terça-feira, 30 de abril de 2013

Te Contei, não ? - O nascimento da cultura e do estilo de praia do Rio

Julia O’Donnel escreveu o livro após presenciar uma discussão Foto: Gustavo Stephan / Agência O Globo
 
 
Era um sábado de calor escaldante em Copacabana, em pleno verão de 2010. Em uma pequena rua do bairro, duas senhoras disputavam a mesma vaga de estacionamento aos gritos, vociferando farpas. O bate-boca encerrou-se de repente quando uma das mulheres sentenciou: “Não tem cacife para morar na Zona Sul? Volta para o subúrbio, então, que lá é o seu lugar!”. A cena chamou a atenção da antropóloga Julia O'Donnell, que agora, três anos mais tarde, lança o livro “A invenção de Copacabana” (Zahar), um profundo estudo da cultura praiana do Rio e do significado do tal “cacife” que cerca a Zona Sul da cidade — em especial os bairros litorâneos — no imaginário coletivo do carioca.
Tese de doutorado em antropologia social de Julia no Museu Nacional (UFRJ), o texto iria abordar, inicialmente, a urbanização do Rio na década de 1920. Em meio à pesquisa, a autora percebeu que o processo estava atrelado ao crescimento de Copacabana.
— O livro é uma metonímia. Copacabana foi o símbolo desse movimento para a região litorânea da cidade — diz Julia, paulistana cujo amor pelo Rio já tinha sido declarado em “De olho na rua: a cidade de João do Rio” (Zahar, 2008), mas que agora foi reafirmado ao longo das 255 páginas da nova publicação. — Sempre quis entender esse discurso que envolve morar na Zona Sul. É um discurso que supera o material, é um estado de orgulho. Algo muito particular do Rio.
Na tentativa de destrinchar o que significa inflar o peito para dizer que mora em Copacabana, Ipanema ou Leblon, a antropóloga se aprofundou no surgimento da cultura praiana do Rio. No livro, Julia derruba o mito de que esse espírito livre, leve e solto de ser do carioca sempre existiu e prova que o doce balanço a caminho do mar, na verdade, só foi visto com poesia e status depois de uma insistência maciça e artificial de tornar a praia — e o estilo de vida que a cerca — algo charmoso.
É o que Julia chama de “projeto praiano civilizatório”. Segundo ela, a ideia do Rio como uma cidade que tem a praia como um de seus pilares culturais foi totalmente construída:
— Na década de 1920, um grupo de pessoas, tanto do setor privado como do governo, proclamava que o uso da praia deveria ser constituído nos padrões europeus.
Surgiu, assim, o hábito de circular pelo calçadão, passar o dia na praia, cultuar o corpo, tostar no sol (antes, o bronzeamento era sinônimo de trabalhadores braçais) e desfilar uma moda praia que evoluía a cada verão — de trajes ultra pudicos ao maiô, as décadas de 1920 e 1930 em Copacabana viveram uma verdadeira revolução no quesito vestuário.
Em uma das passagens mais curiosas do livro, Julia descreve a reação revoltada, em 1930, do mesmo grupo que defendeu a cultura da praia. Tanto fizeram campanha, que a moda de fato pegou entre a população, pobres e ricos. E a turma que achava que as areias deveriam seguir padrões europeus a lá Biarritz, na França, ficou indignada. Em um trecho da revista “Beira-mar” de 1929, contido no livro, é evidente o preconceito com a popularidade, como aliás existe até hoje:
“Muitos levam cotoveladas vigorosas que põem equimoses na pele. Outros recebem pontapés dados por acaso, safanões sem destino... esse referver de criaturas, bem ou mal vestidas, limpas ou sujas, de todas as cores e nacionalidades, afeia os balneários, que, assim, se assemelham a praias habitadas de focas e não praias vaidosamente chamadas de elegantes. Balneários de capitalistas, de cozinheiros, de diplomatas, de chauffeurs, de artistas, em mistura, é possível que sejam democráticos, não, porém, elegantes.”
Recheado por belas imagens de época, como um Túnel Velho novo em folha, um Copacabana Palace sozinho na paisagem e um areal onde se veria, mais tarde, uma Avenida Atlântica espetada por arranha-céus, o livro é dividido em seis capítulos. O primeiro esmiúça a transformação do antigo areal num polo de atração de investimentos; o segundo discute como diferentes sujeitos incorporaram os bairros atlânticos ao seu cotidiano; o terceiro volta no tempo para tentar explicar o porquê desses bairros terem ganhado destaque; o quarto analisa os principais articuladores desse estilo de vida; o quinto trata do culto ao corpo, da moda e do consumo que surgiram; e o último foca na década de 1930 para falar do projeto civilizatório que transformou Copa em um território associado à modernidade e à elegância.


Jornal O Globo

Te Contei, não ? - Memórias dos anos de chumbo

 

Assayas ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza de 2012
Foto: Divulgação / Agência O Globo
 
 
Olivier Assayas tinha apenas 13 anos de idade quando o mundo virou de cabeça para baixo, em maio de 1968. Era jovem demais para participar da onda de protestos e passeatas ou mesmo entender o que se passava na França naquele momento. Mas a História o alcançaria, pois o garoto das redondezas de Paris amadureceu à sombra da revolução que pretendia romper com os valores da sociedade, que se alastrou pelo planeta na década seguinte. Uma experiência tão marcante que, quatro décadas depois, é revivida pelo hoje diretor de 58 anos em “Depois de maio”, que chega aos cinemas cariocas na próxima sexta-feira.
Vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza de 2012, o filme é um recorte da geração que cresceu sob o impacto da contracultura e dos movimentos pacifistas, alimentada por literatura alternativa, música contestatória e cinema de vanguarda. A história começa em fevereiro de 1971 com um protesto na Place de Clichy, em Paris, inflamado por um trecho de Pascal lido em sala de aula (“Entre nós e o Paraíso ou o Inferno há somente a vida, que é a mais frágil das coisas do mundo”), e é contada do ponto de vista de Gilles (Clément Métayer), um estudante secundarista que descobre sua vocação para as artes ao mesmo tempo em que se engaja no ativismo político.
A herança do pai, Jacques Remy
Gilles é uma versão menos poética e idealista do protagonista de “Água fria” (1994), também chamado Gilles, o primeiro filme de Assayas sobre o que foi adolescer nos anos 1970. Ambos, no entanto, herdaram a bagagem biográfica do diretor, filho do roteirista e cineasta Jacques Remy (1911-1981), que estudou literatura e pintura durante as turbulências daquela década, antes de se voltar para a profissão do pai.
— “Água fria” oferece uma visão mais genérica e abrangente dos anos 1970 e da juventude da época, carregada de estereótipos sobre a década e, portanto, cheio de distorções. Confesso que, no início dos anos 1990, quando comecei a pensar em fazer um filme sobre aquele período, não estava preparado para voltar ao passado, como me senti agora — explica Assayas ao GLOBO, por telefone, de sua casa em Paris. — “Depois de maio”, ao contrário, oferece uma visão mais realista e específica daquele momento, definidor do caráter de uma geração e que influenciou as que vieram depois. Queria fazer um filme sobre a beleza da rebeldia dos anos 1970 e seus ideias de vida comunitária, de liberdade sexual e de antimaterialismo.
“Depois de maio” contempla diversos aspectos do comportamento da juventude que queria mudar o mundo. Gilles e seus amigos Alain (Felix Armand) e Jean-Pierre (Hugo Conzelmann) não medem esforços na tentativa de criar uma sociedade melhor: distribuem panfletos incendiários, contribuem para revistas de esquerda e pintam grafites nas paredes da cidade. Quando um segurança é gravemente ferido por um coquetel molotov durante uma das manifestações do grupo, Gilles e sua namorada Christine (Lola Creton) fogem para a Itália e, depois, para Londres. No percurso, o protagonista cruza com ativistas das mais diversas correntes político-ideológicas, do anarquismo ao maoísmo, passando pelos social-democratas.
Quando, em algum ponto do percurso, os estudantes começam a se dar conta de que a vida real também exige praticidade, eles gradativamente retornam à convivência dos pais, aos estudos e às carreiras que tanto almejam. Mas aí eles já tinham deixado sua herança no mundo: nos meses e anos que se seguiram, levantes se repetiram na Polônia e na então Tchecoslováquia, antigos domínios da União Soviética, em Chicago e no interior da Inglaterra. Um pouco mais adiante, e a sangrenta Guerra do Vietnã (1955-1975) finalmente chegaria ao fim. “Depois de maio” enfatiza a desilusão política e a descrença no individualismo daquela geração, o que pode sugerir um paralelo com a juventude de hoje, que participa do Occupy Movement (movimento internacional que luta contra a desigualdade econômica) ou que enche as fileiras da Primavera Árabe, que sacode o Egito e outros países daquela região.
Um mundo mais justo
Mas não é bem assim:
— Uma analogia do espírito revolucionários de “Depois de maio” com os tempos que vivemos pode ser bastante cruel, para ambos os lados. Nos anos 1970 não desejávamos apenas mudar a sociedade, mas virá-la de cabeça para baixo, recriá-la. Vivíamos a utopia de que podíamos mudar o mundo, amparados pela consciência de que fazíamos parte de uma história de transformações, como a Revolução Russa, a Guerra Civil Espanhola, a Revolução Chinesa. A juventude de hoje vê a sociedade como uma instituição incrivelmente poderosa, na qual tenta ao menos fazer algumas emendas. Ela deseja um mundo mais justo, mas dentro da estrutura em que vive. O que eu sinto nela é a falta de fé na História — compara o diretor.
“Depois de maio” chega aos cinemas apenas dois anos depois de outro mergulho de Assayas nos anos 1970, com a minissérie para a TV “Carlos” (também lançada em salas de cinema numa versão compacta, com pouco mais de cinco horas), que recria a ascensão e queda do carismático terrorista venezuelano conhecido como Carlos, o Chacal. Descrito por uns como um idealista e por outros como um mero mercenário, Carlos é considerado um dos mais poderosos símbolos da inquietação política e social daquela época, eterna fonte de inspiração para o cinema.
— Os anos 1970 foram fascinantes, do ponto de vista cultural e social, que trouxe transformações profundas na sociedade Ocidental. Foi uma década em que as utopias se enraizaram e acreditava-se em energia coletiva. Isso tudo se foi — analisa Assayas. — O que fiz com “Depois de maio” foi usar elementos autobiográficos dentro da perspectiva daquela geração.


Jornal O Globo

Crônica do Dia - Da qualidade dos argumentos

Ninguém pode reclamar da ausência de debate público no Brasil. Qualquer assunto é fartamente discutido por aqui. Das predileções amorosas da cantora Daniela Mercury à ajuda do governo aos negócios de Eike Batista, discutimos de tudo um muito, com megafones e holofotes. Nem sempre, porém, o falatório prima pela racionalidade. Com frequência, dá-se o oposto. Os argumentos são abundantes em quantidade, mas uma negação em qualidade. O resultado são conclusões disparatadas, quase malucas, que não guardam nenhum nexo lógico com o que se postulava no início.
 
Para ilustrar o que foi dito acima, seguem-se três historinhas:
 
1. A PRIVATIZAÇÃO AO CONTRÁRIO
 
Entre os anos 1980 e os anos 1990, a bandeira da privatização ganhou força no Brasil. Engajadas, as autoridades encontraram um argumento infalível para convencer o povo. "Essas empresas estatais só dão prejuízo para o Estado", diziam. E logo brandiam a solução: "Vamos vendê-las e, assim, pouparemos dinheiro para investir em saúde e educação". Ora, quem poderia ser contra mais saúde e mais educação? Devidamente autorizadas pela opinião pública, as autoridades foram ao mercado e venderam o que puderam. Depois, vieram prestar as devidas contas para a mesma opinião pública. Deu-se, então, um diálogo mais ou menos assim:
- E então? - perguntou a opinião pública - Vocês venderam as empresas estatais como tínhamos combinado?
- Sim, vendemos - responderam as autoridades.
- Venderam as que davam prejuízo para os cofres públicos, poupando recursos para a saúde e para a educação?
- Não - as autoridades disseram, didaticamente. - Nós até que tentamos, mas no final só vendemos as que davam lucro. As que davam prejuízo ninguém quis comprar.
Não importa se você é contra ou a favor da privatização. Qualquer que seja sua opinião, você há de se lembrar muito bem. Aquele debate foi estridente, intenso, volumoso - e malfeito, muito malfeito, sustentado em premissas irrelevantes ou meramente oportunistas. Tanto que, até hoje, o país não tem clareza a respeito - e até hoje estamos aí nos batendo em torno de um assunto que tinha tudo para ter sido superado.
 
2. A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
 
Volta e meia, a grita volta. E, volta e meia, os dois lados também voltam com postulados sem sentido. "É preciso  reduzir a maioridade penal para 16 anos", dizem os que querem encarcerar garotos. "Os adolescentes de 16 a 18 anos são usados pelas quadrilhas para praticar assaltos justamente porque não podem ser presos." Ora, mas se a estratégia do crime for mesmo essa, tão logo seja reduzida a maioridade para 16 anos, as quadrilhas começarão a empregar garotos de 15, certo? E então? Teremos de reduzir um pouco mais a maioridade? Até 14 anos? Até 12? Por que não 8?
Não, o argumento não vale.
Os defensores do outro lado agridem igualmente a lógica. "Não podemos mandar os menores de 16 anos para a cadeia", afirmam. "A cadeia é uma escola do crime, e lá os meninos não se recuperarão nunca." Eis aqui outra alegação casuística, esperta. Quer dizer que se o sistema carcerário fosse minimamente decente eles concordariam com a redução da maioridade? Não concordariam. Portanto, o argumento também não procede.
Fora isso, se as cadeias brasileiras Jã? o horror que são, o problema não está na futura detenção de garotos de 17 anos, mas no atual confinamento de meninos de 18,19,20. E o que fazem os defensores dos adolescentes infratores para melhorar as cadeias? Será que são a favor de "prisões medievais" apenas para ter um argumento a mais contra a redução da maioridade penal?
 
3. A CAMPANHA CONTRA O DEPUTADO FELICIANO
 
Desde que o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) virou presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, as manifestações contra ele não cessam. Em parte, com razão. As declarações anteriores de Feliciano sobre homossexuais e sobre negros (segundo ele, amaldiçoados na Bíblia) mostram que ele não tem a formação necessária para exercer o cargo. De outra parte, os manifestantes também incorrem na estreiteza. "Quem negociou a ida de Feliciano para a comissão foi o governo, para ampliar a base política", afirmou com precisão Marina Silva, em entrevista a ÉPOCA na semana passada. Quem desprezou a causa dos direitos humanos não foi Feliciano (ou não foi só ele), mas o acordo pré-eleitoral que o colocou lá. Portanto, os verdadeiros responsáveis pela eleição de Feliciano deveriam ser chamados a sanar o constrangimento que criaram.
Disso, porém, o argumento se esquece.

Revista Época

Te Contei, não ? - A poesia africana de Língua Portuguesa: compromisso com a negritude.

 
 
 
 
 
 

Te Contei,não ? - Uma nova Alexandria

A Biblioteca Pública Digital da América reunirá documentos de museus, universidades e outras instituições americanas. É mais um passo rumo à universalização do acesso ao conhecimento

Amanda Polato

Crônica do Dia - Lieratra também é moda - Walcyr Carrasco



Atraído por um casaco fantástico na vitrine, entrei numa loja do Shopping Higienópolis, em São Paulo. O vendedor me explicou que era o único exemplar, por ser peça de desfile. Suspirei, sem esperanças, comparando mentalmente minha barriga com o provável tanquinho do modelo na passarela. Ele insistiu, tirou da vitrine. Não serviu, é claro. Enquanto esperava, observei a decoração da loja. Aqui e ali, havia alguns livros encadernados, antigos. Um deles era Three loves (Três amores), do escocês A.J. Cronin, lançado em 1957. Levei um choque. Nos anos 1960, Cronin era popularíssimo no Brasil. Hoje, ninguém mais fala nele. Três amores é um livro lindo. A protagonista, Lucy, vive seu primeiro amor com o marido, de cuja morte é indiretamente culpada. O segundo com o filho, a quem se dedica loucamente, para receber, em troca, ingratidão. Finalmente, vem a fé. Entra para um convento, para uma vida de adoração. Nunca li uma descrição tão minuciosa da vida entre as freiras, em que os assuntos religiosos se mesclam com necessidades triviais, como economizar sabonetes. Mais uma vez, a heroína se frustra. É um livro profundo, intenso. Surpreso por vê-lo transformado em objeto de decoração, ainda disse ao vendedor:

Crônica do Dia - Um Senado para rir e chorar - Ruth de Aquino

Nenhum programa de humor me provocou mais risos na semana passada que a história protagonizada por um senador e um garçom, ambos de Tocantins. O senador João Costa, do Partido da Pátria Livre (PPL), preparou um discurso de 14 páginas sobre o aborto. Ao chegar à tribuna, uma surpresa: o plenário estava vazio. Que fazer? Como falar para cadeiras, ainda mais em sessão transmitida pela TV Senado? Em vez de cancelar o discurso, ele decidiu sentar-se no lugar do presidente e recriou a realidade, encenando uma sessão patética.

Te Contei, não ? - O dever de reagir





Por ser menor de idade, o assassino de Victor Deppman vai ficar não mais que três anos internado. Isso tem de mudar

domingo, 28 de abril de 2013

Te Contei, não ? - Boletim à vista

Ao expor suas notas, um grupo de escolas instaura a cultura da cobrança e dá um passo em prol da excelência

Gabriele Jimenez

Desde que o governo federal criou um termômetro para aferir o nível do ensino em todas as 68.000 escolas públicas do país, há seis anos, um grupo expressivo delas aderiu a um comportamento muito comum entre os maus alunos: esconder a nota vermelha. E elas não têm sido poucas, como enfatiza com riqueza estatística a série histórica do Ideb, o índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Ao manterem à sombra o mau desempenho, os colégios que patinam na sala de aula dão a pais e alunos a ilusão de que estão em um lugar de alta excelência, fazendo-os cultivar uma visão distorcida da realidade. Isso ficou evidente em uma pesquisa do Ministério da Educação em que os pais foram instados a cravar uma nota para a qualidade da educação ofertada aos filhos. O resultado? Uma avaliação para lá de generosa – 8,6 numa escala de zero a 10 –, em contraste com a vida real, bem mais dura. A média do último Ideb não passou de 5. Recentemente, três estados (Rondônia, Goiás e Minas Gerais) e quase duas dezenas de municípios tomaram uma interessante iniciativa em prol da transparência. Por lei ou decreto, eles passaram a obrigar as escolas a afixar na entrada uma placa com a nota no Ideb bem visível, além da média da rede de ensino à qual pertencem – algo didático, para que todos entendam o seu verdadeiro patamar.
São experiências recentes, mas seus efeitos mais imediatos já sinalizam o ciclo virtuoso que pode se desencadear a partir da divulgação dos resultados. Entre as escolas que rastejam no Ideb, os professores despertaram para o indicador – e para a necessidade de se mexer para avançar nele. "Ao expormos a nota. assumimos perante a sociedade o compromisso de melhorar", diz Denise Gonçalves, diretora da escola estadual Pero Vaz de Caminha, de Belo Horizonte, que tirou 4,5 no Ideb – enquanto a média do estado bateu em 6. Os pais, por sua vez, têm agora como cobrar e monitorar o desempenho dessas escolas, base fundamental para almejar uma mudança de nível. Também os que disparam na média ganharam um incentivo para prosseguir na trilha da qualidade. No Ciep municipal Pablo Neruda, no Rio de Janeiro, o impacto da placa que alardeia um dos melhores Idebs do país (8,3) se fez sentir muito além dos muros escolares. "A fila de alunos interessados em estudar aqui só cresce", orgulha-se a diretora Maria Joselza Albuquerque.
O MEC até envia às escolas cartazes com a nota de cada uma, mas quase ninguém os exibia. Foi com a instituição de leis – uma ideia lançada em artigo do economista e articulista de Veja Gustavo Ioschpe – que o cenário começou a mudar. Tramita ainda na Câmara dos Deputados um projeto de lei que pode conferir à medida abrangência nacional. É um primeiro passo, mas não o único para fazer bom uso do Ideb. "O MEC deve orientar os educadores a ter o indicador como um ponto de partida para saber onde e como avançar", observa a especialista Maria Helena Guimarães. Com essa lição benfeita, quem sabe um dia não haverá mais razão para as escolas terem vergonha do boletim.
 
Revista Veja

Te Contei, não ? - Ele acredita na rapaziada

O romancista americano John Green tornou-se um fenômeno do segmento jovem com livros que prestam homenagem à inteligência dos adolescentes

Jerônimo Teixeira

Os personagens de John Green costumam ser adolescentes - e muito inteligentes. Colin Singleton, o herói de O Teorema Katherine (tradução de Renata Pettengill; Intrínseca; 304 páginas; 29,90 reais, ou 19,90 reais na versão digital), recém-lançado no Brasil, é um gênio matemático com estranhas fixações verbais: só namora meninas chamadas Katherine (a narrativa começa, aliás, quando o personagem leva um fora da décima nona namorada da série). A Culpa É das Estrelas, também publicado no Brasil pela Intrínseca, é narrado e protagonizado por Hazel Grace, uma adolescente que sofre ~ de câncer na tireoide e tem ~ adoração fervorosa pela obra de Peter Van Houten, escritor americano que publicou um único romance e se exilou na Holanda. Van Houten é fictício, mas a obra traz outras referências literárias, a começar pelo título, que cita Julio César, de Shakespeare. Pela voz de Hazel, Green fala em Vladimir, Estragon e Godot e não se sente obrigado a dizer em que peça teatral esses personagens figuram, e cita versos de A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock sem nomear o autor do poema. O escritor americano dá de barato que o leitor adolescente conhece esses clássicos, ou que, caso não os conheça, será esperto o bastante para buscar a informação nos livros ou naintemet (o leitor presumivelmente adulto desta resenha terá percebido que a mesma fé acaba de ser depositada sobre ele). Parece ter funcionado: A Culpa É das Estrelas vendeu cerca de 1 milhão de exemplares nos Estados Unidos. No Brasil, foram perto de 90000, e contando: nesta semana, a obra está em sexto lugar. na lista de mais vendidos de ficção em VEJA. Aos 35 anos, com cinco livros publicados, John Green é uma estrela do segmento chamado de young adult - a literatura para adolescentes e jovens, que, pelo menos antes do estouro do erotismo soft com Cinquenta Tons de Cinza, era o grande esteio da indústria editorial americana. "Não me oponho ao rótulo, mas talvez os leitores adultos de A Culpa É das Estrelas possam se incomodar com ele". diz Green. "Gosto de escrever para adolescentes e sobre adolescentes. É um privilégio falar com um leitor que está formando os valores que carregará para toda a vida."
A conversa de Green com adolescentes e "jovens adultos" (assim se traduz literalmente young adult) não se limita aos livros. Ao lado do irmão Hank, que tem um selo de música e um site voltado para temas ambientais e tecnológicos, o escritor mantém um canal no YouTube, o VlogBrothers, com mais de 1,1 milhão de seguidores. O número é tanto mais impressionante quando se considera a simplicidade da produção: sem efeitos ou firulas, os vídeos se limitam a mostrar os dois irmãos, altemadamente, falando para a câmera sobre temas contemporâneos - como o casamento gay, as recentes ameaças bélicas da Coreia do Norte ou o atentado a bomba na maratona de Boston. John mora em Indianápolis, no estado de Indiana, onde sua mulher é curadora de arte contemporânea em um museu local. Hank mora em outro estado, Montana. Os vídeos, portanto, têm a forma de uma esticada conversa entre dois irmãos. Pela intemet, o duo também levanta dinheiro para causas de caridade. E os dois irmãos ainda se arriscam no palco, com um show de variedades piadas, sessões de perguntas e respostas com a plateia, canções sobre física e sobre Harry Potter - que já foi apresentado no venerando Camegie Hall, em Nova York. Os empreendimentos da dupIa na internet ganharam aprovação oficial: a convite do Google, John Green participou, junto com outras personalidades da internet, de uma videoconferência com Barack Obama. E pediu ao presidente que resolvesse uma disputa familiar: que nome dar a sua filha, que deve nascer em junho - Alice ou Eleanor? O presidente, muito político, esquivou-se da escolha.
Embora Green diga que não é de forma alguma o líder de um culto ("cultos pedem dinheiro dos seus membros"), os seguidores do VlogBrothers compartilham uma certa identidade de grupo. Definem-se como "nerdfighters". "O nerdfighter é o nerd que celebra a sua 'nerdidade"', define Green. Ou seja, é o nerd que, longe de se envergonhar de sua coleção de livros de ficção científica e de bonecos de super-heróis, tem orgulho de se dedicar a essas coisas. As obras do autor, porém, não se enquadram exatamente no padrão da turma. Sim, O Teorema Karherine traz um apêndice, escrito por um matemático, com gráficos e equações que pretendem explicar relações amorosas tal seria o modo nerd de compreender o amor (ou, antes, de superar uma desilusão amorosa). Mas as histórias de Green não se passam em planetas distantes ou em reinos medievais mitológicos. Seja no registro humorístico de O Teorema Katherine ou no melancólico de A Culpa É das Estrelas, a literatura de Green é miudamente realista e firmemente ancorada nos dias de hoje. Seus adolescentes conversam por mensagens de celular e jogam videogames. O espírito literário de Hazel não tem muito a ver com a "nerdidade". "Eu diria que a maioria dos que acompanham meu blog em vídeo não leu meus livros, e a maioria dos que leram meus livros não me segue na internet", especula Green.
Um ponto, porém, une os personagens de Green aos nerds: a propensão à atividade intelectual. Hazel e seu namorado, Augustus Waters, esbanjam cultura e inteligência em seus diálogos. Talvez até demais: em alguns momentos, a naturalidade se esvai, e parece que os personagens não estão conversando, mas lendo um roteiro. Ambos vitimados pelo câncer - ela tem capacidade respiratória comprometida e não pode sair de casa sem o tanque de oxigênio; ele perdeu uma perna para um osteossarcoma -, falam de seus dramas com ironia e desassombro, e sem nenhuma concessão a chavões como "superação". Green aceita a classificação de young adult, mas recusa vigorosamente - e com razão - o pejorativo rótulo sick lit (literatura de doença - veja o texto ao lado e a entrevista do autor na página anterior). O autor estudou em uma universidade religiosa e chegou a considerar a possibilidade de ser ministro episcopal. A vocação religiosa não vingou, mas, mesmo nos genericamente céticos Hazel e Augustus, há uma certa chama espiritual, uma inquirição sobre ordem e sentido em um mundo de sofrimento. "Não sei se acredito nessa ordem", diz John Green. "Mas acredito na esperança de que ela exista."
"Não quero ser mais famoso"

Autor best-seller e estrela de um canal do YouTube com 1,1 milhão de seguidores, o americano John Green, 35 anos, falou a VEJA sobre a inteligência dos adolescentes - especialmente dos que o seguem na internet.

Adolescentes são mais inteligentes do que supomos? Adolescentes são, sim, mais inteligentes do que os adultos pensam - apenas não agem de forma inteligente quando estão na nossa presença. Eles se sentem desconfortáveis, intimidados perto de nós, e por isso raramente temos a oportunidade de ver o melhor deles. Felizmente, eu tenho essa oportunidade. Vejo os comentários que eles deixam no blog, e eles se mostram muito interessados e inteligentes. Não todos, é claro, mas a maioria deles.

O que o senhor pensa do termo sick lit (literatura de doença], com o qual se tem caracterizado A Culpa É das Estrelas? Parece até que fui eu que inventei o romance sobre doenças. E A Montanha Mágica, de Thomas Mann, ou O Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Márquez? Os jornais têm de criar essas classificações. Eu não quis retratar a doença como sendo transcendente, nem passar a mensagem de que ela nos ensina a sermos gratos por cada dia - nenhuma besteira dessas. Apenas tentei escrever uma história honesta sobre o câncer.

O senhor escreve romances de sucesso e, em parceria com seu irmão Hank, faz vídeos na internet e apresentações em teatros. Pensa em ex· pandir suas atividades para a televi· são, por exemplo? Gosto de muitas séries televisivas, como The Walking Dead, mas não gosto de televisão em geral. E, para ser completamente honesto: não quero ser mais famoso. Não tenho desejo nenhum de ser mais reconhecido na rua.
O romantismo das doenças

Livros sobre adolescentes.afetados por doenças terminais, depressão, crises psiquiátricas e eventuais tendências suicidas contam-se às dezenas nos Estados Unidos e na Inglaterra. Depois dos vampiros da série Crepúsculo, esta parece ser a nova tendência do mercado de literatura juvenil - tendência que ainda não se verificou no Brasil: afora A Culpa É das Estrelas, de John Green, apenas As Vantagens de Ser Invisível (Rocco), de Stephen Chbosky, sobre um adolescente cujo melhor amigo cometeu suicídio, tem frequentado a lista de mais vendidos de VEJA. O termo que se popularizou para nomear essa vertente tem algo de derrisório: sick lit (literatura de doença) ecoa chick lit (literatura para garotas), gênero bobinho cujo grande expoente foi O Diário de Bridget Jones, de Helen Fielding. John Green relativiza o termo lembrando que doença e sofrimento sempre foram temas da grande literatura - eis aí A Morte de Ivan IIitch, de Tolstoi, ou, para citar só um exemplo recente da literatura adulta, Homem Comum, de Philip Roth. Há críticos, porém, que acusam os romances "doentios" voltados especificamente para adolescentes de crimes os mais variados, da trivialização à glamourização da doença e até do suicídio. Tal foi o tom de um artigo inacreditavelmente moralista publicado pelo jornal inglês Daily Mail em janeiro.
A glamourização da doença, porém, também não é novidade: o século XIX praticamente fez da tuberculose uma heroína romântica, como se atesta na agonia da cortesã de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Ainda que o escritor que se dirige a mentes jovens e impressionáveis talvez tenha de exercer certa prudência, o fato é que muitos adolescentes gostam de temas mórbidos em geral, e em particular do apelo romântico associado à morte de um jovem apaixonado. Embora não se possa negar uma forte veia sentimental em A Culpa É das Estrelas - e o próprio autor admite que chorou ao escrever todos os seus livros, com exceção do bem-humorado O Teorema Katherine -, ela está dosada no limite certo para jamais descambar no dramalhão. Não há sensacionalismo trivial, nem se idealiza o câncer que atormenta os dois protagonistas. Hazel, a narradora, é brutalmente realista no modo como fala do próprio sofrimento. Não oferece consolo fácil. Eis mais uma qualidade que pode conquistar o jovem leitor: este é um livro que não tenta enganá-Io.

Revista Veja

Te Contei, não ? - Nazistas atacam em Niterói

NAZISTAS ATACAM EM NITERÓI - BANDO SURRA NORDESTINO

Homens serão indiciados por agressão a nordestino e apologia ao nazimo
 
 
Paulo Virgilio
Repórter da Agência Brasil

Rio de Janeiro - A polícia do Rio vai indiciar cinco homens de um grupo de sete pessoas detido na manhã de hoje (27) na Praça Araribóia, no centro de Niterói, na região metropolitana do Rio, sob a acusação de agredirem um homem nordestino e fazer apologia ao nazismo. Os outros dois integrantes do grupo são uma jovem, que seria apenas namorada de um dos integrantes e foi liberada, e um menor de idade, que foi apreendido.

Detidos por guardas municipais de Niterói, após terem sido denunciados por populares que testemunharam a agressão física, os sete foram levados para a 77ª Delegacia Policial, no bairro de Icaraí. De acordo com a delegada Helen Sardenberg, os cinco homens vão responder por crimes de intolerância racial, propaganda nazista, lesão corporal, formação de quadrilha e corrupção de menores, todos inafiançáveis. A vítima, identificada como Sirlei dos Santos, de 33 anos, prestou depoimento na delegacia.

Segundo a polícia, Davi Ribeiro Morais, de 39 anos, Carlos Luiz Bastos Neto, de 33, Thiago Borges Pita, de 28, Caio Souza Prado, de 23 e Philipe Ferreira Ferro Lima, de 21, vestiam camisas com referências a um grupo neonazista e exibiam no corpo tatuagens da cruz suástica. No carro onde o grupo estava também foram encontrados panfletos e outros materiais de propaganda nazista.

Edição: Fábio Massalli

Artigo de Opinião - Estado Omisso - Frei Betto

Rio -  “O problema do menor é o maior”, já advertia o filósofo Carlito Maia. Se jovens com menos de 18 anos roubam e matam é porque, como constatam as investigações policiais, são manipulados por adultos que conhecem bem a diferença entre prisão de quem tem mais de 18 e de quem tem menos.
Pesquisa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos verificou que, entre 53 países, 42 adotam a maioridade penal acima de 18 anos. Porém, suponhamos que seja aprovada a redução da maioridade penal para 16 anos. Os bandidos adultos passarão a induzir ao crime jovens de 15 e 14 anos.
Sou contra a redução da maioridade penal por entender que não vai resolver nem diminuir a escalada da violência. A responsabilidade é do poder público, que sempre investe nos efeitos, e não nas causas.
Hoje, 19,2 milhões de brasileiros (10% de nossa população) não têm qualquer escolaridade ou frequentaram a escola menos de um ano. Não sabem ler nem escrever 12,9 milhões de brasileiros com mais de 7 anos de idade. E 20,4% da população acima de 15 anos é de analfabetos funcionais — assinam o nome, mas são incapazes de redigir uma carta ou interpretar um texto.
Na população entre 15 e 64 anos, em cada três brasileiros, apenas um consegue interpretar um texto e fazer operações aritméticas elementares. Em 2011, 22,6% das crianças de 4 a 5 anos estavam fora da escola.
Este o dado mais alarmante: há 27,3 milhões de jovens brasileiros entre 18 e 25 anos de idade. Desse contingente, 5,3 milhões se encontram fora da escola e sem trabalho. De que vivem esses 5,3 milhões de jovens do segmento do ‘nem nem’ (nem escola, nem emprego)? Muitos, do crime. Crime maior, entretanto, é o Estado não assegurar a todos os brasileiros educação de qualidade, em tempo integral.


Frei Betto é escritor, autor de ‘Diário de Fernando — nos cárceres da ditadura militar brasileira’ 

Te Contei, não ? - Museu do Negro vaiser reabero em Igreja na Saara

Acervo recuperado ficará exposto em local que servia como rota de fuga para escravos

POR Francisco Edson Alves
 
Rio -  No próximo dia 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura, o Rio vai ganhar um reforço de peso na cultura e religiosidade afro: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, no Centro, vai reabrir o Museu do Negro.
Quase todo destruído por um incêndio em 1967, o espaço está sendo revitalizado e ampliado por voluntários, estudantes de História da Universidade Estácio de Sá e pela Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata. “Como Fênix (pássaro da mitologia grega), estamos renascendo mais uma vez das cinzas”, diz, orgulhoso, o provedor da igreja, Carlos Alberto Guimarães da Silva, 72 anos.
 
 
O sacristão Anderson Ribeiro, que teve a ideia de reabrir o local, destruído num incêndio em 1967, para visitação pública. A igreja era ponto de encontro de abolicionistas | Foto: Paulo Alvadia / Agência O Dia
O sacristão Anderson Ribeiro, que teve a ideia de reabrir o local, destruído num incêndio em 1967, para visitação pública. A igreja era ponto de encontro de abolicionistas | Foto: Paulo Alvadia / Agência O Dia
 
 
O mutirão para reabrir o museu começou em janeiro, de acordo com Gracy Mary Moreira, curadora do museu. Ela é bisneta da Tia Ciata, como era conhecida Hilária Batista de Almeida, cozinheira e mãe de santo famosa, tida como uma das precursoras do samba carioca. Ciata nasceu em Salvador, em 1854, e morreu no Rio em 1924.
“ O público terá muitas surpresas. Resgatamos e recebemos doações de peças históricas, relíquias de passagens da História que muitos historiadores ignoram. Desde os primeiros movimentos pela liberdade à devoção pelos nossos santos e heróis negros”, conta Gracy, emocionada.
“Estava tudo encaixotado e jogado pelo chão. Tínhamos que recuperar essas maravilhas”, comenta o sacristão Anderson Ribeiro, 33, que teve a ideia de recuperar o museu.
Gracy ressalta que revitalização completa do museu, cujas paredes ainda precisam de restauração, se dará até o final do ano. “Deveremos montar um café literário. Temos centenas de obras raríssimas, como escritos de 1572 de Luiz Vaz de Camões, considerado o maior poeta da língua portuguesa”.
No Museu do Negro, também haverá exposições, saraus e videoteca.
 
Presente que repete o passado
 
O museu fica no segundo andar da igreja, de 1701, num corredor que servia de rota de fuga para os escravos, que iam aos cultos assistidos por negros alforriados. Quando capatazes chegavam, eles fugiam por ali. “Como acontece hoje, nos becos e vielas do Saara, a poucos metros daqui. Agora, os ambulantes é que fogem do ‘rapa’ (guardas)”, compara o padre José Carlos dos Passos. 
 
Jornal O Dia

Crônica do Dia - Lei Áurea - Fernanda Torres

22 abril 2013 |

      
Minha sogra, Irina Popov, é ucraniana. Os Popov se deixaram capturar pelos nazistas porque consideraram Hitler uma opção melhor do que Stalin. Bons tempos. Depois de amargar dez anos entre campos de trabalho e de refugiados, uma parte do grupo veio parar na Guanabara, a outra permaneceu na antiga União Soviética.
Evguéniy é um Popov de Kriviy Rig, na Ucrânia. Engenheiro aposentado, tem uma namorada, Lena, com quem divide uma datcha, um pedaço de terra, no quintal da casa dela. Lá, Génia planta as batatas que ambos comem no inverno. Em 1986, quando em visita aos parentes daqui, passeou pelos corredores dos supermercados exclamando ohs! e ahs! de fascinação.
Não entendia o porquê das diferentes marcas. Leite, para Génia, era leite. Carne era carne. Que mistério separava um Glória de um Nestlé, uma Becel de uma Doriana?
A sobrinha, Iratchka, enfrentou o tórrido verão do último dezembro carioca. Ginecologista em uma clínica de ultrassom em Lviv, no lado ocidental da Ucrânia, assistiu à queima de fogos em Copacabana e visitou Paraty.
Na despedida, refletindo sobre o que levaria dos trópicos, comentou saudosa: “Jamais pensei que um dia eu fosse experimentar o conforto de viver cercada de escravos!”.
Foi embora, deixando para trás a vergonha e a consciência da desigualdade social. A Revolução de 1917 socializou a pobreza, mas acabou com a servidão.
As relações entre patrões e empregados no Brasil seguem herdeiras de Casa Grande & Senzala, com senhor e servo dividindo o mesmo espaço comum. Nesse melê, as leis trabalhistas tendem a se tornar irrelevantes, as cargas horárias difíceis de ser mensuradas, bem como o direito de ir e vir. O que custa fazer um suco? Pegar uma roupa no chão? Como as mães faziam, antes das feministas e da competição do mercado.
A chegada dos filhos e o aumento da carga de trabalho transformaram a minha economia pessoal em uma microempresa privada. Hoje, sustento uma máquina que me permite representar e escrever sem que a retaguarda desmorone. Por entender que o pessoal de casa faz parte do meu processo produtivo, tentei aplicar nos contratos domésticos as regras salariais do setor empresarial. Sempre paguei FGTS, seguro-saúde, vale-transporte e hora extra.
Mas a pressão da vida adulta já me fez cometer abusos. Pode-se alegar que o Brasil só será um país desenvolvido no dia em que cada um lavar a sua louça, dobrar os lençóis e contar com uma ajuda bissexta na faxina.
Quando o transporte, a educação e a segurança pública, as creches e as lavanderias de esquina se tornarem uma realidade corriqueira. Por enquanto, o serviço doméstico ainda emprega um naco relevante da mão de obra sem formação superior do país.
O esforço de regular e definir os direitos desses prestadores de serviço é mais que bem-vindo. Sou abolicionista, pelo menos gosto de me ver assim, mas necessito da ajuda de terceiros para tocar o barco.
Uma legislação que profissionalize o legado maldito da escravidão já alivia a culpa da despedida da prima ucraniana. Mas não resolve a injustiça. Basta rever o discurso de Marlon Brando no clássico Queimada.
 
 
Revista Veja

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Te Contei, não ? - África

Imagens de Cláudio Rafael
 
Introdução
 
 
A inclusão do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos de ensino (público) brasileiro, é uma amostra de amadurecimento político do Estado e, por consequência, da sociedade, ao reconhecer oficialmente aquilo que já faz parte de uma realidade patente no passado e presente do Brasil. Quando o padre António Vieira (1608-1697) afirmou que “o Brasil tem a alma em África e o corpo na América”, capturou o significado, desde há séculos, do quotidiano da cultura brasileira, cujo imaginário está impregnado de África. Não foi por acaso que Vinícius de Moraes indagou as raízes africanas da Negritude (que podemos definir como a soma de todos os valores africanos), e se embrenhou nos ritos mágicos e de ancestralidade do Candomblé.
Porém, o contrário também sucede: quem como eu nasceu em Angola, teve  sempre por perto o Brasil na música, poesia, literatura, tudo o que o vento trazia do outro lado do mar. “Para o angolano o samba foi e é sempre seu e não surpreende que o Chico Buarque nos cante morena de Angola (ou será mulata?), que traz o chocalho amarrado na canela … na Catumbela.”1 
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A afirmação de que Angola e o Brasil partilham uma história de irmandade não surge por sentimentalismo: as marcas estão em todo o lado, cá e lá, foram e voltaram, tornando-se mais do que histórias dos mais-velhos. São registos históricos, remontam ao tempo em que o Capitão Diogo Cão, transmontano dos duros, chega ao Reino do Congo no longínquo ano de 1485.
Não é por acaso que o poeta e antropólogo angolano Ruy Duarte de Carvalho se aventurou de balsa, de carro e a pé, pelos sertões afora, ao longo do Rio São Francisco, no Brasil, procurando o filão de ouro das paisagens de João Guimarães Rosa. Sobre o muito que liga Angola ao Brasil, inquiriu sobre quem teriam sido essas tropas, compostas maioritariamente por índios e negros, que acompanharam o ibérico-brasileiro Salvador Correia de Sá na missão de recuperar Luanda e Benguela dos holandeses, acabadinhos de ser expulsos do Brasil (1654). Ficaram os tais índios e negros em Angola, montando casa e família? No processo, Ruy Duarte se lembra dos que vieram mais tarde, os famosos colonos de Pernambuco que se estabeleceram no sul de Angola, não mencionando os escravos e degredados embarcados de um lado para o outro. No embalo, Ruy Duarte questiona o que andou fazendo o famoso explorador da África negra, Sir Richard Burton, pelo rio São Francisco, quando todos o sabiam obcecado pela origem do rio Nilo no coração de África. Queria Ruy Duarte de Carvalho perceber melhor o Brasil para melhor perceber Angola contemporânea e cada etapa o relegou de volta ao passado, daí a Portugal dois passos, daí aos holandeses três passos, ao mundo global, passado e presente, o Brasil, de novo Angola, tudo isso num vaivém de balsas.
Asseverar mais o quê? - Que a história do Brasil passa por África, Angola, por Portugal e pelo resto da Europa e do mundo.
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História versus Identidade 
Quem se debruça sobre a história da cultura afro-brasileira traz inevitavelmente na rede o espólio de uma descendência africana, a qual aponta para esquemas históricos complexos a nível local e internacional, impulsionados por confrontos sociopolíticos e económicos, lutas por hegemonia das principais potências europeias naquilo que foi a expansão colonial no decorrer da segunda metade do último milénio. Dito isto (uma boca cheia de palavras), os que moldaram o barro da cultura afro-brasileira, por outras palavras, os sujeitos dessa história, não foram apenas os negros, também os índios e povos de outras origens que, “submetidos e colonizados, foram rebeldes e construtores de um diálogo e de uma interacção que explicam a multiplicidade e a unidade do Brasil de hoje.”2 
A árdua tarefa de investigar, coleccionar, categorizar, debater e promover o conhecimento da cultura afro-brasileira está bem entregue a todos aqueles que, por um sentido de justiça e de verdade, lutam por uma mudança nas versões da história que conotam a dádiva da afro–descendência a preceitos ideológicos de racismo, exclusão socioeconómica e invisibilidade política, por tal, separando, esvaziando, algemando ou domesticando o vasto leque de relações sociais, para impor ideologias dominantes. No entanto, esses mesmos pensadores concordarão que não se pode entender o Brasil sem entender África, especialmente desde o momento mais ou menos exacto da história que Ruy Duarte de Carvalho denomina de “período inaugural no quadro da expansão ocidental em que tanto o Brasil, como Angola (e tantos outros países de um lado e outro do oceano Atlântico) emergem como terra incógnita para as principais potências do ocidente que as medem, avaliam e decifram”3, pondo por escrito preto no branco, o processo de pacificação (militar) e ordenamento administrativo e territorial para melhor dominar.
Diálogo_01 Vienna/Cabinda, Fotografia Digital impressa em Foam, 250x100, 2010Diálogo_01 Vienna/Cabinda, Fotografia Digital impressa em Foam, 250x100, 2010
 
Antes dos países das Américas e de África adquirirem o estatuto de identidades nacionais e políticas modernas e autónomas, os sujeitos da História sempre tiveram que lidar com a tensão inerente ao atributo de serem dominados, tendo que rectificar e recontar as inexactidões criadas à volta da vontade imperativa subjacente de remeter o Outro para as periferias da História, do progresso e da civilização. As falsidades contidas nessa história nem sempre saltam à vista, mesmo com lupa. A história é um sobrepor aleatório e reveste-se de argumentos enganadores. É somente no significado profundo de determinados actos e nos seus desenlaces que a verdade se revela, porque mexe com a consciência humana. Por vezes, o caminho da história segue outro curso. Versões alternativas são transmitidas verbalmente através da música, literatura, pela arte e cultura. Mas há história (como se diz por aí) e estória (como se diz em Angola), há o significado que se expressa e se transmite tanto através da escrita, como verbalmente através da cultura preservada por gerações na memória colectiva. Fora da narrativa oficial documentada, a história (ou a estória) recorre automaticamente ao mito para fácil memorização e preservação. Mitos são metáforas sobre a vida resguardados por cada povo que assim procura dar conteúdo e resolução aos mais terríveis dilemas com que o ser humano se confronta. Cada mito tem o seu herói lutando pela liberdade, pela dignidade, enfim, por uma vida melhor. É nestes dois extremos que a verdade se manifesta, por um lado, na memória colectiva verbal dos seus actores (activos e passivos) e, por outro, no discurso dominante dos Obreiros da História.
Nesta perspectiva, centro-me em alguns aspectos da história comum iniciada pela expansão ocidental. Pretendo abordar o sujeito da história na sua relação com identidade e, por derivação, cultura e linguagem. Pretendo expor alguns agravos que persistem, e tratar um capítulo importante da história africana, nomeadamente a escravatura. Nessa ordem de ideias, serão abordados aspectos específicos que tanto nos podem levar a África, como ao Brasil, a Portugal ou Angola, o passado e o presente.
 
Identidade africana no espaço da lusofonia
No limiar do século XXI as noções de espaço e território vêm-se diluindo cada vez mais e as fronteiras reais vão deixando de corresponder àquilo que as vozes representantes de Estados, políticos e elites formadoras da opinião pública gostariam de enclausurar como expressões de identidade política geograficamente predeterminadas. Ultimamente, a antiga potência colonial, a dita que deu mundos ao mundo, tem vindo a promover o termo Lusofonia, que atribui à língua uma mundividência inerente, onde se inserem todos os países de expressão portuguesa, unindo as duas margens do oceano Atlântico e alcançando o Índico, criando uma noção de delimitação imaginária geográfica de poder e de identidade, tão artificial que tem sido duramente criticada e descrita como um novo mito do “ser português”.
Ora vejamos, “supõe-se que o português em contacto com a africana escrava, se adoçasse, mais do que já é na sua versão caseira, para se tornar esse ritmo aberto e sensual, indolente, do português do Brasil ou o tom nostálgico de Cabo Verde.”4 
No contexto da Lusofonia, a narrativa de uma certa história da colonização portuguesa protela um imaginário imperial, assente numa ideia de excepção do colonialismo português, no qual este na sua condição periférica de fraqueza perante as restantes potências europeias foi mais o colonizador colonizado, figura ambígua, intermediária e crioulizada, propensa em aproximar os povos e dentro da qual as suas acções, mais do que pela cruz ou a espada, se centraram no sexo5. Invocando o seu carácter inerente de miscigenação, as relações entre portugueses e as diferentes comunidades com quem conviveram, pressupõem-se, no contexto da Lusofonia, terem sido dirimidas de conflito e tensões. Fortes foram as marcas deixadas por uma convivência histórica de 500 anos em que houve obviamente miscegenação e mútuo contágio cultural, sobretudo pela implantação da língua portuguesa (com toda a espécie de transformações) e tantas outras questões, sendo bem patente a diferenciação entre o mundo lusófono e o hispânico. Ninguém consegue explicar o que é, todos o sentem em maior ou menor grau e o admitem em situações livres, despolitizadas e fraternas mas, publicamente, as tensões e as feridas ainda não estão completamente saradas (alguma vez estarão?) e vêm ao de cima na palavra Lusofonia6.
Diálogo_03 Luanda/Vienna, Fotografia Digital impressa em Foam, 160x120, 2010Diálogo_03 Luanda/Vienna, Fotografia Digital impressa em Foam, 160x120, 2010
Origens do Fado
Na antiga metrópole, o Fado, consumido com um produto tipicamente português, tem-se vindo a notabilizar - tal como o vinho do Porto - em termos de padrão nacional. O Fado é avidamente apreciado por turistas, mas também por portugueses. Diz-se que o Fado é a expressão da alma portuguesa, a saudade, a dor da nostalgia, a quinta-essência da típica melancolia. Porém, poucos sabem ou comentam o facto de que este Fado foi completamente destituído das suas origens afro-brasileiras (ao contrário do Brasil, em que o Samba, apesar de ser “branco na poesia, é negro demais no coração”, diz o saudoso poeta Vinicius de Moraes.)
No século XVIII, segundo relatos da época, o Lundum, um estilo de dança e canto oriundo do Brasil, foi introduzido em Portugal por escravos de ‘brasileiros’7 , marujos e crioulos. Este estilo de dança, com elementos da Fofa portuguesa e do Fandango de Castela, mas dançando-se em roda típica dos africanos e genericamente denominada por portugueses como ‘batuques’, era apontado, a meados do século XVIII, como a dança nacional, de tal forma estava incorporada no gosto português. Se a este estilo de dança se associavam elementos da coreografia geral do Fandango de Castela (no sapateado e castanholas), eram mantidos os elementos principais das danças populares brasileiras caracterizadas pelas umbigadas e maneio dos quadris dos dançarinos, típicos do Lundum, considerado pelos portugueses a dança dos brancos e pardos do Brasil. Ao imputar a dança como sendo oriunda de brancos e pardos, já o Lundum se afastava das suas raízes africanas. No raiar do século XIX quando uma nova dança é baptizada no Rio de Janeiro com o nome de Fado (que fundira o Lundum com a Fofa), gradualmente se vão retirando os elementos de dança afro-brasileiros, conferindo-se maior ênfase aos intervalos para cantos de pensamento poético. A partir de 1840, a antiga criação de negros e mulatos brasileiros passa definitivamente para os brancos portugueses, numa ascensão rápida que levaria o Fado para a sua versão de cantiga de poesia em tascas da Madragoa, tabernas da Alfama e da Mouraria e zonas de meretrício, frequentada pelas camadas mais baixas da sociedade para a ribalta de salões de concerto da burguesia8 , até se tornar padrão da identidade portuguesa (branca).
Este exemplo de ‘herança comum’, uma língua, um passado, foi metamorfoseado e o ‘comum’ apagado dos rastos da herança africana, por conveniência histórica, pois, no contexto da abolição da escravatura e, mais tarde, da Conferência de Berlim, era necessário Portugal afirmar-se como centro e origem de si mesmo, tracejando os contornos da negação da sua própria identidade.
Diálogo_04 Roma/Luanda, Fotografia Digital impressa em Foam, 160x120, 2010Diálogo_04 Roma/Luanda, Fotografia Digital impressa em Foam, 160x120, 2010
O comércio atlântico de escravos
Qualquer abordagem à Histórica africana tem de contemplar o  tráfico atlântico de escravos, pelo seu impacto negativo no desenvolvimento do continente, mas acima de tudo pela sua conotação moral e emocional, revertendo em barbárie a trajectória imperialista europeia. Embora historiadores reconheçam as dificuldades em oferecer um dado exacto sobre o número de africanos transportados e vendidos nas Américas, existem estimativas moderadas com base em documentos e cálculos demográficos que apontam para onze a doze milhões o número de escravos comercializados entre 1450 e 1900, com uma média anual de 3 milhões entre 1700 e 1900 (embora há quem aponte para acima de trinta milhões o número total de escravos comercializados ao longo de trezentos anos.) No século XVI, no auge da produção de açúcar no Brasil, 80 por cento dos escravos comercializados tinham como destino esse país. Nos séculos posteriores, apenas 38 por cento iam para o Brasil, 42 por cento destinavam-se às Caraíbas e 5 por cento à América do Norte9.  No que se refere ao impacto do tráfico atlântico de escravos, alguns historiadores calculam como cem milhões o número de africanos abrangidos pelo impacto do comércio esclavagista, tendo em conta o continente na sua globalidade e as consequências sociopolíticas e económicas.
Diálogo_06 Luanda/Singapura, Fotografia Digital impressa em Foam,133x120, 2010Diálogo_06 Luanda/Singapura, Fotografia Digital impressa em Foam,133x120, 2010
 
A África subsaariana, antes do início do tráfico de escravos, sobrevivia relativamente isolada do resto do mundo em condições geofísicas difíceis e mercados limitados por dificuldades de transporte, factores que restringiram a inovação tecnológica e, subsequentemente, obrigaram a população à auto-suficiência. Para tal, foram criados fundamentos sociopolíticos e económicos que ofereciam o máximo de possibilidades de sobrevivência da população. Este cenário foi severamente alterado com o evento da escravatura. Se o continente tinha, antes do século XV, um atraso tecnológico relativo, o fosso alargou-se e o seu desenvolvimento foi paralisado, retardando inexoravelmente o desenvolvimento de um mercado de matérias-primas interno. Embora os aspectos demográficos sejam difíceis de calcular, documentos comprovam o despovoamento de Angola devido ao tráfico esclavagista, uma situação agravada pela epidemia de varíola documentada em 1625-8, doença que, tal como a sífilis, tuberculose e pneumonia, foi introduzida em África pelos europeus. Estas epidemias acompanhavam a escassez alimentar, derivada do despovoamento, afectando negativamente o crescimento natural da população. Um recenseamento da população nos territórios portugueses de Angola, efectuado em 1777-8, indicava a existência do dobro do número de mulheres adultas em relação aos homens, devido à vasta maioria destes terem sido vendidos como escravos.
As consequências do tráfico foram de tal ordem que inibiram o crescimento demográfico do continente durante duzentos anos, paralisaram o seu progresso socioeconómico, estimularam o aparecimento de novas formas de organização sociopolítica, amplificando a prática da escravatura dentro do continente, brutalizando o processo, ao intensificar os níveis de sofrimento humano. Na leitura deste fenómeno deparamo-nos frequentemente com o enfatizar de que o comércio de escravos nunca poderia ter tido lugar sem a conivência (lucrativa) dos chefes africanos para quem a escravatura era já prática corrente. Sendo esta uma circunstância permeada da sua verdade, anote-se que, na cultura africana, os escravos eram maioritariamente elementos de tribos derrotadas durante as guerras, ou indivíduos que tinham infringido as regras do costume local (crimes de adultério, assassínio, furto, etc.). Em Angola, os ‘filhos’ do soba (chefe tradicional) eram tanto os seus filhos naturais, como os súbditos e os escravos10.  A aquisição da liberdade era possibilitada por acções de mérito, não sendo impedida a mobilidade social ou económica. O fundador do reino do Mali, Sundjata, que governou entre 1230 e 1255, foi um escravo da corte real do império do Gana, conquistou vastas áreas de território do Reino Soninque do Gana, centro de comercialização do ouro, criando os alicerces para a criação do estado de Mali, ao se tornar um dos reis mais poderosos da época11.
Se o comércio dependia da vontade dos africanos (chefes ou intermediários) em vender escravos, o sistema de obtenção de escravos (prisioneiros de guerras ou cativos de incursões a tribos vizinhos, criminosos ou os mais vulneráveis da comunidade), encontrou a sua maior resistência por parte de grupos sócio e politicamente não organizados, em forma de Estado. Interessante notar que, em português, estas comunidades sem poder central, ou chefes, são denominados de “primitivos”, cuja conotação é pejorativa, enquanto que em inglês tais estados se classificam de stateless e o seu significado implica que os membros destas sociedades têm um sentido amplo de mobilidade territorial e diferenciação social, sendo frequentemente sociedades igualitárias. Este tipo de comunidade raramente se interessou pelo comércio de escravos, mas foi sempre vítima de incursões de tribos vizinhas, intermediários e negreiros. Segundo documentação, eram os indivíduos provenientes deste tipo de comunidades quem mais resistiam ao embarque, tentando o suicídio antes ou a sublevação durante o trajecto marítimo ou, uma vez chegados ao destino final, eram quem liderava as revoltas de escravos12.
Diálogo_05 Luanda/Vienna, Fotografia Digital impressa em Foam,160x120, 2010Diálogo_05 Luanda/Vienna, Fotografia Digital impressa em Foam,160x120, 2010
 
Importa por fim referir as consequências sociopolíticas do comércio de escravos, que causou a desintegração de estados africanos, como por exemplo no actual Senegal, o estado Jolof e na Nigéria, o estado Yoruba. Em Angola, o Reino do Congo perdurou desde o primeiro encontro com os portugueses no século XV, com a adopção do cristianismo, hábitos e costumes europeus, troca de correspondência entre os diversos reis do Congo e as suas contrapartes da realeza portuguesa, consolidando uma forte aliança com o poder português que interveio em disputas locais, mas não sobreviveu ao século XVI. Em 1568, São Salvador, a capital do reino do Congo foi saqueada por uma tribo rival , sendo subsequentemente obliterado.
O comércio esclavagista causou também o aparecimento de novos estados de carácter mercantilista, como no caso de Angola no início do século XVI, quando se estabeleceu o reino Ngondo, inicialmente tentando não se envolver no comércio de escravos. Quando Nzinga Mbandi Ngola (1581-1663) ascende ao poder, negoceia com os portugueses um pacto de não agressão a troco da venda regular de escravos e a conversão ao Cristianismo, edificando um estado mercantilista que se tornou uma base importante de exportação de escravos no tráfico Atlântico.  Na literatura colonial e pós-colonial, a Rainha Nzinga torna-se uma heroína de resistência quando repudia o pacto com os portugueses, renunciando ao Cristianismo, quando estes iniciam trocas comerciais com uma tribo rival. As tropas da Rainha ajudam os holandeses na ocupação de Luanda entre 1641 e 1648. “Porém, em carta dirigida ao Governador de Luanda e datada de 1655, a Rainha Nzinga, ou Dona Ana Sousa, como consta no seu nome de baptismo, queixa-se das muitas falsas promessas do Rei português e das autoridades em Luanda, que a sujeitam a constantes ataques, obrigando-a a viver como foragida, sem a sua gente poder estabelecer e permitir o nascimento de crianças. Dona Ana Sousa acaba por assinar um tratado de paz com os portugueses em 1659, que lhe permitiu reinar com uma certa paz até à data da sua morte, a 17 de Dezembro de 1663, sendo a sua devoção à fé Cristã nos seus últimos de vida exemplar.”13  A corte de Ngondo é definitivamente destruída em 1671, sendo no século XIX não mais do que um lugar de degredo reservado para os piores criminosos da metrópole14.
Diálogo_07 Cannes/Luanda, Fotografia Digital impressa em Foam, 160x120, 2010Diálogo_07 Cannes/Luanda, Fotografia Digital impressa em Foam, 160x120, 2010
 
A sustentação do comércio de escravos era tentadora e a elite africana reinante aceitou com relutância a sua abolição. Em troca de escravos, os africanos recebiam fuzis e pólvora, tecidos, álcool, contas de vidro e tabaco, se os últimos artigos considerados de luxo conferiam prestígio a quem os possuísse, foram as armas de fabrico europeu o factor mais determinante para a manutenção do poder local, acirrando disputas e ódios étnicos e tribais no processo de surgimento de novas configurações políticas. Este é um quadro que persiste ainda nos dias de hoje em África. Recentes guerras em países africanos como a Libéria, Serra Leoa, Ruanda, Sul do Sudão, Angola, Congo Democrático, onde o acesso incessante a armamento sofisticado (europeu, americano, russo) a troco de recursos minerais não só prolongou os conflitos, como reajustou ou substituiu as configurações políticas locais, silenciando a multiplicidade de vozes imprescindíveis na formação de Estados-nação15.  No caso de Angola, de todo século XIX ao início do século XX, o território foi terra de conquista em que as armas desempenharam um papel preponderante. O orçamento colonial entre 1845 e 1941 foi devorado pela guerra ou a sua prevenção, uma situação similar à última fase do período colonial (1961-1974)16, tendo continuado no pós-independência durante a Guerra Civil (1975-2002). Embora a guerra e o conflito tenham sido dominantes, o continente representa muito mais do isso.
 
África, a sua identidade e futuro
Muitas grandes cidades de países africanos, tais como Dacar, Nairobi, Cartum, Luanda, Joanesburgo, Pretoria ou Dar Es Salaam, demonstram a junção do urbano com o rural, do passado com o presente num encontro contínuo de civilizações. Comecemos pelo passado: a UNESCO indicou nos anos noventa do século passado como Património Mundial da Humanidade, entre outros lugares, a Ilha de Moçambique e a mesquita de Djenne, no Mali, dois exemplos que ilustram a fusão e convivência lado a lado de várias civilizações. Na Ilha de Moçambique, que foi a primeira capital deste país a quem deu o nome, existe a ‘cidade de macuti’, feita a partir de construções típicas da cultura africana–suaíli, caracterizada por incrível engenhosidade criativa e saber artesanal, enquanto que a outra metade é a ‘cidade de pedra e cal’ onde se encontram as ruínas da antiga fortaleza, do antigo palácio do governador e das casas senhoriais da arquitectura colonial portuguesa. Na ilha, a oitocentos quilómetros da capital, a vida torna-se mais um chão do que um andar e diferentes realidades convivem na contraposição do pesado e do leve, do eterno com o efémero17.  O outro local é a mesquita de Djenne no Mali, a mais antiga mesquita da África subsaariana, construída no ano 800 A.C., que se tornaria mais tarde, no século XVI, o mais importante centro comercial do Mali por ser parte da rota fluvial das minas de ouro e salinas de Tombuctu. Embora o estilo arquitectónico seja de influência islâmica, a construção toda ela de barro e de materiais locais, reflecte a estética e saber africanos.
Diálogo_08 Rio de Janeiro/Luanda, Fotografia Digital impressa em Foam, 240x120, 2010Diálogo_08 Rio de Janeiro/Luanda, Fotografia Digital impressa em Foam, 240x120, 2010
 
Em muitas cidades africanas encontram-se, actualmente, mesquitas a par de igrejas cristãs, não sendo inusitado que nos passeios se encontrem à venda raízes de ervas, ossos, dentes de cobra e pozinhos castanhos num emblemático sincretismo religioso, porque o sagrado e o oculto são apreendidos pelos cinco sentidos. Simultaneamente, nessa mesma rua, os ecrãs gigantes da avenida principal publicitam as vantagens do último modelo de DVD, e um louco anónimo constrói dia a dia a sua moradia debaixo do ecrã, dispondo simetricamente garrafas vazias coloridas de bebidas, vinhos e licores estrangeiros, a maioria de marcas ocidentais, alheias ao frenesim das ruas, onde coexistem na arquitectura, no comércio, nos modelos político e socioeconómicos elementos da civilização árabe, ocidental, asiática, oriental.
Isto porque África absorve a vida, as gentes fervilham nas ruas galardoando a existência com a exuberância de sons, movimentos e ritmos, cores nos trajes, paladares e cheiros, retendo a tensão do confronto em cada encontro, os carregamentos de madeira tropical dos confins da Libéria onde não há estrada, o emaranhado de ruas lamacentas na zona pobre de Lagos na Nigéria, o Roque Santeiro em Luanda, mercado de vários quilómetros de amplitude, o caos das taxas de câmbio, o Wall Street de África onde se negoceia tudo e na eterna busca da fátua prosperidade, os africanos reinventam uma miríade de arranjos e de esquemas para sobreviver no continente, construir pontes para as antigas potências da Europa, a actual América do Norte, ou a China, como futura potência. Seja o que Deus quiser, o mundo inteiro sempre lhe exigiu o máximo de potencial humano de criatividade na sua sobrevivência diária, muitos africanos dominam uma média de cinco a seis línguas, entre locais e europeias, aptidão necessária nas artes de relações humanas num mosaico de etnias, povos e civilizações diversas que negoceiam o dia-a-dia para garantir o futuro e, no entretanto, se o ocidente matou Deus de forma a dominar a razão que lhe permitiu dominar o mundo, os africanos hão-de sempre confiar nas divindades, instâncias supremas que apaziguam o incerto da sorte, da morte, da vida, da paz e da guerra.
Apesar de que, em lugar nenhum, a esperança, a alegria, a criatividade reforcem tanto o sentido da vida como em África, os editais da maior parte de jornais, revistas e documentários ocidentais alimentam uma imagem de uma África faminta, doente e corrupta, ao mesmo tempo que lhe são prognosticados enumeráveis fins, quer pelas guerras, ditas intrínsecas às estruturas sociopolíticas, quer pela fome, pois veladamente os africanos são a causa e efeito do seu atraso tecnológico por incapacidade de domínio dos mecanismos (ocidentais) do progresso económico, ou então o fim do continente surge em previsões apocalípticas de propagação da sida, ou a não contenção da malária, tuberculose, etc.
Argumentos que são resíduos da história recente do continente ditada e escrita pelo Ocidente. Esquecem-se que a população deste continente foi pioneira na história da humanidade em conceber estruturas sociais, económicas e políticas que possam garantir o máximo em termos de sobrevivência humana no contexto de uma natureza material e humana adversa. Estruturas estas ainda prevalentes e que fizeram com que África sobrevivesse à catástrofe do tráfico atlântico de escravos e à ocupação colonial.
Na época moderna, não obstante os aspectos negativos relacionados com instabilidade política, os frequentes conflitos, as epidemias e fragilidade económica, o continente teve uma expansão demográfica recente demarcável, obteve a sua autonomia política e vai esbatendo a sua autonomia económica, demonstrando a constância do elemento sobrevivência.
 
NOTA FINAL: As palavras utilizadas na história aparecem sempre armadilhadas, as vitórias são ilusórias e no rescaldo da batalha, o destino humano continua volúvel, só o aprofundamento do conhecimento, alargando assim as fronteiras da consciência humana, pode atenuar os dilemas que sempre se apresentarão à humanidade. Apesar de capítulos sombrios na sua história, os africanos reflectem uma capacidade inata de auto preservação, mantendo a idoneidade da sua identidade. É pois na manutenção absoluta da sua autonomia identitária que reside a grandeza da herança africana.
 
  • 1. DUARTE DE CARVALHO, Ruy, Desmedida: Luanda – São Paulo – São Francisco e Volta, Crónicas do Brasil, Cotovia p. 53-54.
  • 2. VILLALTA, Luís Carlos, “Notas sobre a circulação cultural no Brasil Colónia: comentários sobre o ensaio “Contatos e Solidariedades: negros e payaya no sertão de Jacobina, BA”, de Raphael Rodrigues Vieira Filho”, In: Website do Instituto de Investigação Cientifica Tropical (IICT), 2007.
  • 3. DUARTE DE CARVALHO, Ruy, Desmedida: Luanda – São Paulo – São Francisco e Volta, Crónicas do Brasil, Cotovia, pp 222-223.
  • 4. ALMEIDA, Onésimo Teotónio, A propósito de lusofonia (à falta de outro termo): o que a língua não é, Brown Universty, In: Website do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), 2007.
  • 5. LANÇA, Marta, “A Lusofonia é um Bolha”, Jogos sem Fronteiras, Julho 2008.
  • 6. ALMEIDA, Onésimo Teotónio, “A propósito de lusofonia (à falta de outro termo): o que a língua não é”, Brown Universty, Instituto de Investigação Cientifica Tropical (IICT), 2007.
  • 7. O “Brasileiro” no imaginário português da época na literatura e teatro, era caricaturado como o colono em visita a Portugal, sempre acompanhado de muitos escravos e pelo menos um papagaio, que enriquecera rapidamente durante um dos três grandes ciclos de acumulação de riqueza do Brasil: açúcar, ouro ou diamantes.
  • 8. TINHORÃO, José Ramos, Os Negros em Portugal: uma presenca silenciosa, Editorial Caminho, 1988. pags.: 330-340.
  • 9. ILIFE, John, Africans: the history of a continent, Cambridge University Press, 1995, p. 130-131.
  • 10. PÉLISSIER, René, História das Campanhas de Angola: Resistência e Revoltas 1845-1941, p. 33
  • 11. HOOKER, Richard, Washington State University.
  • 12. ILIFE, John, Africans: the history of a continent, Cambridge University Press, 1995, p. 129
  • 13. LEMMENS, Harry, De Vorst, De Soldaat en de Reiziger: vier eeuwen Portugal –Angola, Atlas, 2007, p. 181.
  • 14. PÉLISSIER, René, História das Campanhas de Angola: Resistência e Revoltas 1845-1941. p. 52.
  • 15. Esta asserção é fruto da observação da autora deste artigo que permaneceu nos países citados, com excepção do Congo e do Ruanda, em trabalho com a ONU em missões de paz entre 1997 e 2008.
  • 16. PÉLISSIER, René, História das Campanhas de Angola: Resistência e Revoltas 1845-1941, p. 35.
  • 17. DA SILVA, Aida Gomes, “Repensar a Ilha de Mocambique”, DEMOS, 1997, p. 11.