sábado, 14 de junho de 2014

Te Contei,não ? - O novo Santo Anchieta

O padre missionário será canonizado esta semana. Por que o Vaticano aposta num santo com aparência jovem para os católicos


RENOVAÇÃO A ilustração do padre José de Anchieta escrevendo na areia (Foto: Alfredo Cherubino)

Nesta quinta-feira, dia 3 de abril, o padre Cesar Augusto será obrigado a trocar sua conta de e-mail, com mais de uma década de uso. Nessa data, o sacerdote por quem padre Cesar é devoto será alçado a santo pelo papa Francisco, na primeira leva de canonizações de 2014 (anteriormente, a canonização estava marcada para o dia 2 de abril, mas o Vaticano adiou). O espanhol José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil, será o terceiro santo doBrasil, num processo que durou mais de 400 anos. Por isso, o endereço de e-mail de padre Cesar, “beatojosedeanchieta”, não fará mais sentido. Cesar assumiu a causa de Anchieta em 2001 como vice-postulador, um advogado do candidato a santo. Fez mestrado por quatro anos. Nesse mergulho histórico, descobriu um Anchieta por ele desconhecido (e Cesar é da mesma ordem de Anchieta, a Companhia de Jesus). Não era o Anchieta franzino, com tuberculose óssea, dono de uma corcunda. Cesar encontrou um homem-modelo para os dias de hoje.

O novo Anchieta, como padre Cesar diz, será revelado pelo Vaticano nos próximos dias. A ilustração do jovem Anchieta na abertura desta reportagem, criada por Alfredo Cherubino, funcionário da Rádio do Vaticano, estará em santinhos e em todo o material de comemoração da canonização, tanto em Roma quanto no Brasil. Personificar o novo santo brasileiro na figura de um jovem com cerca de 20 anos é uma aposta da Igreja para encontrar os devotos e a juventude. “Anchieta não é um santo-modelo para o passado”, afirma Cesar. “As virtudes dele servem de inspiração para a atualidade.” A seguir, ÉPOCA mostra como essas lições são atuais, independentemente da fé ou da religião de cada um.


O caminho de Anchieta converge para os rumos almejados por papa Francisco, em que nem fé nem religião são impostas. O caminho, dizem os jesuítas, é a liberdade e o respeito. Por isso, alguns deles não hesitam em afirmar que a atenção dada ao caso de Anchieta pelo papa não foi acaso. “Significa uma afeição ao Brasil”, diz padre Marc Lindeijer, assistente do postulador-geral na Cúria Romana. Anchieta, diz Marc, é o exemplo que a Igreja quer. “É a pessoa que não está contente com os rumos e se move”, diz. “Qualquer um pode ser um missionário dentro de casa.” 

O pedido por atenção ao processo de canonização de Anchieta chegou ao papa Francisco no ano passado por meio de Dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Francisco passou a missão ao cardeal italiano Dom Angelo Amato. No caso de Anchieta, não havia milagres confirmados, apesar de várias citações em suas biografias. Amato sugeriu aos jesuítas que olhassem para o conjunto da obra de Anchieta, como missionário e evangelizador. A tarefa chegou às mãos de padre Cesar. Com a ajuda de uma assistente, ele encontrou ao menos 50 fiéis de Anchieta em cada Estado do país. No escritório dedicado à causa da canonização, em São Paulo, chegavam cerca de 300 cartas de devotos por mês. Cesar não faz ideia da quantidade de e-mails. Esses novos dados chegaram ao Vaticano. Com todas as informações, o pedido pelo santo brasileiro foi acolhido. 


Anchieta chegou ao Brasil depois de uma temporada de estudos em Coimbra, em 1553. Veio com a segunda esquadra de jesuítas para evangelizar os índios. Ordenou-se padre em 1565, na Bahia. As biografias de Anchieta mostram a conciliação de interesses entre a política de evangelização dos jesuítas e os planos de colonização do rei de Portugal, Dom João III, para proteger as terras do Novo Mundo. Na época, eram 140 os jesuítas no país. Hoje são 500, e 17 mil no mundo. Aqui, Anchieta ficou conhecido como Apóstolo do Brasil. Em seu legado, constam fundações de cidades – como São Paulo –, de colégios, de hospitais, a criação da primeira gramática brasileira – em tupi – e seu talento para poesias, com obras como o “Poema à Virgem”.
 

Como um candidato se torna santo (Foto: Ilustração: Farrel/ÉPOCA)
O Brasil é o primeiro país do mundo em número de católicos. São cerca de 120 milhões. Terá, com Anchieta, três santos a partir da semana que vem. Os Estados Unidos têm 78 milhões de católicos e mais que o triplo de santos que os brasileiros. “Três é um número pequeno para um país com as dimensões e o número de devotos que tem”, afirma Marc, da Cúria. Há várias explicações para termos tão poucos santos e vários motivos por que essa situação mudará.  Contra, temos nossa própria história, afirma Marc. A Igreja Católica é relativamente jovem no Brasil. Surgiu no século XVI. Antes, a comunicação com o Velho Mundo era difícil, e isso atrapalhava os processos de beatificação e canonização. A falta de especialistas nos processos era outro obstáculo. “Faltava experiência”, afirma a irmã Célia Cadorin, pesquisadora que atuou como postuladora, em Roma, e cuidou da canonização de Madre Paulina. Aos 87 anos, ela presta assessoria para instituições que assumem causas de santos. A situação dos santos brasileiros tende a mudar. A tecnologia tornou o contato com Roma mais ágil, e mais postuladores se qualificam para as causas. Da demanda anual que chega ao Vaticano, com cerca de 5 mil pedidos de beatificação e canonização, os processos do Brasil são bem reconhecidos. “O desenvolvimento do trabalho está ótimo. Agora veio Anchieta, mas vocês (brasileiros) terão novidades”, afirma Marc. O obstáculo que permanece é o custo. O processo de Madre Paulina custou R$ 100 mil à congregação dela.

A devoção a Anchieta, diferente dos outros dois santos brasileiros, Frei Galvão e Madre Paulina, não é sentida em romarias ou por graças concedidas. O aposentado Juberto Ferraz Braga, de 75 anos, conheceu Anchieta na dor, depois de perder um de seus filhos, em 1990. “Fiquei entusiasmado com a bondade de Anchieta”, diz. Dez anos depois, Juberto pediu outra ajuda ao santo. Dessa vez, por sua saúde. Internado em decorrência de um linfoma, foi benzido por padre Cesar, o vice-postulador de Anchieta. “Ele levou o fêmur de Anchieta. Tão logo me deu a bênção, comecei a melhorar”, diz. “Foi como se Deus tivesse colocado a mão em mim.”

A canonização ajudará o país a conhecer o Anchieta religioso, além daquele ensinado nos livros de história. Para o cardeal Dom Odilo Scherer, arcebispo metropolitano de São Paulo, a figura do santo estimula a fé. “Se a fé despertou Anchieta, por que não pode despertar o jovem de hoje também?” ÉPOCA conversou com padres jesuítas, historiadores e psicólogos para mostrar o que aprender com as virtudes de Anchieta. 

I. Cuide dos outros
Uma das mensagens que Francisco pontua desde o início de seu papado, no ano passado, é a “teologia do cuidado com os outros”. O texto da fundação da Companhia de Jesus, escrito por Inácio Loyola em 1540, reforça a missão de ajudar na salvação das pessoas. “É ter a vida voltada para fora de si mesmo. Isso constituiu a novidade da companhia”, afirma o padre jesuíta Carlos Alberto Concieri, diretor do Pátio do Colégio e do Museu de Arte Sacra dos Jesuítas em Embu das Artes, ambos em São Paulo. Em suas cartas trimestrais ou quadrimestrais a Loyola, Anchieta narra as vezes em que fora acordado na madrugada para ajudar um doente ou socorrer um índio. E como a dedicação o ajudou a esquecer seus problemas. Padre Concieri recita um dos trechos das cartas escritas por Anchieta. “Como não tenho os mimos de Coimbra e os trabalhos são tantos, nem me lembro das dores que me fazem sofrer.” Mais que buscar a salvação do outro no sentido literal da palavra, a mensagem é estar atento às necessidades de quem está perto. Muitos se queixam dos valores excessivamente individualistas da sociedade atual. Ouvir a palavra de Anchieta pode ser um antídoto para estimular a solidariedade. 

DEVOTO Juberto Braga, em São Paulo. Ele se tornou fiel depois da morte de um filho (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)
II. Exercite a flexibilidade
A modéstia fez parte da vida de Anchieta. Os sinais aparecem sobretudo em suas cartas, em que é possível conhecer um pouco mais dele. Anchieta guardava pouco de suas orações e versos. Ou mandava a seus superiores ou dava a amigos e devotos. Preferia não assiná-los, algo que os jesuítas enxergam como gesto de humildade. Quando era preciso se identificar, escrevia Joseph, seu primeiro nome. A modéstia o ajudou em suas tarefas no Brasil. Por seu empenho em aprender com qualquer um que se mostrasse solícito, Anchieta conseguiu se integrar rapidamente tanto com os colonos como com os índios. Com os primeiros, aprendeu a fazer sapatos. Com os indígenas, conheceu o poder curativo das ervas da floresta. Padre Raul Paiva, autor de diversos livros sobre o trabalho dos jesuítas, conta que as descobertas medicinais de Anchieta estão na Faculdade de Medicina da Bahia.

O movimento de abertura proposto por Anchieta, afirma o psicólogo Odair Furtado, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é o mesmo que a sociedade de hoje exige. Num ambiente em que tudo muda com agilidade, novos conhecimentos são requisitados a todo momento. Isso pede flexibilidade do indivíduo para entender que ninguém, nunca, está 100% pronto.
III. Não esqueça a educação
Anchieta defendia a educação para todos e uma atenção distinta para cada aluno, com base na diversidade cultural e de conhecimento, para não abdicar da escola e progredir. Os colégios fundados pelos jesuítas destinavam-se à formação de sacerdotes e também à evangelização das famílias dos colonos e indígenas no século XVI. No começo deste ano, a Unesco (braço das Nações Unidas para educação e cultura) divulgou que nenhum dos seis objetivos globais propostos por ela será alcançado até 2015. Um deles mostra que um quarto da população jovem não sabe ler. No Brasil, 13 milhões são analfabetos. Mais de 20% dos estudantes saem da sala de aula sem aprender a ler. Para Anchieta, a educação deve ainda deixar um legado além do conhecimento intelectual: a capacidade de pensar e refletir sobre as escolhas.

IV. Respeite a diferença
Um dos destaques na evangelização de Anchieta era o modo como ele percebia a cultura dos índios. Antes de ensinar, aprendia com o outro. Por ter sido criado por pai basco, mãe espanhola e empregados guanches, Anchieta cresceu com o domínio sobre vários idiomas. Essa facilidade apareceu nos estudos, quando Anchieta, em 1914, seguiu com um irmão mais velho para estudar no Real Colégio das Artes, em Coimbra, Portugal. Essa bagagem permitiu que ele, logo depois de chegar ao Brasil, dominasse a língua dos índios, o tupi. Anchieta escreveu a primeira gramática tupi – a obra foi usada em missões até o século XVIII. Isso construiu um elo entre o missionário e a tribo. Os índios reconheciam o esforço de Anchieta para evangelizá-los em sua própria língua, em vez de forçá-los a compreender uma nova. “Anchieta não impõe religião”, afirma padre Cesar, vice-postulador de Anchieta. No teatro, misturava anjos e santos do catolicismo a personagens da mitologia tupi para cativá-los. Em 1986, Anchieta ganhou o título de fundador da literatura e do teatro. O chamado de papa Francisco no ano passado seguiu o mesmo caminho, ao mostrar que a imposição de ideias ou valores não deve ser a busca de ninguém. “Somos chamados a respeitar, em cada pessoa, primeiramente sua vida, sua integridade física, sua dignidade, seus direitos, sua reputação, seu patrimônio, sua identidade étnica e cultural, suas ideias e suas escolhas políticas.”

Oração  a São José de Anchieta (Foto: ÉPOCA)
V. Aposte no diálogo
A trajetória de Anchieta é marcada pelas tentativas de conciliação pela paz. Na mais conhecida, Anchieta acompanhou o também padre jesuíta Manuel da Nóbrega à Praia de Iperoig (atual Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo) para firmar um acordo de paz com os índios tamoios, que oprimiam a Capitania de São Vicente e levavam “escravos, mulheres e filhos dos cristãos, matando-os e comendo-os”, como escreveu Anchieta. Na praia, os padres foram cercados pelos índios. Anchieta, fluente na língua tupi, tentou explicar que estavam em missão de paz. Rezaram uma missa e iniciaram a catequese. Desconfiados, os índios buscaram os colonos portugueses para confirmar a história. Por seis meses, os sacerdotes ficaram reféns. Caciques radicais sugeriram que os padres fossem executados. Durante todo o tempo de cativeiro, Anchieta não desistiu. Seu poema mais conhecido e extenso, “Poema à Virgem”, foi criado nesse período. “Enquanto a minha presença/amansava os tamoios conjurados/e os levava com jeito à suspirada paz,/tua graça me acolheu/em teu materno colo; e teu poder me protegeu intactos corpo e alma.” No mundo atual, ainda repleto de conflitos – muitos religiosos –, o exercício da tolerância e do diálogo é mais importante do que nunca. 

VI. Encontre uma motivação incrível
Anchieta deixou os estudos em Coimbra para ser missionário no Novo Mundo. Rezava de dez a 15 missas diárias, além dos estudos, meditação e oração. Enfrentou chuva e frio. Passou fome para seguir sua missão. Em suas cartas, estão as privações. “Aqui se faz uma casinha de palha, com uma esteira de canas por porta, em que moravam por algum tempo bem apertados os irmãos; mas esse aperto era ajuda contra o frio, que naquela terra é grande com muitas geadas. As camas eram redes que os índios costumam fazer; os cobertores, o fogo.” Como não existiam livros, Anchieta passava as noites copiando lições para os alunos. Por trás dessa determinação, afirma padre Concieri, está a motivação, algo capaz de mover alguém. Anchieta encontrou a origem da sua na fé. A busca por essa inspiração, que leva à realização e à satisfação, nunca foi tão discutida dentro e fora do ambiente de trabalho. É a tal paixão produtiva. Felicidade é a busca que mais cresce no ranking das Melhores Empresas para Trabalhar, publicada anualmente por ÉPOCA em parceria com o Great Place to Work. As empresas querem saber o que move seus funcionários. Está nos filmes, como em Invictus, em que Nelson Mandela usa o esporte para unir um país. Seja a fé ou o senso de envolvimento numa causa, a motivação hoje leva pessoas e comunidades a grandes conquistas.


VII. Seja livre
Um dos muitos biógrafos de Anchieta, padre Armando Cardoso, falava dele como se o tivesse conhecido. Armando conta que Anchieta era um homem que usava os bens materiais por necessidade. Não dependia deles para ser feliz. Fazia suas longas viagens pela costa brasileira, de Pernambuco a São Paulo, ou a pé ou com um barco. Carregava pouca coisa. A jornalista Leila Ferreira, autora de A arte de ser leve, diria que Anchieta veio ao mundo para andar de bicicleta – leve, sem amarras e sem peso na mala –, e não para andar de trator – com dificuldade e devagar. É uma oportunidade para cada um pensar se precisa simplificar a vida para alcançar a liberdade que tanto almeja. 


Revista Época 

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