sábado, 13 de junho de 2015

Crônica do Dia - Eles mentem, eu acredito - Walcyr Carrasco

Mentir todo mundo mente um pouco. Mas há profissões em que mentir ou, pelo menos, não dizer exatamente a verdade faz parte. Recentemente fiz um tratamento dentário. Pela segunda vez, implante no mesmo local, após enxerto de osso. Um ano de espera. Sou eu quem não pode mentir agora. Eu sabia o que me esperava. Implante, especialmente nesse local da minha boca, dói. Chega até o nariz. O dentista disse:


– Não dói quase nada. Em um dia você já está recuperado.

Acreditam que o asno aqui acreditou? Se era um dia, por que ele me deu receita de analgésico para uma semana!? Aiiii! Sofri horrivelmente. Dias só com comida líquida. Tudo frio ou, de preferência, gelado. E durante a operação? Anestesia no céu da boca é uma das piores coisas do mundo. Como acreditei que não ia doer quase nada, nada, se já passei por tudo isso? Perguntei a um amigo futuro dentista se tem aulas de como enganar pacientes na faculdade. Respondeu, sorrindo:

– A gente aprende na prática.

Aiiiiiiii! E o pior, todos aprendem!

Mesma coisa que médico. No máximo são vagos. Um amigo foi operar do menisco. Deu infecção hospitalar. Já fez mais de dez operações na perna, entre próteses e tentativas para não perdê-la. Uma tragédia. Se alguém me diz que vai operar do joelho, grito:

– Não opera, não opera!

Posso estar enganado. Nunca vi uma operação do joelho que deu absolutamente certo. É como motor de carro. Mexeu, sempre fica uma peça fora do lugar. A maior operação por que passei até hoje foi a retirada de uma vesícula empedrada. Fiz até tomografia. Dois dias antes da internação, fui levar os papéis do seguro para o hospital. O médico quis conversar:

– Há um tecido unindo sua vesícula ao fígado. Tenho de fazer um corte mais profundo para retirá-lo e preciso da presença de um patologista na sala. Pode ser câncer.

Eu tenho um tremendo sangue-frio, senão teriam de  chamar o cardiologista. Câncer? Perguntei:

– Devo avisar a empresa em que trabalho?

– Não é necessário, até depois da operação. Agora, se tiver de retirar um pedaço do fígado, pode complicar.

– Seja franco, doutor, eu posso morrer na cirurgia?

– Bem, se você entrar em um táxi e perguntar se pode morrer na corrida, o motorista sempre tem de dizer que há uma possibilidade.

Mentir ele não mentiu. Mas câncer não é bem igual a uma corrida de táxi, certo? Meia hora depois lá estava eu,  atrás de advogado para fazer testamento e me preparando espiritualmente. Confesso que me preparei bem até demais. Quando cheguei ao hospital, queriam internar meu acompanhante, pensando que era o doente. Eu era pura paz e alegria, em harmonia com o cosmos em meus derradeiros momentos da vida. Não, não usei droga nenhuma. Tanta elevação espiritual deve ter sido reação alérgica à palavra câncer. (E não, não era nada. Agora sim, graças a Deus.)

E quando um cano do telhado começa a pingar? Chamo o bombeiro, ele diz que tem de quebrar o teto. Coisa de uma semana. Um ano depois, estou dormindo na cozinha, sem telhado no resto da casa e nenhum prazo de término. Marceneiro promete para 30 dias. Pega 50% e foge. Passo a persegui-lo. Mas ele está ocupado arrancando a entrada de outro cliente para só então comprar o material da minha obra. (Salvam-se, na maioria, as empresas de armários e cozinhas modulados. Pelo menos elas têm contratos, cumprem prazos.) Tudo ligado à construção, do pedreiro ao arquiteto, costuma me enlouquecer. Em tempo: há uma percentagem boa e sincera de profissionais que, quando a gente encontra, deve agarrar e nunca mais perder de vista. A planta que era para ontem tem de ser refeita porque não se percebeu a existência de uma coluna. O mestre de obras pega duas ou três casas ao mesmo tempo e migra com a equipe de uma para outra, de acordo com as antecipações. O pedreiro faltou porque foi fazer um servicinho extra. Lá vem o encanador com o rosto torturado:

– Vou faltar uma semana na obra. Minha mãe está passando mal no interior de Minas. Precisava até de um adiantamento.

– Sem chance. E vou descontar os dias.

Ele parte furioso. Fecho os registros para a casa não inundar. Trato de achar outro. Dois dias depois ele é visto num forró.

Eu me tornei impiedoso? Pense na última vez que foi ao mecânico e ele garantiu dois, três dias para o conserto que durou um mês. E até agora quando você liga o carro, ouve um barulhinho esquisito. Pois é. Toda profissão tem sua cota de mentiras. Algumas, mais que as outras.

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