De Genebra, na Suíça, onde vive, o escritor Paulo Coelho, um dos mais bem-sucedidos autores brasileiros (“o mais bem-sucedido”, corrige ele), acompanhou atento o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu pelo fim da exigência de autorização prévia para biografias. O escritor foi uma das primeiras vozes a se manifestar contra a causa defendida por Roberto Carlos e pela associação Procure Saber, grupo que reúne, entre outros, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Roberto Carlos proíbe, desde 2007, a venda de um livro a seu respeito. Em entrevista por telefone a ÉPOCA, Paulo Coelho conta que tentou demover seus “ídolos” da ideia de apoiar a censura às biografias. Ele afirma que o grupo aceitou acompanhar Roberto Carlos em sua batalha extemporânea em troca do apoio do cantor a mudanças no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad, entidade que recolhe e repassa direitos autorais a artistas). “Eles devem estar arrependidos agora”, diz. Paulo Coelho foi tema de uma biografia não autorizada, escrita por Fernando Morais. Não gostou do livro. Nem por isso passou por sua cabeça se juntar a seus ídolos para impedir a publicação de futuras biografias suas. “Gostar ou não gostar faz parte da vida”, afirma.
ÉPOCA – Depois de quase três anos de discussão, o STF decidiu por unanimidade: é inconstitucional exigir que biografias contem com autorização prévia de personagens ou de seus familiares para ser publicadas. O senhor foi um dos primeiros a se colocar publicamente contra a obstrução às biografias. O que achou da decisão do STF?
Paulo Coelho – Pelo menos na arte, o Brasil mostra alguma luz. Quando o Roberto Carlos entrou na Justiça para proibir a circulação da biografia dele (Roberto Carlos em detalhes, de Paulo Cesar de Araújo, lançada em 2006), fiquei muito surpreso, porque biógrafos brasileiros fizeram ironias, debocharam do caso. Resolvi escrever um texto sério sobre o assunto, porque a situação estava erradíssima (no texto, publicado no jornal Folha de S.Paulo em março de 2007, o escritor afirma que o cantor teve uma “atitude infantil” ao impedir a distribuição do livro). Era mais um passo em direção a um controle da informação que já existe e que sempre existirá, mas que quanto mais pudermos amenizar, melhor. E eu tinha todo o direito de falar sobre isso, porque a editora que havia publicado a biografia era a mesma que publicava os meus livros (a editora Planeta) e que aceitou um acordo.
ÉPOCA – Em sua opinião, o que levou artistas importantes e com um histórico de defesa da liberdade de expressão, como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, a defender a proibição de biografias não autorizadas?
Paulo Coelho – Fiquei chocadíssimo quando li as declarações do Procure Saber (associação formada por artistas, cuja porta-voz era Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano Veloso). Como assim, meus ídolos falando isso? Não é como vejo o Chico, o Caetano, o Gil. Um membro do Procure Saber especulou que se tratava de uma troca. Roberto Carlos foi a Brasília apoiar algo do interesse deles (em julho de 2013, Roberto Carlos se juntou ao Procure Saber na campanha pela aprovação de uma lei que dava ao Ministério da Cultura o poder de fiscalizar o Ecad). Esse apoio estava condicionado ao apoio do Procure Saber à causa de Roberto Carlos, o veto às biografias não autorizadas (anunciado pelo Procure Saber em outubro de 2013). Aí eu entendi. Eles (os integrantes do Procure Saber) caíram como patinhos. Essas pessoas, que reputo como dignas e inteligentes, caíram numa armadilha de quinta categoria e apoiaram algo que não condiz com eles. E, acredito, estão muito arrependidos de ter feito isso. Depois que Roberto Carlos conseguiu o que quis, largou o grupo. E Caetano, Gil, todos eles, tiveram de segurar uma barra. A culpa ficou com os chamados progressistas. Porque, do Roberto Carlos, todo mundo esperava uma atitude assim, mas ninguém esperava do Caetano, do Gil, do Chico. Eles foram manipulados pelo Roberto Carlos, acredita? Manipulados pelos interesses pessoais do Roberto Carlos. E depois que tudo ficou resolvido, ele saiu fora e deixou todos com a batata quente na mão.
ÉPOCA – O senhor conversou com os artistas do Procure Saber depois disso?
Paulo Coelho – Conversei e mandei vários e-mails durante a confusão, perguntando o que eles estavam fazendo, pedindo para que eles saíssem dessa.
ÉPOCA – O que eles respondiam?
Paulo Coelho – Aí você já está querendo saber muito. Mas mandei vários e-mails dizendo que aquela atitude não condizia com a história e o legado deles. Um dos primeiros a falar em veto a biografias não autorizadas foi o Djavan, um cara com quem não conversei, que não conheço direito. Ora bolas, mas quem está interessado na biografia do Djavan?
ÉPOCA – O que o levou a se posicionar contra a postura do Procure Saber?
Paulo Coelho – Sou uma pessoa totalmente contra a censura. Recentemente, entrei em mais uma discussão sobre o tema, quando a Sony resolveu não lançar o filme A entrevista (comédia americana sobre dois jornalistas que conseguem agendar uma entrevista com o ditador Kim Jong-un, da Coreia do Norte, e são convocados pela CIA a aproveitar a oportunidade para assassiná-lo. A Sony recebeu ameaças e chegou a cancelar o lançamento convencional do filme. Posteriormente, ele foi vendido pela internet e exibido em cinemas independentes). Ofereci pagar US$ 100 mil para passar o filme no meu blog. O que é isso? Agora estamos sujeitos a viver com medo disso, daquilo? O que aconteceu com as biografias é semelhante. No momento em que passamos de determinado limite (de reconhecimento público), estamos expostos. E aí, vai querer esconder o quê? Se tiver o que esconder, problema seu.
ÉPOCA – Muitos artistas criticam o fato de os biógrafos ganharem dinheiro à custa de seus personagens e chegou a ser discutida a proposta de os biografados terem direito a receber um percentual sobre as vendas dos livros. O que o senhor acha disso?
Paulo Coelho – Patético. Além do mais, os biógrafos que conheço, o Fernando Morais e outros, não ganham o que se pensa que eles ganham. O exemplo clássico é o Fio Maravilha (jogador do Flamengo nos anos 1970). Ele achou que Jorge Ben estava faturando à custa dele, pensou que Jorge Ben ia ficar milionário com a música que fez por amor a ele! O cara não entendeu nada. Essas pessoas são biografadas porque são bem-sucedidas e, se são assim, devem ter dinheiro. Tirar 10% do pobre biógrafo é muito para o biógrafo e pouco para eles. Acho que o argumento do ganho financeiro foi mais uma desculpa esfarrapada. Então alguém escreve um livro com insultos a seu respeito, você leva 10% e aí fica tudo bem? Isso não tem sentido.
ÉPOCA – Por que o senhor não gostou de sua biografia escrita por Fernando Morais?
Paulo Coelho – Por razões que não vêm ao caso, achei a visão do Fernando muito limitada. O que eu fiz? Criei uma fundação e coloquei todos os meus documentos na nuvem. Quer saber o que aconteceu comigo em 1972? Está lá. Quer saber quando eu traí uma namorada? Também está lá. Todos os meus podres estão lá. São 80 mil documentos contando toda a minha vida. Quem quiser escrever sobre mim, é só procurar lá. O que não pode é eu querer ser um autor conhecido e ao mesmo tempo querer me manter um cara incógnito.
ÉPOCA – A lei brasileira prevê o direito de processar o autor por calúnia ou difamação, após a publicação, caso o biografado se sinta atingido pelo teor da obra. Alguma vez o senhor pensou em processar Fernando Morais por causa de O Mago?
Paulo Coelho – (Dá uma gargalhada.) Se vou a um restaurante e não gosto da comida, vou processar o restaurante? Se compro um livro e não gosto, processo o autor? Gostar e não gostar faz parte da vida. Saiba escolher e, se não ficar feliz com sua escolha, o problema é seu. Eu topei a proposta do Fernando escrever minha biografia, abri meus arquivos para ele. E topei por uma única razão: um dia eu vou morrer e vão escrever uma biografia a meu respeito, com quase toda certeza. O que seria dito nessa biografia se eu não tivesse nenhuma participação (porque eu estaria morto)? Disse isso para o Fernando: “Você tem acesso a tudo, não tem censura nenhuma, faça o que quiser, escreva o que quiser”. Assim tive o gostinho de saber como eu seria visto depois de morto. Foi a minha escolha.
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