quinta-feira, 26 de junho de 2014

Crônica do Dia - Detalhes da saudade - Walcyr Carrasco

Quando a gente perde alguém, doem os detalhes do cotidiano que ainda permanecem a nosso redor. Não é a simples presença física, nem o lado da cama vazio. São as pequenas rotinas a que a gente se acostumou. Um amigo meu recentemente chorou ao ver a tampa do vaso abaixada. Ele nunca abaixava, ela brigava. E, claro, sempre abaixava, porque mulher tem esse hábito, e homem só raramente. Ela saiu do apartamento, até deixou roupas. Foi ao entrar no lavabo, ao ver a tampa abaixadinha, como ela havia deixado, que ele se deu conta de que tudo acabara. Hesitou, como se erguê-la implicasse um ritual de separação. Lágrimas correram, enquanto ele simplesmente olhava para baixo. Quase urinou nas calças, então respirou fundo, ergueu.


– Parece idiota, mas significou mais um gesto de adeus – ele me disse.
Entendi. Pouca gente sabe, mas há muitos anos tive um filho. Quando ele partiu, após uma série de confusões com a mãe, fui a seu quarto e vi um pequeno par de tênis sujos, velhos. Durante o breve tempo em que ficou comigo, eu comprara novos. Só fiquei olhando para aqueles tênis – um deles rasgado na ponta – e sentindo dor, uma dor enorme. A convivência diária, o sorriso, esperá-lo voltar da escola, isso não aconteceria mais.  A separação foi mais dolorosa e  concreta do que eu podia supor. Algum tempo depois, ele partiu, desta vez para sempre, numa tragédia. A perda de um filho não tem tamanho. A de um amor também é grande demais, principalmente quando a gente descobre que está ficando velho e que os sonhos para o futuro já não podem permanecer no futuro. Lembro que há muitos anos, numa separação, a última chamada que recebi ainda estava na tela do celular. À medida que os dias passavam, o nome desaparecia, substituído pelos incontáveis telefonemas da vida cotidiana. Ah, que dor, eu olhava o celular só para ver seu nome! Senti falta, era o último laço que ainda, pelo menos em minha imaginação, nos ligava.
São esses pequenos detalhes que doem, porque constatam a mudança. Vão desde uma xícara suja deixada na pia, que dá vontade de nunca mais lavar, até a casa próxima, vendida e pintada de outra cor. Digo para mim mesmo:
– Antes, aquela casa era azul. Antes.
E vem a consciência:
– Estou sozinho.
Pior é quando a pessoa parte para sempre. Depois que meu pai morreu, encontrei uma de suas camisas, esquecida. Peguei nas minhas mãos, abracei, cheirei profundamente. Queria recuperar a existência de meu pai por meio de seu cheiro de perfume, desodorante, pele. Minha mãe bordava toalhas, e guardo todas que ela me deu, assim como as blusas de lã que tricotava. As blusas ainda uso nos dias de muito frio. As toalhas ficam no armário, intocadas, não deixo ninguém usar. Porque me trazem a lembrança de minha mãe bordando, de agulha na mão, e de mim mesmo, já adulto, roubando a agulha e fingindo que a espetaria. Essas lembranças me fazem reviver sua alegria, sua eterna criancice, que me fazia querer brincar como um menino. Sorrio e murmuro:
– Mãe, que falta você me faz!
Sei que é impossível recuperar alguém por meio dos  detalhes do cotidiano. E daí? Dá vontade de pegar o telefone, ligar. Mas também sinto vontade de esquecer. Como? Até mesmo o presente que nunca dei se torna uma recordação. Pelo menos, daquele momento em que acreditei haver uma chance. Estranho. O simples ato de ter comprado um presente me dá saudades de um momento feliz que poderíamos ter vivido e não existiu.  Meu grande amigo, Júlio, aconselha.
– Sai dessa!
Impossível. Os detalhes ainda estão por toda parte. Quando minha mãe morreu, nós, os três filhos, fomos num sábado e desmontamos sua casa, demos os móveis, as roupas. Tudo num único dia. Lá no fundo, sentia como um gesto de traição. Como desfazer tudo, de forma tão rápida e prática? Depois, entendi que meu irmão mais velho, Airton, estava certo. Por que guardar tudo aquilo, remoer a saudade? Se a separação é entre duas vidas, muitas vezes não sobra uma casa inteira para desmontar. Só rastros. Vestígios. Uma mensagem de celular lembrando algo esquecido ou levado por engano. Um nome num envelope ainda enviado para meu endereço. Dá vontade de olhar o nome mil vezes, como se houvesse uma força magnética para mudar tudo.
Perder, seja para sempre, ou numa separação, é difícil e doloroso. É a presença dos detalhes do cotidiano que nos aprisiona numa teia de saudades.

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