Site Época Data: Domingo, 30 de março de 2014. |
A morte brutal de Claudia Silva Ferreira é mais que uma tragédia familiar.
Ela compromete todo um esforço para melhorar a polícia no país. Um vídeo de 41 segundos chocou o país na semana passada. Ele mostra uma viatura policial arrastando um corpo. A viatura – uma Blazer – está em alta velocidade. Numa avenida de duas pistas, ela ultrapassa um carro pela esquerda e, depois, dois carros e um ônibus pela direita. A Blazer freia e, logo depois, some do quadro. Quando reaparece, estão em cena dois policiais de costas, recolocando o corpo na parte traseira do carro. Novamente a cena é cortada. No final, a Blazer reaparece dando partida. O vídeo foi compartilhado anonimamente nas redes sociais e gerou protestos no país inteiro. Quando se descobriu o nome da mulher que fora arrastada, vários usuários do Facebook substituíram suas fotos pela foto de Claudia Silva Ferreira. Àquela altura, ela já estava morta. >> Ruth de Aquino: Será o começo do fim da PM? Claudia tinha 38 anos e morava em Madureira, região de classe média baixa da Zona Norte do Rio de Janeiro. Mais precisamente, num enclave pobre do bairro, o Morro da Congonha. Trabalhava para uma companhia de limpeza, a Nova Rio. No domingo, dia 16, ela saiu de casa cedo para comprar pão com a amiga Márcia. Levava R$ 8 e um copo amarelo com café. No caminho, marcaria horário para fazer o cabelo e as unhas – gostava de começar a semana arrumada. Sentada no meio-fio na frente de casa, a vizinha Telma Ribeiro da Silva, paraplégica, cumprimentou as duas amigas. Claudia disse: “Vai para o baile?”. As duas riram. >> Diego Escosteguy: A violência define nosso país Foi Telma quem primeiro ouviu os disparos de fuzil, 10 metros adiante. “É morador! É morador!... É a Cacau, balearam a Cacau! Mataram a Cacau!”, gritou em desespero, dando o alerta. Segundo moradores ouvidos por ÉPOCA, não houve tiroteio. “Não havia confronto. Os PMs já vieram atirando”, afirma Telma. Em seguida, um policial se aproximou da mulher caída no chão, mãe de quatro filhos, que ainda criava mais quatro sobrinhos – tudo isso com uma renda familiar de R$ 1.600. Claudia estava de bruços, com uma enorme mancha de sangue nas costas. Fora atingida por dois tiros: um no peito e outro no pescoço. “A bala pegou aqui, bem no meio do peito, e saiu pelas costas. Ela virou com o impacto e levou o segundo tiro no pescoço”, diz Thaís, filha de 18 anos de Claudia. Moradores cercaram os policiais e os acusaram dos disparos. O clima esquentou. Cercados e sob tensão, os policiais pediram reforços, pegaram Claudia pelas calças e a jogaram no bagageiro do carro – “como um bicho”, na descrição da família. Segundo o regulamento da PM, feridos a bala devem ser socorridos no banco traseiro. Os policiais alegaram não haver espaço para abrir as portas – embora a rua onde Claudia tombou tivesse 3 metros de largura, fora as calçadas, e fosse pavimentada. Ainda na descida da ladeira na favela, a porta do bagageiro se abriu, e Claudia caiu pela primeira vez. Os PMs a recolocaram dentro e seguiram. Na Estrada Intendente Magalhães, uma via ampla, novamente a mala abriu, e ela tombou. Dessa vez, a viatura policial seguiu com a porta traseira aberta, e o corpo de Claudia foi arrastado por 350 metros. Foi nesse momento que um motorista percebeu a cena bárbara, sacou o celular e gravou. Nas redes sociais, a história trágica de Claudia e sua família foi apontada como um exemplo cruel da maneira como a Polícia Militar trata a população mais pobre. A tragédia é, no entanto, mais complexa – e não se restringe à família dela. Os investigadores partem de duas questões básicas. Claudia já estava morta quando foi jogada na Blazer? De onde partiram os tiros? Os primeiros PMs a chegar a ela, segundos após cair baleada, negam ser os autores dos disparos. Dizem que já a encontraram no chão. Embora acusados de atos violentos, os “socorristas” que arrastaram Claudia, os subtenentes Adir Machado e Rodney Archanjo e o sargento Alex Sandro Alves, negam ter sido os autores dos disparos. Foram presos pelo socorro prestado erroneamente e fora das normas – e libertados na quinta-feira. O 9º Batalhão, onde servem os três PMs presos, tem histórico de violência em crimes famosos. Eram de lá os cerca de 30 PMs do grupo de extermínio “Cavalos Corredores”, acusados de matar 21 moradores na Chacina de Vigário Geral, em 1993, e 11 menores na Chacina de Acari, em 1990. Neste ano, um adolescente espancado por PMs morreu, e policiais mataram dois rapazes que carregavam uma peça de motocicleta, acreditando tratar-se de arma. Um levantamento de ÉPOCA mostra que, entre 2011 e 2013, integrantes da unidade registraram 283 autos de resistência (mortes de civis em confronto com a polícia) – um a cada quatro dias. Em 2012, o 9o Batalhão, sozinho, respondeu por 14% de todos os casos da capital. Em 2013, a 10% do total. Dois dos três PMs responsáveis pelo socorro a Claudia somavam 16 homicídios na carreira, segundo a polícia. O jornal Estado de S. Paulo afirmou que eles estão envolvidos direta ou indiretamente em 62 ações, em que 72% dos socorridos não resistiram. Em encontro com a família de Claudia, na quarta-feira pela manhã, o governador Sergio Cabral e o comando da Polícia Militar se desculparam, condenaram o comportamento dos policiais e prometeram ajuda financeira, além de investigar o crime a fundo. Para o marido, Alexandre, sem o vídeo chocante, a morte da mulher seria apenas mais uma. A presidente Dilma Rousseff se solidarizou pelo Twitter. “A morte de Claudia chocou o país”, afirmou. “Nessa hora de tristeza e dor, presto a minha solidariedade à família e aos amigos de Claudia.” Dilma e Cabral sabem que acontecimentos como esse têm uma dimensão que vai além da tragédia familiar. Eles comprometem o esforço para melhorar a segurança da população mais pobre – a que mais sofre não apenas com a violência policial, mas também com o crime organizado. Trata-se de uma escalada de violência em que os próprios policiais são vítimas. Depois de três ataques seguidos a Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) na quinta-feira, dia 20, o governador Cabral solicitou envio de tropas federais ao Estado. As forças de segurança do Rio de Janeiro reduziram em 69% a morte de civis pela polícia, em cinco anos. A queda é expressiva – de 1.330 para 414. Mas o Rio ainda é o Estado que mais mata. A criação das UPPs com o Programa de Metas, que premia a redução de letalidade, restringiu os confrontos em comunidades e reduziu em 43% os policiais militares mortos em serviço – de 73, entre 2007 e 2009, para 42, entre 2011 e 2013. A pesquisa Os impactos da política de pacificação no Rio de Janeiro, de Claudio Ferraz e Bruno Ottoni, do Departamento de Economia da PUC-Rio, mostra um aumento considerável na confiança da população no Disque-Denúncia. Seguros, os moradores passaram a denunciar mais. Em outro estudo, os mesmos autores constataram que a população beneficiada pela redução da violência retribui com votos nas eleições. Ao comparar os resultados das eleições de 2006 com 2010, verificaram que o governador Cabral conquistou muito mais votos, entre um pleito e outro, nas áreas beneficiadas. A diferença chegou a 22% de votos a mais. A “confiança” de que falam Ferraz e Ottoni é a palavra-chave. Para que os programas de segurança deem certo, é necessário que a população acredite na polícia e confie nela. Essa confiança se perde quando parece que a polícia está contra a população que deveria proteger. Por isso, abusos de policiais – como os que causaram a tragédia de Claudia e sua família – devem ser punidos severamente. Foi o que ocorreu na sexta-feira, quando o tenente-coronel Claudio Luiz da Silva, acusado de ser o mandante do assassinato da juíza Patrícia Acciolly, em 2011, foi condenado a 36 anos de prisão. No Morro da Congonha, região do 9º Batalhão, a confiança na polícia era escassa. Claudia tinha pavor de que o filho Weverton, de 16 anos, fosse confundido com um traficante pela polícia e acabasse preso ou morto. Criou regras rígidas para evitar que isso acontecesse. Weverton sempre as seguiu à risca. Não corria pelas vielas da favela, não ficava à toa nem jogava bola na praça. Só saía acompanhado de um dos irmãos gêmeos de 9 anos, e com a identidade. “Ela sempre me alertou para eu não ser confundido e levar tiro, ser preso no lugar de outro, levar a culpa. E foi o que aconteceu com ela”, disse Weverton, olhar perdido, dois dias depois de a mãe levar dois tiros de fuzil, ao virar uma esquina a 50 metros de casa. |
sábado, 21 de junho de 2014
Te Contei, não ? - Um tiro na segurança pública
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