Não é incomum que, naquelas manhãs de ressaca, recorra-se ao prosaico chá de carqueja como remédio. Receita de avó. Infalível. A carqueja, planta nativa do Sul e do Sudeste do Brasil, é tão amarga quanto popular no tratamento de dores de estômago e indigestão. Usa-se o chazinho milagroso até para emagrecer. Pesquisadoras da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) hoje se debruçam sobre o enigma da carqueja. Elas pesquisam se a planta tem mesmo em sua composição substâncias capazes de combater o parasita que causa a esquistossomose – doença que, segundo a Organização Mundial da Saúde, afeta cerca de 240 milhões de pessoas no mundo. “Estamos na fase de estudos para verificar se a carqueja é segura”, diz Ana Lúcia Ruiz, coordenadora do Departamento de Farmacologia e Toxicologia de um centro multidisciplinar da Unicamp. Se a eficácia da carqueja se comprovar e algum gigante da indústria farmacêutica se interessar em produzir o medicamento e colocá-lo no mercado, completa-se o ciclo ideal da pesquisa com biodiversidade: o conhecimento popular inspira a ciência; a ciência abastece a indústria; e a indústria fornece o medicamento para a população.
No dia 20 de maio, a presidente Dilma Rousseff sancionou uma lei que pode tornar esse ciclo mais viável no Brasil. O marco legal da biodiversidade tenta apaziguar o dilema entre o desenvolvimento científico e a proteção do meio ambiente. A nova lei substitui uma medida provisória de 2001. Pensada com a boa intenção de evitar a biopirataria, a regulação antiga tornou ainda mais difícil boa parte das pesquisas científicas com a biodiversidade brasileira, a mais rica do mundo. Por seu rigor, os cientistas temiam ser acusados de biopiratas. As indústrias deixaram de financiar estudos pela insegurança jurídica e pelas multas pesadas. E as comunidades acreditavam estar sendo roubadas de suas riquezas. Com o marco aprovado no mês passado, o acesso a esse patrimônio fica menos burocrático. Ele não agrada plenamente às comunidades, mas há um consenso de que representa um avanço.
Esse ambiente inseguro que havia até aqui deixou um enorme vácuo no campo da medicina. Um vazio de quase cinco décadas. Nos anos 1960, o pesquisador brasileiro Sérgio Henrique Ferreira descobriu as propriedades do veneno da jararaca para o tratamento da hipertensão. Sua pesquisa deu origem ao Captopril, um dos medicamentos mais bem-sucedidos da história nessa área. De lá para cá, quase nada foi desenvolvido nesse sentido. A partir de uma planta, pode-se criar um medicamento que derive de uma substância ou molécula isolada daquele vegetal. Ou pode-se produzir medicamentos fitoterápicos, criados com base nos extratos daquele vegetal. O Brasil avançou na produção de fitoterápicos. Eles vêm sendo usados, inclusive, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Isso quer dizer que o chá de carqueja da vovó passa a ser validado por cientistas.
Mas a inovação na criação de fármacos mais complexos esteve praticamente imóvel. “Pelo menos 27% dos remédios no mercado mundial hoje têm uma relação direta com a biodiversidade”, diz Adriana Diaferia, vice-presidente do Grupo FarmaBrasil, associação da indústria farmacêutica nacional. “O potencial desse mercado é imenso.” Especialmente para os laboratórios brasileiros. Os gigantes multinacionais não estiveram com seus microscópios voltados para isso. De acordo com a consultoria McKinsey, o mercado de biofarmacêuticos movimenta, no mundo, cerca de US$ 163 bilhões, 20% do total. E esse número ainda inclui medicamentos que derivam não da biodiversidade, mas de células humanas, por exemplo. “Por isso, por décadas, a indústria esteve mais interessada em inventar moléculas em laboratórios. Com o boom tecnológico, esse processo era mais rentável. As patentes dessas invenções estão caindo e ela precisa de novas alternativas”, diz Maria Behrens, pesquisadora do Instituto de Tecnologia em Fármacos de Farmanguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz. “Os fabricantes de medicamentos estão tendo de voltar a olhar para a natureza, ainda que como fonte de inspiração.”
O desenvolvimento de um medicamento inteiramente sintético leva em torno de dez anos. “Para cada molécula que se torna um medicamento, outras 10 mil são pesquisadas sem sucesso”, explica Antonio Britto, presidente da Interfarma, entidade que representa laboratórios nacionais e estrangeiros. Quando se estuda a biodiversidade, em vez de adequar a molécula à doença, como acontece com as sintéticas, busca-se compreender as possíveis aplicações daquela molécula natural. O caminho entre as primeiras análises da planta e o medicamento no mercado leva até 20 anos. Demanda investimentos pesados. Com o novo marco, as indústrias e as universidades começam a desengavetar ideias. “Vamos reavaliar 20 projetos com a biodiversidade brasileira, que estavam parados porque não tínhamos segurança para investir”, diz Paulo Nigro, presidente do Aché.
O Farmanguinhos, laboratório vinculado ao Ministério da Saúde, desenvolveu não um novo fármaco, mas um outro produto que pode ter efeitos importantes na saúde pública brasileira: um bioinseticida que mata o mosquito da dengue. O produto, feito à base de bactérias, começou a ser estudado na década de 1990. O Farmanguinhos passou a tecnologia para uma empresa privada, que aguarda apenas o registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária para comercializar o inseticida. Com o conhecimento científico em mãos, a iniciativa privada se manifestou. É o intercâmbio que Britto, da Interfarma, acredita ser o mais promissor. “O país precisa definir uma política de longo prazo, decidir que áreas quer pesquisar. Assim, a indústria farmacêutica vai se apresentar para financiar projetos”, diz Britto. Para Ana Lúcia, da Unicamp, “a academia brasileira tem cabeças altamente preparadas para levar adiante as pesquisas que podem ser feitas daqui em diante”.
O trabalho é imenso. O Brasil é lar de um quarto das espécies de plantas do mundo. E biodiversidade não é só planta. “Não à toa se fala da biodiversidade como sendo a economia do futuro”, diz Glauco Kruse Villas Bôas, coordenador do Núcleo de Gestão em Biodiversidade e Saúde de Farmanguinhos. Villas Bôas trabalha desde 2009, junto com as comunidades locais, as universidades e as indústrias, para montar um portfólio de projetos de inovação em medicamentos da biodiversidade “de baixo para cima”. “Isso deve levar uns dois anos para sair do papel. Queremos construir esse caminho, discutindo com toda a cadeia produtiva. Vão ser projetos de toda a sociedade, não só de uma universidade ou de uma indústria. Depois que todo mundo tiver se entendido, a gente apresenta para o governo e pede financiamento, fomento”, diz Villas Bôas. Depois de anos de paralisia, o Brasil começa a vislumbrar um ciclo saudável para estudar sua riqueza natural. Mas vale advertir: o otimismo deve ser sempre usado com moderação.
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