sexta-feira, 19 de junho de 2015

Te Contei, não ? - Branco, nobre e escravo do governador

Branco, nobre e escravo do governador

Por muitos anos, Anthony Knivet lembraria o dia em que chegou ao Rio. Apavorado, dentro do navio onde vinha preso, o jovem inglês viu ao longe a praia da atual Praça Quinze e, dela, partirem canoas para a recepção. Uns portugueses remavam, os outros batiam tambores, faziam barulho, festa. Knivet foi jogado ao mar e quase se afogou. Trazido à terra, teve de esperar. O governador Salvador Correia de Sá, que decidiria seu destino, assistia à missa na Igreja de Nossa Senhora do Ó, atual Carmo.


Era, como muitos dos estrangeiros que navegavam pela orla brasileira, um corsário. Estava a serviço de Thomas Cavendish, um dos aventureiros mais temidos do século XVI. Após sua expedição ter assaltado com sucesso Santos e São Vicente, se deu mal na briga com os cariocas. Knivet viveu na Guanabara por nove anos. Viu de tudo e deixou um relato deliciosamente detalhado. A cidade que ele descreve, naquela década de 1590, é um canto onde as culturas portuguesa e tupi ainda convivem, são íntimas. E na qual a selvageria da escravidão já estava presente.

Feito escravo, seu primeiro dono foi um mameluco. Dividiam o casebre, dormiam em redes. Pela manhã, Knivet levava os porcos para a praia e, à noite, trazia de lá os caranguejos que pescava. Tal cotidiano durou poucos meses, até o governador decidir dar-lhe outro destino.

O velho Salvador tinha um engenho de açúcar no local que, ainda hoje, chamamos Ilha do Governador. Vida dura. Transportando por balsa feixes de cana, Knivet apanhou, e muito, do feitor. Ao ponto de que, após alguns meses, suas roupas se tornaram trapos. Sem mais suportar, fugiu para o mato e viveu na floresta um tanto, até ser recapturado.

Naqueles nove anos, todas as agruras da vida colonial lhe foram expostas. Pela fuga, por exemplo, teve que andar um tempo com bolas de ferro, 13 quilos cada, atadas às pernas.

Conviveu também com índios. Convidado por um chefe à sua cabana, sentou-se à rede. O velho estava “todo pintado de vermelho e preto, com três grandes buracos no rosto, um embaixo do lábio e outros em cada lado da boca”, conta. Nos buracos, trazia fincadas belas pedras verdes. Naquela oca, viu-se cercado por várias mulheres numa cena que inúmeros dos viajantes quinhentistas descrevem de forma semelhante. Nuas, entram repentinamente no cômodo e o cercam. Pousam a cabeça em seu colo, nos ombos, e choram todas copiosamente. Um choro alto, sem motivo claro.

É duro, por vezes, ler a história de Anthony Knivet. Há um nível de crueldade, por parte de seus donos, que parece calculada. Há os momentos em que o tratam bem, lhe dão boas roupas ou uma refeição mais caprichada. Aí, noutro dia ou noutro mês, vêm chibatadas ou longos períodos de prisão a mandioca e água. Se em alguns momentos o motivo dos maus-tratos foi uma tentativa de fuga, noutros ocorreu de alguém suspeitar de qualquer bobagem. Motivos não são necessários. E lá está o rapaz no chão dumas celas frias e úmidas, por vezes com feridas expostas que infeccionam. Era branco, europeu. Mas era escravo.

Knivet fugiu e alcançou Londres em 1601. Foi escravo, mas nobre. Seu tio, barão. Relatos de aventuras em terras longínquas como as suas eram popularíssimos e já inspiravam gente como outro jovem, este dramaturgo, que ganhava fama por esse tempo. William Shakespeare.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/branco-nobre-escravo-do-governador-16183473#ixzz3dYoQcO55

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