro; na autobiografia Como e porque sou romancista; no artigo "Questão filológica", continuação da polêmica de Iracema; na longuíssima polêmica travada em 1875 com Joaquim Nabuco, nas páginas de O Globo; nas Questões do Dia, em que enfrentou Franklin Távora e José Feliciano de Castilho.
Em fins de 1857, Alencar tomou como tarefa criar uma dramaturgia nacional - em apenas três meses estrearam três comédias suas. A primeira, Rio de Janeiro: verso e reverso, aparecida anonimamente, em 28 de outubro, encontrou as cadeiras do Ginásio Dramático vazias, mas a propaganda boca a boca transformou-a em sucesso de público. Encorajado, em 5 de novembro levou à cena O demônio familiar - novo sucesso, desta vez também de crítica. À boa aceitação desses trabalhos seguiu-se o malogro de O crédito, sobre o nascente mercado financeiro, que estreando em 19 de dezembro contou com apenas duas outras representações.
Frustrado, Alencar anunciou o encerramento precoce de sua carreira de dramaturgo com As asas de um anjo. A peça, levada ao palco em 30 de maio de 1858, teve uma segunda apresentação em 3 de junho e uma terceira em 17 de junho, quando foi proibida por "evidentemente imoral" - o público indignou-se contra uma cena em que Carolina, a heroína, aparece assediada pelo pai bêbado, que tenta possuí-la à força.
Dois anos passou o escritor sem escrever uma linha, até voltar, anonimamente, com o drama Mãe, em março de 1860, sobre o qual escreveu Machado de Assis: "Se ainda fosse preciso inspirar ao povo o horror pelas instituições do cativeiro, cremos que a representação do novo drama do sr. José de Alencar faria mais do que todos os discursos que se pudessem proferir no recinto do corpo legislativo". Considerado o maior dramaturgo brasileiro, pela crítica e pelo público, Alencar foi convidado por João Caetano, o maior ator de seu tempo, a escrever um drama a ser encenado no dia 7 de setembro de 1861 no Teatro São Pedro de Alcântara. O escritor então lhe oferece O jesuíta - a história de Samuel, um jesuíta que se disfarça de médico para arquitetar a Independência do Brasil -, mas João Caetano recusou-a, irritando profundamente o autor. A peça só viria a ser encenada em setembro de 1875 e foi um retumbante fracasso.
Embora no pós-escrito a Diva Alencar arrogue-se em dizer que "gosta do progresso em tudo", sua longa incursão pela política mostrou-se desastrosa e revelou um personagem inflexível, contraditório e surpreendentemente reacionário. Sua vida pública inicia-se em 1856, quando tenta, pela primeira vez, eleger-se deputado pelo Partido Liberal: recebeu dois míseros votos. Então, contrariando o histórico dos Alencares, o escritor "vira a casaca" e candidata- se em 1861 pelo Partido Conservador, participando de quatro legislaturas seguidas, entre aquele ano e 1873. Em 1868 assumiu brevemente a pasta da Justiça e em 1869 chegou a eleger-se senador, mas teve seu nome vetado por D. Pedro II, que possuía a prerrogativa.
Atitude, aliás, bastante coerente do imperador, que tinha em Alencar um adversário cego e apaixonado. Em 1856, o escritor havia publicado uma série de cartas na imprensa reduzindo a nada o poema épico A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães - cerca de cinco mil e quinhentos versos escritos a pedido de D. Pedro II. Depois, em 1865, volta a fustigar o trono na série de panfletos sob o pseudônimo Erasmo, atacando a corrupção nas altas cúpulas, a participação do Brasil na guerra do Paraguai e as discussões, fomentadas por D. Pedro II, de um projeto de emancipação dos escravos, que se transformaria na Lei do Ventre Livre, seis anos depois.
Se os dois primeiros assuntos eram incendiários, na questão da escravatura Alencar mostra-se, ao contrário do que acreditou Machado de Assis, irremediavelmente obscuro: considerava "o cativeiro historicamente uma 'instituição justa, útil e moral', que trazia 'benefícios' aos escravizados, entre eles o contato da 'raça bárbara' com uma 'raça branca', o que aceleraria seu processo de 'evolução cultural', tirando-a de um estado de 'treva moral' para o mais próximo possível de um 'povo civilizado'", assinala Lira Neto. Em dezembro de 1877, aos 48 anos, José de Alencar morria, no Rio de Janeiro. Ao Cemitério de São Francisco Xavier, onde foi enterrado, compareceram "cinqüenta pessoas no máximo", deplorou Machado de Assis. "Será que passarei à posteridade?" - angustiava-se o escritor, ao final da vida.
O tempo de Alencar
1829 Nasce em Mecejana, Ceará
1854 Estréia no jornal Correio Mercantil, com Ao correr da pena
1856 Publica, em folhetim, o livro Cinco minutos, e, sob pseudônimo, oito cartas criticando A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães
1857 Sai, também em folhetim, O guarani, e são encenadas as peças O Rio de Janeiro, Verso e reverso e O demônio familiar
1858 A peça As asas de um anjo é proibida pela polícia
1861 Elege-se deputado pela província do Ceará
1862 Publica Lucíola e os primeiros volumes de As minas de prata
1864 Casa-se com Georgiana Cochrane e publica Diva
1865 Nasce o filho Augusto. Lança Iracema
1869 Ministro da Justiça, candidata-se ao Senado, mas não é escolhido
1870 Publica A pata da gazela e O gaúcho
1871 Publica O tronco do ipê e o romance-folhetim Til
1872 Lança Sonhos d'ouro, com prefácio em que explica seu projeto de criação de uma literatura nacional; nasce seu filho, Mário de Alencar
1875 Polêmica com Joaquim Nabuco, após encenação de O jesuíta; lança Senhora e O sertanejo
1877 Morre no Rio de Janeiro, vítima de tuberculose
Livros
1. O inimigo do rei
- uma biografia de José de Alencar,
de Lira Neto Globo (no prelo)
2. A fonte subterrânea
- José de Alencar e a retórica oitocentista,
de Eduardo Vieira Martins, Eduel/Edusp, 284 págs., R$ 40
3. Dramas,
edição preparada por João Roberto Faria, Martins Fontes 422 págs., R$ 47,50
4. Comédias,
edição preparada por Flávio Aguiar, Martins Fontes 512 págs., R$ 58,50
José Martiniano de Alencar, ou como melhor dizendo, José de Alencar é um autor que utilizava temas atuais, apesar desses problemas serem da antiguidade também, há um conflito maior nos dias de hoje. Alencar defendia o direto da mulher de ser mais uma da sociedade, não apenas aquela que só servi para procriar e ser dona de casa, criada como uma coisa, algumas vistas como sem sentimentos.
ResponderExcluirPodemos ver em Lucíola, que apesar de não ser vista como filha de Deus, se apaixona, revela ser uma pessoa, não apenas aquela que presta serviços sexuais. Há também a Aurélia, que mostra ser uma moça frágil, como as outras, mas não! Revela-se,ao longo da história, que ela é uma mulher forte, batalhadora, não é qualquer uma mulher,é A MULHER!
Em seus livros indianistas, vemos o índio no núcleo, sendo demonstrado como o herói da história, o mocinho bobinho, que é o bonzinho da história, que nem destruir a natureza destruía, o índio era idealizado. José de Alencar utilizou o índio para sua formação de uma nova nação.
Joaquim Maria Machado de Assis, ou melhor, Machado de Assis, outro autor muito famoso, amigo de José de Alencar, romancista, realista, poeta, contista, jornalista. É um autor mais conservador, utilizava temas críticos e políticos com mais frequência, é irônico, deixa tudo subentendido.
A amizade de Alencar e de Assis é tão forte que houveram boatos, do tipo, Machado tinha tido um filho com uma escrava, porém quem assumiu o filho foi José.
Aluna:Bruna de Oliveira Monteiro
Turma:901
José de Alencar e Machado de Assis são dois ilustres artistas da literatura de nosso país. Porém sempre houve dúvidas de quem foi o maior escritor entre esses, que são frequentes entre estudiosos, acadêmicos, críticos literários e outros.
ResponderExcluirAtualmente, o mais considerado é Machado de Assis, mas muitos não concordam com isso, como por exemplo o autor deste artigo que fala que tal consideração foi feita injustamente, pelo fato de que as obras de Alencar são lidas usualmente por obrigação em escolas, talvez por falta de interesse de editoras que estão sempre visando vender, considerando-as ultrapassadas.
Porém se Machado se destaca ainda assim, é perceptível que suas obras são realmente melhores, apesar do diferente estilo literário, e não por uma questão de injustiça.
Thales Borges - 802