domingo, 21 de junho de 2015

Crônicas do dia - Da pedra ao diálogo - William Helal Filho


Perseguições, prisões e até mortes de adeptos das religiões de matriz africana eram frequentes no Brasil do século XIX. Um absurdo escorado na letra do artigo 157 do primeiro Código Penal republicano, de 1890, que proibia “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública". Mais de 120 anos se foram desde então. O país evoluiu. Hoje, a Lei 7.716, de 1989, protege fiéis de todas as crenças, prevendo anos de cadeia para quem comete crimes de intolerância religiosa. Mas indivíduos de certos ramos da sociedade continuam lá atrás.


Kayllane Campos foi vítima desse anacronismo no domingo passado. Iniciada há quatro meses no candomblé, a menina de 11 anos voltava de uma festa religiosa na Vila da Penha, Zona Norte, com a avó, Kátia Marinho, que é mãe de santo. As duas estavam com um grupo de devotos andando na Avenida Meriti, todos vestidos de branco, quando começaram a ouvir insultos de dois homens com Bíblias nas mãos. “Vocês vão queimar no inferno, macumbeiros, isso é coisa do demônio!”, berravam. Um deles atirou uma pedra, que bateu num poste e acertou em cheio a cabeça da garota. Os agressores fugiram num ônibus, deixando para trás a criança deitada. As vestes brancas tingidas de vermelho. “Achei que fosse morrer", disse ela numa entrevista dois dias depois, com um curativo no alto da testa.

Kayllane e sua avó nunca tinham sido alvo desse ódio. Kátia se iniciou no candomblé há 33 anos, e em 25 anos o seu barracão nunca foi cenário de vandalismo. O episódio violento jogou a família num triste encontro com a realidade. De acordo com o estudo “Presença do axé — Mapeando terreiros no Rio de Janeiro”, da PUC-Rio, 430 das 840 casas pesquisadas foram alvo de discriminação. Somente um terreiro no bairro de Taquara, em Duque de Caxias, foi incendiado ao menos quatro vezes em seis anos. O último noticiado, em junho do ano passado, deixou o local todo em cinzas.

Essa violência contra religiões de matriz africana acontece em todo o país. No último dia 23 de março, entidades ligadas a crenças de origem africana em todos os estados procuraram os escritórios locais do Ministério Público Federal (MPF) para pedir a abertura de inquéritos civis sobre intolerância religiosa. A movimentação foi disparada após a criação dos Gladiadores do Altar, grupo de jovens da Igreja Universal que usam uniformes e marcham gritando palavras de ordem. Não havia nenhum registro de ataques do grupo contra qualquer religião, mas as entidades resolveram agir devido a um histórico de hostilidade por parte de membros de igrejas neopentecostais.

“Todo esse ódio tem por base a ideia dos neopentecostais de que existe uma batalha do bem contra o mal na sociedade ”, diz o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, da Universidade de São Paulo (USP). “O mal, para eles, é representado por todas as outras igrejas. É uma luta contra o demônio, que na cabeça deles se manifesta principalmente nas crenças afro-brasileiras. Não tem nada mais explosivo que a ignorância aliada ao preconceito.”

No dia 1º deste mês, em Camaçari, na Bahia, a ialorixá Mildreles Dias Ferreira, conhecida como Mãe Dede de Iansã, morreu de infarto aos 90 anos. Segundo parentes, ela não resistiu à perseguição que sofreu ao longo de um ano, desde que uma igreja evangélica se instalou em frente ao terreiro. Segundo uma matéria da repórter Dandara Tinoco, do GLOBO, na véspera da morte de Mãe Dede, fiéis desse templo evangélico passaram a madrugada gritando ofensas em direção à casa de santo.

Não precisava ser assim. Adeptos do candomblé e neopentecostais já realizaram eventos juntos, para promover a diversidade. A família da própria Kayllane, cuja mãe é evangélica, mostra como crenças diferentes podem conviver. “Quem tacou pedra são vândalos que se escondem atrás da palavra de Cristo. Não é isso que a gente aprende na igreja”, disse ela ao repórter Raphael Kapa, do GLOBO.

Vamos esperar que, desse crime idiota, possa surgir uma onda de diálogo. Kayllane aproveitou a repercussão do caso para lançar um abaixo-assinado on-line (http://chn.ge/1L7QWRI) pedindo uma campanha nacional a favor da liberdade de religião. Ontem, tinha 3,8 mil assinaturas. Que se torne viral!



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/da-pedra-ao-dialogo-16505514#ixzz3djQ6F2P2

Nenhum comentário:

Postar um comentário