Idade Média: uma era muito mal compreendida
Obscura, brutal, injusta, suja... A época medieval não tem boa reputação, mas os especialistas começaram a rever os estereótipos mais populares.
Quando se pensa na Idade Média, é quase inevitável imaginar castelos inexpugnáveis, bruxas queimadas na fogueira ou infelizes camponeses à mercê de cruéis senhores feudais. Associamos aquela época histórica a um mundo de trevas e barbárie, embora também evoque histórias de cavaleiros andantes dispostos a sacrificar a vida pelo amor de cândidas donzelas.
Segundo Giuseppe Sergi, professor da Universidade de Turim (Itália), “atualmente, a Idade Média é vista como se tivesse ocorrido noutro mundo, tanto pela positiva como pela negativa”. Na visão desfavorável, só existe pobreza, fome, peste, caos e corrupção; a favorável inclui apaixonantes torneios, a vida na corte e príncipes magnânimos. Como este historiador escreveu no seu livro L’ Idea di Medioevo – Fra Storia e Senso Comune (“A Ideia da Idade Média – Entre a História e o Senso Comum”), “o Medievo foi uma das fábricas mais fecundas de lugares-comuns”; daí que os estudiosos do tema estejam empenhados em desmontar a falsa mitologia surgida em seu redor.
Para começar, é preciso recordar que o termo “Idade Média” foi criado no século XV, em concreto nos textos do humanista italiano Flavio Biondo e num documento do bispo Giovanni Andrea Bussi. O clérigo definiu como media tempestas (“épocas intermédias”, em latim) os quase mil anos que tinham decorrido desde a queda do Império Romano até à sua época, e que os homens de letras começariam a descrever como uma etapa sombria que se interpusera entre os gloriosos tempos clássicos e o resplandecente mundo moderno. Enterrar a barbárie medieval para recuperar os valores da cultura greco-romana constituiu a obsessão da época, batizada com o nome de Renascimento por Giorgio Vasari, um historiador de arte do século XVI.
Posteriormente, foram os ilustrados do Século das Luzes que contribuíram para aumentar a sua má fama, ao retratá-la como um período irracional e violento, dominado pela cruz e pela espada. Todavia, no final do século XVIII, os movimentos nacionalistas inverteram a tendência. Projetaram uma ideia mais positiva, embora igualmente distorcida, de uma Idade Média em que procuravam descobrir as origens heróicas dos incipientes estados. A literatura também proporcionou uma visão romântica, com os seus mitos sobre o amor cortês e as gestas épicas, estereótipos que seriam depois popularizados em romances e filmes muito pouco fiéis ao verdadeiro contexto histórico.
Tudo isto conduziu à noção generalizada de que a época medieval consistiu em dez séculos de ignorância e obscurantismo, durante os quais nada de importante foi inventado. No entanto, a medievalista italiana Chiara Frugoni recorda que foi nessa altura que surgiram vários dos pequenos avanços que melhoraram a nossa vida, como é o caso dos botões, dos garfos e das calças, e de aparelhos como a bússola, os óculos, a imprensa de caracteres móveis e o relógio mecânico.
Foi nessa alegada época obscura que começaram igualmente a configurar-se instituições como os bancos e as universidades, e que se divulgaram as notas musicais e a numeração árabe, além do xadrez e dos jogos de cartas. Na Baixa Idade Média, segundo o historiador francês Jean Gimpel, “a Europa ocidental conheceu um período de intensa atividade tecnológica, fecundo em invenções, uma verdadeira antecipação da revolução industrial inglesa do século XVIII”.
Viagens e cultura
Não se afigura, também, que fosse uma época de isolamento. De facto, alguns europeus chegaram a lugares remotos pela primeira vez: por exemplo, Marco Polo atravessou toda a Ásia, no século XIII, até chegar à China, e o viking Leif Eriksson desembarcou na América do Norte por volta do ano 1000.
Por outro lado, estudos recentes demonstraram que o ensino estava bastante difundido. Jacques Heers, diretor de Estudos Medievais da Sorbonne, explica que havia, no século XIV, muitos mestres remunerados, professores laicos com formação universitária que ensinavam gramática, matemática e catecismo às crianças das cidades.
Recentemente, diversos especialistas começaram também a questionar a proverbial ignorância do homem medieval. O escritor Umberto Eco recorda que é falso, como muitas vezes se diz, que todos pensassem que a Terra era plana até à viagem de Colombo. Na realidade, a noção da esfericidade do nosso planeta já tinha sido admitida pelos sábios da antiga Grécia, e não fora esquecida na Idade Média. No século VII, Isidoro de Sevilha mencionou o círculo equatorial e, no século XV, Fra Angelico pintou na catedral de Orvieto um Cristo-Juiz com um globo terrestre na mão.
Daí que os Sábios de Salamanca (comissão de cartógrafos, geógrafos e astrónomos daquela universidade designados pelos Reis Católicos para avaliar a viabilidade do projeto de Colombo), durante muito tempo apelidados de incultos pela historiografia, tivessem razão ao tentar impedir a viagem às Índias: não questionavam que a Terra fosse redonda, mas os cálculos errados sobre a extensão do oceano, que o almirante genovês imaginava demasiado pequeno. De facto, se as caravelas não tivessem deparado com a América, a expedição teria sido um fracasso. D. João II e os sábios e navegadores portugueses sabiam-no muito bem.
Outro estereótipo refere-se à suposta submissão da população medieval às superstições, à exaltação mística e aos medos irracionais. Foi daí que surgiu a ideia generalizada de que o pânico alastrou por toda a Europa, em vésperas do ano 1000, perante a chegada iminente do Apocalipse.
Chegou-se a dizer que todos deixaram trabalho e vida familiar para se dedicar à oração, às obras de caridade ou às peregrinações à Terra Santa (os mais abastados), mas não há vestígio de tão negro cenário nos documentos da época. Segundo o jornalista italiano Indro Montanelli, os arquivos guardados provam que “nem sequer naquele fatídico mês de dezembro os homens renunciaram aos seus hábitos de casar-se, enganar-se, matar-se ou vigarizar-se”.
Falou-se, ainda, do suposto vandalismo da sociedade medieval, acusada de reduzir a ruínas os monumentos da Antiguidade clássica. Todavia, em numerosas ocasiões, os verdadeiros responsáveis por pilhagens e devastações não foram os incultos homens medievais, mas algumas vedetas do sofisticado Renascimento. Alguns historiadores assinalaram que o Fórum Romano não foi espoliado na Idade Média, mas durante o pontificado do papa Júlio II (1443–1513), que utilizou as maravilhas antigas da capital italiana como pedreira para obter o mármore de que necessitava para as suas novas obras arquitetónicas. Segundo testemunhos da época, no final do período medieval, os templos e monumentos do Fórum ainda se conservavam quase intactos.
Não chegava à fome canina
E que dizer da suposta falta de higiene que reinava? Apesar do que se vê em alguns filmes, não é verdade que as pessoas se lavassem apenas duas ou três vezes por ano. Segundo o historiador alemão Johannes Bühler, “os banhos quentes foram, durante toda a Idade Média, uma prática generalizada, vista como motivo de prazer e hábito higiénico”. As casas de banhos eram numerosas já na Alta Idade Média e, posteriormente, foram também introduzidos no Ocidente os banhos de vapor, um costume de origem eslava.
Quanto à suposta escassez de alimentos, é verdade que a população europeia passou períodos de crise, mas a fome não foi uma constante durante dez séculos. Como escreveram Robert Lacey e Danny Danziger em The Year 1000 – What Life Was Like at the Turn of the First Millennium: An Englishman’s World (“O Ano 1000 – Como Era o Mundo na Viragem do Primeiro Milénio: O Mundo de um Inglês”), as escavações arqueológicas mostram, por exemplo, que os indivíduos que viveram em Inglaterra nos séculos X e XI tinham corpos fortes e saudáveis, de estatura semelhante à dos homens atuais, devido a um regime alimentar simples mas absolutamente frugal.
Grande parte dos estereótipos sobre a Idade Média dizem respeito à mulher, mas também precisam de ser revistos. Alguns estudos desmentiram que fossem obrigadas a casar quando eram adolescentes ou mesmo crianças. Chegavam, geralmente, ao casamento quando já eram mais do que adultas, exceto as que pertenciam à nobreza ou à realeza, cujas famílias negociavam as uniões quando ainda não tinham deixado a infância, por conveniências dinásticas ou territoriais.
Para o historiador francês Jean Gaudemet, as mulheres não se casavam muito cedo, sobretudo nos meios rurais, “possivelmente para controlar a natalidade”. No Ocidente, desde a Baixa Idade Média, começou a generalizar-se o modelo do casamento tardio, que viria a consolidar-se no século XVIII, quando a idade das nubentes se situava, em média, entre os 25 e os 28 anos.
Servas, bruxas e escravos
Outro mito muito difundido é o do costume dos cruzados de assegurar a fidelidade das esposas através do cinto de castidade, mas os especialistas concordam que se trata de uma falsidade, pois ninguém poderia sobreviver durante meses (ou mesmo anos) a usar junto à pele uma ferramenta de ferro que chegava a impedir os mais rudimentares hábitos de higiene íntima. O mesmo se poderá dizer do estereótipo sobre o direito de pernada, segundo o qual as servas da gleba tinham a obrigação de se entregar sexualmente, no dia do casamento, ao senhor feudal. A medievalista francesa Régine Pernoud chegou a afirmar que se tratava de uma invenção disparatada de alguns historiadores, prova de que a Idade Média tem sido vítima de uma autêntica conspiração.
No imaginário coletivo, a fogueira também faz parte do mundo medieval, geralmente associada à atroz perseguição de que foram alvo as mulheres acusadas de bruxaria, embora isso não se tenha passado, na realidade, naquela época. É verdade que a Inquisição foi criada no século XII, mas a verdadeira caça às bruxas constituiu um fenómeno que se desenvolveu na Idade Moderna. Segundo Brian P. Levack, professor da Universidade do Texas em Austin, “só começou no século XV, e terminou em meados do século XVIII”.
No entanto, seria um erro grave concluirmos do que foi dito que a Idade Média foi um período ditoso, caracterizado pelo progresso e pela convivência pacífica. Muitos investigadores reagem cautelosamente face ao aparecimento de novos falsos mitos (desta vez, positivos), que proporcionam uma imagem igualmente distorcida da história.
Por exemplo, para o medievalista francês Jacques Heers, não está provado que, após o declínio do Império Romano, se tenha acabado com o flagelo da escravatura e do comércio de seres humanos, que fora fundamental para a economia e a composição social das civilizações da Antiguidade clássica. Pelo contrário, na sua opinião, “durante todo o período medieval, existiram verdadeiros escravos na Europa, que eram comprados e vendidos sucessivas vezes”.
Bryan Ward-Perkins, investigador do Trinity College Oxford, rejeita a teoria, bastante popular ultimamente, de que as populações germânicas (os bárbaros) que irromperam no centro e no Sul da Europa, nos séculos IV e V, eram comunidades pacíficas cuja chegada não se processou através de invasões bélicas, mas como uma simples migração que as levou a atravessar as fronteiras do Império Romano. Não se pode passar de uma imagem extremamente sombria da Idade Média para outra, exaltada e romântica. “Continua a restar pouco ou nenhum espaço para o meio termo”, lamenta Ward-Perkins.
D.M.
Tempos com muita classe
A sociedade medieval era acentuadamente estratificada e as classes estavam compartimentadas de forma rígida, embora, pouco a pouco, as viagens, os descobrimentos, as invenções e o aparecimento de novos ofícios e instituições tenham aberto caminho a uma ligeira mas crescente mobilidade social.
Durante a Baixa Idade Média, sobretudo a partir do século XIV, surgiu uma burguesia profissional e urbana ativa cuja importância se iria consolidar durante o Renascimento.
Mitos ibéricos
Nas últimas décadas, os estudiosos têm vindo a questionar os mitos mais recorrentes da era medieval ibérica, a começar pelo próprio conceito da Reconquista como um processo unitário que começou com a batalha de Covadonga, no ano 722, e terminou, em Portugal, com a conquista definitiva de Silves por D. Afonso III, em 1253, e em toda a península com a tomada de Granada, em 1492, pelos Reis Católicos.
Para o filósofo espanhol Ortega y Gasset, “uma reconquista de sete séculos não é uma reconquista”, enquanto outros historiadores chegaram à conclusão de que os reis cristãos não podiam, de maneira nenhuma, ser descendentes diretos dos monarcas visigodos. Covadonga, provavelmente, não passou de uma escaramuça entre um pequeno grupo de resistentes asturianos e tropas islâmicas que se aventuraram, sem êxito, naquela agreste região do Noroeste peninsular.
Por outro lado, também se questiona a ideia contrária, a que apresenta o Al-Andalus como um paraíso em que muçulmanos, cristãos e judeus conviviam no mesmo território em paz e harmonia. A realidade é que a elite árabe que dominava o Sul e o Leste da península tinha de enfrentar constantes conflitos, não só contra cristãos e judeus como, também, com os seus próprios correligionários (berberes, neófitos) que se sentiam discriminados. O mito da sociedade multicultural não passaria, pois, disso mesmo, segundo alguns historiadores, para os quais esta versão idealizada não é menos imaginária do que a que defende um cenário oposto de intolerância extremista.
SUPER INTERESSANTE 169 - Maio 2012
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