"É ela, é ela, é ela!”, gritavam moradores de Morrinhos, um dos bairros mais pobres de Guarujá, litoral paulista, no sábado, dia 3. Um círculo de pessoas formou-se ao redor da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos. A primeira delas desferiu um golpe de madeira em sua cabeça. Derrubou-a com a Bíblia que tinha nas mãos. Mais de 100 pessoas se aproximaram. Várias atiraram pedras, muitas desferiram socos e pontapés, outras arrastaram Fabiane como uma boneca de trapos pelo chão, em meio a vielas e casas de palafita. Desacordada, ela foi atirada por cima de uma ponte, seu corpo já inerte. Um morador desferiu, com um pedaço de madeira, um golpe em sua cabeça. Outro jovem aproximou-se e passou com a roda da bicicleta sobre ela. “Moça, se você não fizer nada, você vai morrer na mão desse povo!”, chegou a dizer uma moradora. Fabiane morreu dois dias depois. Chegou a ser levada viva ao hospital, mas não resistiu ao bárbaro ataque de uma multidão que acreditava estar diante de uma sequestradora de crianças. Em Morrinhos, o boato de uma onda de sequestros fora alimentado por uma página na rede social Facebook. Nenhuma criança desaparecera na região, e Fabiane não era culpada de crime algum. Foi brutalmente assassinada coletivamente, devido a uma fantasia que ganhou vida em computadores e celulares da comunidade onde morava.
A selvageria que matou uma dona de casa inocente foi filmada pelas câmeras de diversos telefones celulares, de agressores e testemunhas. Em algum momento, num dos vídeos, Fabiane ainda estava consciente. Balbuciava: “Não fui eu”. Houve quem tentasse acorrer em sua defesa, porém foi barrado e ameaçado de agressão. Alguns curiosos dirigiram-se ao local de táxi para assistir à barbárie, avisados por meio de redes sociais. “Pegaram ela”, dizia uma das mensagens. O que era boato se transformara em espetáculo de tortura, presenciado por cidadãos que tinham ouvido falar sobre uma mulher que sequestrava crianças para fazer magia negra. “Os boatos veiculados pelas redes sociais não são verdadeiros”, disse Luiz Ricardo Lara, delegado do 1º Departamento de Polícia de Guarujá, responsável pelas investigações do assassinato de Fabiane.
A coisa mais próxima do que dizia o boato acontecera muito longe dali, no Rio de Janeiro. Em 2012. Um caso real de sequestro no bairro de Ramos, Zona Norte do Rio, gerou um retrato falado, divulgado na internet. Rapidamente, usuários reproduziram as imagens, que chegaram a Guarujá. Segundo a história, que já virara lenda, na cidade paulista a sequestradora passara a praticar magia negra. Um de seus principais promotores foi a página Guarujá Alerta, hospedada no Facebook. Criada em novembro de 2012, ela tem mais de 57 mil seguidores. Apresenta-se como uma “página de fatos, acontecimentos, notícias, reclamações e sugestões do morador e turista de Guarujá”. Na prática, serve como plataforma de divulgação e avisos sobre crimes na cidade. No dia 25 de abril, o Guarujá Alerta divulgou a história dos sequestros. Um texto falava sobre uma mulher que roubava crianças da região para fazer bruxaria. Usuários publicaram retrato falado com uma suspeita negra e jovem. Num ambiente fértil para a desinformação, surgiu na página do Guarujá Alerta uma foto real, colorida, relacionada à suspeita – e apagada da página depois do linchamento de Fabiane. A foto mostrava uma loira que, descobriu-se depois, também não tinha ligação com sequestro algum. Fabiane tinha poucas semelhanças com qualquer uma das imagens. Era mais magra e mais velha que a mulher do desenho feito no Rio, mas um dia antes de ser morta clareara o cabelo. A partir da confusão na página do Facebook, moradores de Morrinhos colocaram na cabeça a ideia de uma loira criminosa que nunca existiu.
A internet e algumas redes sociais vêm sendo usadas no Brasil como canal de ações de moradores contra o avanço da criminalidade. Convencidos de que precisam ajudar a polícia, ou mesmo céticos sobre a capacidade das forças policiais, moradores organizam-se em ambientes digitais. Sem capacidade profissional para distinguir fato de ficção, muitos sites apenas alimentam o medo e o desejo de vingança do público que os consome.
Diego Scarpa, advogado do dono do Guarujá Alerta, diz que tem colaborado com as investigações sobre o assassinato de Fabiane. Afirma já ter enviado à polícia material com as postagens sobre os rumores de sequestros. Admite que parte das publicações foi apagada do site – Scarpa afirma não saber o motivo. O responsável pela página depôs no dia 6, sem ser identificado pela polícia. Ele conversou por telefone com ÉPOCA, mas não informou seu nome ou qualquer outro dado pessoal. Reconheceu não ser jornalista. Disse sofrer dezenas de ameaças e jamais ter dito que o rumor que levou à morte de Fabiane era verdadeiro. Também afirmou não se lembrar de ter publicado a foto de uma mulher loira em sua página. A imagem, diz ele, foi publicada por usuários. “Arrependimento não tenho, porque estamos colaborando com a polícia, ajudando a população de Guarujá de alguma forma.” Segundo o responsável pelo Guarujá Alerta, a popularidade da página rendeu-lhe uma parceria informal com o 21º Batalhão de Polícia Militar do município, para divulgar fatos policiais em primeira mão. A polícia não confirma o acordo.
Antes de chegar a Guarujá, a lenda sobre a sequestradora de crianças, nascida no Rio, passou por Três Rios, Rio de Janeiro, em abril deste ano, também alimentada por um site na internet – o Entre-rios. Um dia após um desmentido da polícia, o site paranaense Pontal Notícias divulgou o mesmo retrato falado, acrescido de informações sem base na realidade – afirmava que a sequestradora praticava magia negra e agia em Pontal do Paraná. Ao jornal O Globo, o administrador da página, de 17 anos, disse que informa “a população do que acontece em nossa volta, sem enrolação, de modo claro e objetivo”.
A preocupação com o avanço da criminalidade é a matéria-prima de muitos outros espaços digitais. O site Viver em Santos é o correspondente do Guarujá Alerta na cidade vizinha. Criado em 2012, já tem 110 mil seguidores. O Crimes São José, voltado para moradores de São José dos Pinhais, no Paraná, é acompanhado por 7 mil usuários. ÉPOCA identificou ao menos dez sites espalhados pelo país com o mesmo propósito. A maioria longe dos grandes centros urbanos. Defensores de ações drásticas contra criminosos, esses espaços na internet se transformam em plataformas para clamores bárbaros. No dia em que Fabiane foi linchada, um usuário da página Viver em Santos publicou uma fotografia de um homem detido pela polícia. “Deviam (sic) ter amarrado no poste e encher de porrada (sic)”, dizia um dos comentários. A socióloga Jacqueline Sinhoretto, da Universidade Federal de São Carlos, afirma que aqueles frustrados com o aumento da violência usam esses sites como plataforma para combater o que consideram excesso de direitos humanos a criminosos. “Trata-se de uma necessidade de eles se reafirmarem”, diz. “E eles ganharam espaço por meio das redes sociais.”
Não é fácil identificar responsáveis por crimes iniciados na internet. Pela lei atual, postagens falsas ou ofensivas devem ser retiradas imediatamente pelo responsável por páginas ou redes sociais, desde que comunicados por alguém – como a própria vítima ou terceiros. O estabelecimento de culpa depende da avaliação individual de cada juiz responsável por esses casos. O Marco Civil da Internet, que entrará em vigor no fim de junho, é tímido sobre a questão. Segundo ele, um conteúdo impróprio deve ser retirado do ar de forma obrigatória pelo provedor do conteúdo apenas se houver ordem judicial. “A velocidade da Justiça não acompanha a dinâmica e a disseminação veloz de conteúdo na rede”, afirma Renato Ópice Blum, especialista em Direito Digital. Ao falar a ÉPOCA, algumas das testemunhas que prestaram depoimento à polícia sobre o linchamento de Fabiane identificaram um culpado do crime tão vago quanto inimputável: “A culpa foi da internet”. Para Isabela Guimarães Del Monde, especialista em Direito Digital, a atuação dos internautas precisa ser mais consciente e responsável. “Muitas pessoas com ensino superior publicam e falam coisas que não falariam fora da internet”, diz Isabela. “O mau uso das redes sociais pode servir à prática de crime.” Um site dedica-se a fazer o movimento contrário. O e-Farsas busca desmentir boatos propagados na internet. Seu dono, Gilmar Lopes, diz desmentir ao menos um boato por dia.
Em 2014, o Brasil já registrou outros casos de agressões coletivas a criminosos ou suspeitos. Em janeiro, um adolescente de 15 anos foi espancado por mais de dez homens e amarrado nu a um poste, no Flamengo, Zona Sul do Rio. Os agressores diziam que se tratava de um assaltante. Em Teresina, Piauí, um vídeo foi publicado na internet com cenas de um homem amarrado e atirado sobre um formigueiro. Para Jacqueline Sinhoretto, os linchadores têm plena consciência da gravidade de sua atitude. “O importante para eles é que alguém pague pela violência da mesma forma. Eles estão conscientes disso e sabem o que fazem”, diz. Há poucas estatísticas sobre linchamentos no Brasil. Com base em registros da imprensa, o Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, calculou que, de 1980 a 2006, houve ao menos 1.179 casos no país.
Fabiane de Jesus deixou marido e duas filhas – uma de 13 anos, outra de apenas 1. Na primeira semana de investigação, a polícia prendeu três acusados de participar do linchamento – Valmir Dias Barbosa, de 47 anos, Lucas Rogério Fabrício Lopes, de 19, e Carlos Alex Oliveira de Jesus, de 22. Lucas Lopes disse estar “muito arrependido”. A polícia ainda investiga o peso que os boatos compartilhados na página do Guarujá Alerta tiveram no linchamento. Se apurada a real intenção do dono da página em promover algum tipo de violência, ele pode ser processado por incitação ao crime – tal como os demais usuários que tenham compartilhado o boato em redes sociais. A pena para esse crime é de três a seis meses de reclusão. Caso os rumores tenham sido alimentados apenas por usuários do site, seu dono não pode ser considerado responsável. “Queremos justiça”, diz o cunhado de Fabiane, Nildo Alves das Neves, de 42 anos. “Um país sério tem de acabar com essa mamata da internet, onde todo mundo faz o que quer, e ninguém faz nada. Esses sites cometem barbaridades e põem em risco a vida de inocentes.” Mais que isso. Põem em risco a crença nas leis e nas relações civilizadas dentro da sociedade brasileira. Qualquer linchamento é um episódio revoltante, gravíssimo, intolerável no mundo do século XXI. O linchamento de um inocente, baseado em boatos alimentados por grupos organizados, é uma tragédia ainda maior, que vitima a sociedade como um todo.
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