Biografias podem servir para alargar o conhecimento ou para fazer caixa nas editoras. Decide o leitor
O poeta português Mário de Sá-Carneiro nasceu no final do século XIX, em 1890, dois anos após o nascimento de Fernando Pessoa, de quem se tornou amigo e confidente. Colaborou com ele, com Almada Negreiros, com o brasileiro Ronald de Carvalho e com outros poetas da revista que ele, Sá-Carneiro, grafava “Orfeu”, e Fernando Pessoa, “Orpheu”, financiada pelo pai de Mário. Ali podiam publicar os novos anseios da arte da época, influenciados que estavam por Mallarmé e Verlaine e pelas ideias futuristas de Marinetti e Picasso. O primeiro número de “Orpheu” escandalizou os leitores. Era abril de 1915, e os poemas não metrificados, falando de roldanas e objetos considerados não artísticos ou sublimes, fizeram com que os leitores furiosos apontassem os poetas na rua com ironias e sugestões de que fossem internados em hospício local. O próprio Fernando Pessoa, em carta a Côrtes-Rodrigues, descreveu: “Somos o assunto do dia em Lisboa”. “O escândalo é enorme”.
Mário de Sá-Carneiro nasceu em uma família abastada e perdeu a mãe com 2 anos de idade, combustível para sua enorme sensação de solidão por toda a vida. Sentiu-se sempre inadequado, embora sabendo que sua poesia tivesse valor. Chega a iniciar o curso de Direito na Universidade de Coimbra mas ainda no primeiro ano abandona a vida acadêmica para sempre. Sua trajetória poética inicia ambiciosa e termina com ele, poeta, o Mário, “o Outro” como nada mais do que “aquel’outro”, um zé-ninguém. Só o que conseguiu foi ser ninguém. Foi um dos ícones do modernismo em Portugal, que diferentemente do mestre Fernando Pessoa, sofria com a falta de reconhecimento. Pessoa não nutria essa mesma ânsia. Seus pares cobravam dele que publicasse, e o que havia de melhor em sua produção. Muitos são os que, como Sá-Carneiro, acham que “Mensagem”, único livro que Pessoa publicou em vida, para demarcar sua ambição em ser o outro Luis de Camões, foi má escolha, aquilo era muito aquém de sua potência poética e do conjunto já produzido. Sá-Carneiro cobrava do amigo a publicação da sua produção moderna, e aos que em geral cobravam-no qualquer coisa Pessoa dizia que estava deixando uma arca de inéditos.
Mário de Sá-Carneiro não gostava de si mesmo, só das mãos, finas e delicadas. Fernando Pessoa, quando encontrava seu verdadeiro eu, não reconhecia-se nele. Podia inventar ser qualquer um, mas nunca era ele mesmo, nunca encontrava-se naquele qualquer um. Iniciava nova busca e tudo acontecia de novo. Procurou sempre as razões psíquicas para sua condição, histérica. Disse que sendo mulher provavelmente a histeria fosse manifesta em gritos, que em um homem não cairiam bem, e manifestava-se nele então, provavelmente, no silêncio da escritura dos versos.
Mário de Sá-Carneiro escreve poemas contra si mesmo, autoimola-se com ironias escancaradas e crueldades de exagero. Gosta muito de Paris e vive bem na cidade, sustentado pelo pai, que não consegue agradar. Jamais sente-se bem na própria pele, mas sua sensação de desconforto arrefece nos salões de Paris, “entre cristais”, e ele diverte-se nas festas. Mas não é suficiente e sua grande poesia, infelizmente, também não o é. Na sua amada Paris suicidou-se aos 26 anos de idade, vestindo um smoking para tal. Planeja o suicídio, faz de seu suicídio praticamente um fetiche, não encontra outra saída. Há correntes modernas de estudiosos que concluem que por seu comportamento, sua difícil relação com o pai e pelo que diz em seus poemas, Sá-Carneiro seria transgênero. Na opinião de alguns, cai como uma luva para a compreensão da poesia do “falso atônito”; seria este o elo perdido. Para outros é uma tese bizarra, ideia de jerico. Por sua vez o, muito provavelmente, último semi-heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro Coelho de Athayde, o Barão de Teive, suicida-se também. No único manifesto que deixa, garante não ter qualquer arrependimento de ter queimado toda a obra que escreveu, “não tenho mais a legar ao mundo do que isto”. “Estou liberto e decidido. Matar-me; vou agora matar-me. Porém quero deixar, ao menos, com a precisão com que puder fazê-la, uma memória intelectual da minha vida, um quadro interior do que fui”. E assim o poeta suicida o Barão de Teive, para não suicidar Fernando Pessoa. De qualquer modo há a consciência desejosa da posteridade.
Pode parecer um assunto bem fora de moda, mas fiquei pensando a respeito por causa da discussão sobre as biografias. Se é possível (desejável claro que não é) que haja controle em qualquer sentido; em que medida é possível separar a biografia da construção de uma obra ou de um feito, o quão dono de sua biografia é o biografado. O quanto pode nos dar como matéria de entendimento a vida de alguém que inventou qualquer coisa, sobretudo uma coisa de inacreditável beleza e feitura. Biografias podem servir para alargar o conhecimento ou simplesmente para fazer caixa nas editoras. Decide o leitor. O que nunca deixaremos de encontrar é a beleza e o horror, a delicadeza e a barbárie, o vexatório, a inveja, o exagero, a má-fé, a idolatria, as inverdades, o comprometimento, o caráter, o humano, o demasiadamente humano, de ambos, biografados e (seus) biógrafos.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/para-posteridade-16440681#ixzz3dj6UUb1i
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