As cartas de Mário de Andrade escritas para Manuel Bandeira são de amor. Do amor entre eles e pela língua portuguesa
Mário
de Andrade foi poeta, crítico, romancista, musicólogo, ensaísta, professor de música e exímio redator de cartas. Ficou, é claro, menos conhecido pelas cartas do que pelos livros, pela pesquisa folclórica, por seus outros interesses, que eram muitos, todos unidos pela ideia de modernidade e de identidade da arte brasileira. As cartas eram privadas. Mário de Andrade foi um dos criadores da Semana de Arte Moderna de 1922 que aconteceu em São Paulo e que ambicionava uma arte sem europeísmos. Mário era um dos cabeças do grupo, que contava com o também poeta Oswald de Andrade, com as pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, com Menotti del Picchia e vários outros que, impulsionados pelas ideias modernas, chocaram e revolucionaram a arte então produzida no Brasil. Os seus trabalhos eram originais e estranhos ao que se fazia na época, em um Brasil excessivamente influenciado pelas artes francesas. As ideias do grupo queriam explodir com essas influências.
Menos exuberante no comportamento do que o amigo provocador Oswald, Mário foi sempre mais discreto. Sua vida afetiva ou sexual manteve-se misteriosa, assim como as cartas. Ele pediu que sua correspondência não fosse publicada antes de completados 50 anos de sua morte.
Correspondeu-se com Tarsila do Amaral, Alceu Amoroso Lima, Álvaro Moreyra, Jorge Amado, Lasar Segall, diversos poetas e escritores, mas especialmente com Manuel Bandeira. Especialmente, porque com Bandeira, como o próprio declara no prefácio do volume das cartas que selecionou, Mário abria-se em relação à sua obra, falava de suas dúvidas, comentava os trabalhos alheios. Era impaciente com certos assuntos. Gostava de contrariar. Eles discutiam. Ele trabalhava nas cartas. É um tipo de entrega que faz muito pela compreensão da sua obra como um todo. O todo de um homem tão múltiplo é hercúleo, e ele era um erudito pensante. Nas cartas trocadas com Bandeira, a quem ele chama de Manú, existe uma peça importante no quebra-cabeças da sua diversidade e multifacetação.
No prefácio de “Cartas a Manuel Bandeira”, há um Manuel dividido entre a traição ao amigo e a convicção da importância do conteúdo das cartas. Ele chama a obra de Mário “imperecível”, para justificar o ato traidor. Fala sobre os pontos em que discordavam no delicado e polêmico assunto do abrasileiramento da escritura literária, apreciado e utilizado pelos dois, mas criticado por Bandeira na sistematização, que resultava para ele em “construção cerebrina, que não era língua de ninguém”, artificial e repugnante.
Na correspondência são muitas as pérolas como: “Quis exprimir nessa poesia este mal-estar de pátria tão despatriada em que a gente inda não se sente harmonicamente” ou “É preciso dar coragem a essa gentinha que ainda não tem coragem de escrever brasileiro. Dante não surgiu sozinho”.
Uma das mais importantes obras da literatura brasileira, escrita por Mário de Andrade, é “Macunaíma”, que ele lança como “rapsódia”, não como romance. Rapsódia, um texto ligado à oralidade, não à lírica. Esse é o lance de Mário. Quem vem antes? O Macunaíma é “o herói sem caráter”. É o Brasil profundo, o Brasil primordial aquele o que Mário quer escrever.
Nas cartas, longas, Mário de Andrade chama Manuel Bandeira de “Manuel Bandeira”, “meu caro Manuel”, “Manuel”, “Meu querido Manuel”, “Manú”, “Manuelucho dear”, “Manuel do coração”, e isso explica muito da trajetória epistolar do modernista ranzinza com o Manuelucho. Bandeira em geral releva as irritações do outro, considera-as circunstanciais e passageiras. E acerta quando trai e publica as cartas. As cartas de Mário de Andrade escritas para Manú são como uma visita aos bastidores da invenção da obra de Mário. E são cartas de amor também. Do amor dos dois, entre eles, e pela língua portuguesa, pela mátria, pela pátria, pela causa da invenção da língua do Brasil.
“Tenho aqui uma porrada de cartas para responder … Começo pela tua.”
“Enfim vou matutar.”
“Emprego a palavra com a sutileza dos poetas japoneses nos seus haicais.”
“Seus artigos gostadíssimos.”
“Sou o maior chicanista da literatura brasileira.”
“Recebi seu livro hoje e foi um alegrão.”
“Não corrijo, se arranje.”
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