Por Felipe Garcia de Medeiros
Poesia Brasileira: origens e laços
A poesia brasileira de origem Lusitânia, iniciada com a chegada dos jesuítas, tendo como precursor o padre José Antônio de Anchieta e, desde o início, viu-se cada vez mais distante da sua gênese confusa e, com o tempo, adquiriu cheiros e sabores típicos e nacionais. Uma nova forma de ver o Brasil foi resgatada quando, em Portugal, Camões publicara Os lusíadas (1572) – ainda não se pensava com um carinho especial no paraíso que havia do outro lado do oceano pacífico. A descoberta e ocupação portuguesa trouxeram, além de exploradores, cânones literários, e Luís Vaz de Camões transmitiu para nação brasileira, similarmente como Homero o fez para Virgílio, quando este, inspirado no grego, escrevera a Eneida, o sentimento de pátria e de expressão única, nacional, e ontológica da terra. Influências ultramarinas, épicas ou líricas, moldaram, no ápice do romantismo brasileiro, a busca pelo espírito nacional – embora essa tentativa de resgate tenha sido, na verdade, uma espécie de “cópia pitoresca” do que se fazia do outro lado do oceano, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, vivendo ambos, boa parte do tempo na Europa, conseguiram atingir relativa sensibilidade do sentimento nascente brasileiro.
A tradição portuguesa de poemas heroicos, de traços clássicos ou de modelos tradicionais de poesia como o soneto – de suposta origem italiana, tendo como inventor o poeta Petrarca (traduzido e lido por Camões) foi se afastando da brasileira, a cada passo, traços tênues, mas decisivos, contribuíram para a formação do gênio brasileiro. Os temas foram os responsáveis para uma diferenciação inicial, ou distanciamento, da mentalidade europeia. Os poetas românticos brasileiros cantaram nossos pomares, o índio, a amada, o céu brasileiro, e o tema da Saudade na poesia de Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias – tema caro aos portugueses bem depois, em meados de 1910, com o saudosismo daquela época de ouro camoniana. Manifestações literárias formais, como a escritura de epopeias, foram tentativas de imprimir, na forma poética, o espírito nacional.
Apesar de esse gênero fundador não suspirar com conforto em terras brasileiras, foi de extrema relevância para a construção de um grau maior de consciência e potencial de um país que está brotando, visões importantes para o estabelecimento de uma nova terra nascente. Portanto, como pensar em poesia brasileira? Se pensarmos em que aquela carta de Pero Vaz de Caminha foi, na verdade, nosso testamento, as verdadeiras, ou mais maduras produções brasileiras, aconteceram na semana de arte moderna brasileira em 1922. O manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, redirecionou a visão que o brasileiro tinha de imitar, sempre, o estrangeiro. Sofremos influências, sim, mas, não apenas copiamos ou reproduzimos mecanicamente; raciocinamos e, o que for inútil, é severamente descartado. Assim, pode-se pensar, sem prejuízos para qualquer literatura, numa relação proveitosa entre a literatura brasileira e a literatura portuguesa – um diálogo sincero e instigante que será feito neste artigo, entre Fernando Pessoa (o pai) e Manuel Bandeira (o filho), e como isto é importante para o ensino da literatura portuguesa no Brasil, enriquecedor.
Qualquer semelhança é mera sina
Nada mais relevante do que pensar o poeta – sua vida, seu corpo, suas desilusões estéticas ou amorosas, assim como diz Coelho (1973), apenas para criar a atmosfera adequada à leitura e conseqüente análise, podemos referir-se à pessoa do poeta. A vida de um homem é tão importante quanto sua obra – embora a primeira seja passageira e a outra não – existe algo de eterno em cada uma delas. Fernando Pessoa dizia que viver não é necessário, necessário é criar e Manuel Bandeira chegou a declarar que passara a vida à toa, à toa. O poeta vive em um contexto, num período situado historicamente, portanto, nada mais relevante do que pensá-lo com mais atenção e cuidado, os hiatos entre a vida e a obra, os silêncios e os vazios em que se movimentam os sentidos e os significados da expressão poética. Antônio Cândido chama a atenção, em O estudo analítico do poema, à importância da figura do poeta quando diz:
Como preliminar, detenhamo-nos um pouco no tipo de homem que faz versos. Antes de mais nada, devemos registrar que ele é dotado de um senso especial em relação às palavras, e que sabe explorá-las por meio de uma técnica adequada a extrair delas o máximo de eficácia. Só a tais homens ocorre o fenômeno chamado inspiração, que é uma espécie de força interior que o leva para certos caminhos da expressão. (CÂNDIDO, 1996:64).
O primeiro objeto da poesia do poeta é o corpo – a própria vida – e, por meio das palavras sabiamente exploradas, ele consegue atingir o efeito perene da poesia. Cândido fala de uma inspiração ou quase dom – como se o poeta, assim como dissera Antero de Quental, recebesse um batismo diferente, capaz de torná-lo exímio artífice na produção do verso. A forma, não apenas o conteúdo, figura como marca ou estigma do verdadeiro poeta. Esse tipo de homem que faz versos, literalmente, é o de Bandeira e o de Pessoa, pois ambos deram, um por inevitável armadilha do destino e o outro pelo desejo de ser poeta e (será que também por causa do destino?) engrandecer a humanidade com a beleza e a força da poesia. O poeta português Fernando Pessoa “deixou a vida” para viver sua obra, porque sabia que, como Rimbaud dissera, que a verdadeira vida estava ausente, e era muitos para ser pouco na vida; e Bandeira, na incapacidade de expressar a si mesmo no verbo viver, viveu a vida que deveria ser e não foi, para ser habitante da inabitável Pársagada – grande metáfora do ser que, ao invés de viver no mundo, habita em sua própria obra. Ainda em O estudo analítico do poema, Antônio Cândido chama a atenção para essa estranha figura conhecida por nós como poeta e declara:
Há nele uma espécie de sublimação, em tonalidade abstrata e remota, duma forte capacidade de vibrar com o corpo, a vista, o ouvido, o movimento dos membros; uma sensação de negrume, e em geral uma acuidade visual muito intensa. O pensamento viveu poeticamente porque se transpôs em experiência; porque se traduziu em palavras que exprimem uma forte capacidade de visualizar, ou de ouvir, ou de imaginar, que objetiva a vida interior, dando-lhe realidade palpável pelos “olhos da alma”. E com isso o poeta “cria” um mundo seu, a partir do uso adequado das palavras. (CÂNDIDO, 1996:67).
A ideia de sublimação, termo freudiano, será recorrente na crítica literária depois do aparecimento de fortes traços biográficos na obra dos poetas – a estetização da experiência e, a poesia sendo a própria experiência, como diz o crítico, capaz de “vibrar com o corpo, a vista, o ouvido”, colocaram em evidência a vida e o desenvolvimento do sujeito criador de fantasia, além de apenas focarmos em sua obra, como se esta fosse imanente em si mesma e isenta de qualquer a priori. Assim, o poeta cria um mundo seu, vivendo duplamente, sem prejuízos de abandono ou ressentimentos citadinos – e nele vive tão presente quanto no outro mundo – sempre atento e guiado por esses estranhos olhos da alma, de fibras de palavras.
O primeiro poeta que se apresente neste trabalho para um diálogo com o outro é o brasileiro Manuel Bandeira (natural do Recife, 1886-1968). Tornou-se um dos maiores símbolos do modernismo brasileiro – tendo sido recitado por Ronald de Carvalho (também participante do modernismo português) o poema Os sapos, em 1922, na conhecidíssima semana de arte. Desde cedo, Bandeira vê-se mais perto da morte – por causa da tuberculose, doença histórica inscrita no corpo do poeta ainda sem cura naquela época. O pernambucano trazia em si, como diz Barthes em Aula: a estupefação de perceber que “meu próprio corpo era histórico”, devendo esquecer disso para que se tornasse contemporâneo dos seus. A poesia de Bandeira é o constante diálogo entre a tradição e a ruptura, o velho e o novo, a cinza do corpo, o carnaval, a libertinagem. Não se tornou engenheiro, foi para Europa por causa da doença – vivia como se fosse uma “bomba relógio”, num tempo em que não era o dokairós (da presença), mas talvez da incerteza quanto à vida, o próprio rumo da poesia. Poemas como Desesperança (Cinza das horas), Confidência (Carnaval),Felicidade (O ritmo dissoluto) e Pneumotórax (Libertinagem), lembram a temática da desilusão e da morte, além de aspectos da vida do autor e, sem dúvida, do seu corpo enfermo.
Nosso outro autor também teve uma vida conturbada, inspiradora, um corpo cheio de extremidades, fonte eterna de poesia, a do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935). Ele viveu a sua obra, fingiu e sentiu a dor que deveras sentia. Para Pessoa, a poesia da terra nunca estava morta: “Há poesia em tudo – na terra e no mar, nos lagos e margens dos rios. Também há a na cidade…”. O sentido da poesia para Pessoa era algo além de escrever versos, representar: “… a poesia é assombro, admiração, como de um ser caído dos céus que toma plena consciência da sua queda, espantado com o que vê”. A realização da obra poética pessoana nunca poderia ter sido concretizada.
O poeta, não conformado com o que é, nunca consegue ser o que sonha ou o que projeta. Devido à natureza mítica e mística de Fernando Pessoa, a sua grande obra sempre seria além da sua projeção. Para tentar abarcar todo o seu gênio criativo, Pessoa usou da Heteronímia: “Não sei quem sou, que alma tenho [...] Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única central realidade que não está em nenhum e está em todos”. O heterônimo é uma persona criada pelo poeta que é considerado o ortônimo. Os heterônimos têm nome próprio, vida, biografia e estilo de poesia diferente da do ortônimo. O lançamento da revista Orpheu (1915) foi o marco inicial do modernismo português, uma revista que durou apenas duas edições, e que escandalizara aquela pequena Lisboa conservadora de 1915.
Diálogos possíveis: consoada e aniversário
Para trabalhar os poemas, partiremos do roteiro feito por Coelho (1973) a ser dado ao aluno em “O ensino de literatura – comunicação e expressão”, que tem como etapas: A leitura lúdica, o esclarecimento lógico do texto, a leitura lógica, a paráfrase, a numeração de linhas e a análise interpretativo-estilística.
Para início de conversa, vamos lançar um olhar atento sobre o poema Consoada, de Manuel Bandeira, do livro Opus 10 (1952). Sabemos que Bandeira foi um dos principais poetas brasileiros, como vimos acima, e também um dos mais significativos, vivendo o período modernista da literatura brasileira, trazendo traços basilares dessa estética, como o verso livre e branco, os temas do cotidiano e “brasileiros”, a experiência vivida e cantada, além da poesia considerada social com A rosa do povo, de Drummond. Eis o poema:
Consoada
1 Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
5 – Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
10 Com cada coisa em seu lugar.
Será interessante, quando trabalhado em sala de aula, a leitura do poema em voz alta pelo professor, seguida de uma silenciosa pelos alunos e, finalmente, com uma última leitura pelo docente ou discente – a fim de abstrair a sensibilidade do poema, o tom, ouvi-lo e senti-lo nesse primeiro momento. A leitura presentifica o texto, traz à tona os efeitos de presença da palavra e permite ao aluno, sem grandes dificuldades, perceber a diferença entre um texto comum, prosaico, e o texto poético – ritmado, mesmo num ritmo semelhante ao da prosa, mas com uma estrutura bem menor e densamente constituída, utilizando ao máximo, à sua peculiar maneira, a força das palavras.
Vamos fazer um levantamento do vocabulário do poema, o esclarecimento lógico do texto, e apresentá-lo em um quadro, como abaixo se pode ver:
Vocabulário |
Significado
|
Consoada | Substantivo, é considerada uma palavra arcaica, em desuso, e o significado dela é ceia da noite de Natal ou presente que se dá nesse dia. |
Indesejada | Substantivo adjetivado, não é comumente utilizada, e o seu significado é algo que não se deseja, indesejável, ou quem não se deseja. |
Caroável | Adjetivo, dificilmente falado, significa amigo, carinhoso, alguém capaz de produzir. |
Iniludível | Adjetivo, que significa algo não iludível, que não se pode iludir, que é evidente. |
Sortilégio | Substantivo, significando malefício de feiticeiro ou maquinação. |
Em seguida, como o poema de Manuel Bandeira, por ter como característica primordial a simplicidade, a clareza da forma, a economia de recursos técnicos que rebuscam o texto poético, ele dispensa a construção de uma leitura lógicado texto, ou seja, pouquíssimas alterações na ordem sintática canônica, e fluência do texto, tornam desnecessárias reconstituições sintáticas invertidas ausentes, quase totalmente, nesse poema.
O próximo passo é fazer uma paráfrase do poema – utilizar as nossas próprias palavras para dizê-lo de outra maneira. Então, teríamos: Em um dia de Natal, o poeta começar a pensar sobre a vida (parece estar sozinho) e, sobretudo, na morte – que é o fim daquela. Pensando assim, começa a imaginar como seria se ela viesse nesse dia especial, “(Não sei se dura ou caroável)”, e o que diria se a “Indesejada das gentes” chegasse. Parece estar ansioso para esse momento – e diz que o dia festivo foi bom, e a noite é bem vinda, não qualquer noite, mas aquela cheia de sortilégios, magia e mistério. Não importe quando ou como a Indesejada vai chegar, o poeta diz que ela encontrará tudo organizado,lavrado o campo, a casa limpa/ A mesa posta,/ Com cada coisa em seu lugar.
Depois de feito isso, devemos fazer a contagem dos versos – que é de um total de dez – e enumerá-los de cinco em cinco para facilitar a análise no momento da citação do estudo. O poema acima citado foi devidamente enumerado de acordo com nossas premissas.
Em última estância, faremos uma análise interpretativo-estilística: “Quando a… Morte chegar” frase da oralidade do cotidiano, recriada com o adjetivo substantivado Indesejada das gentes – a morte é um fenômeno universal, de toda a gente, e portanto misteriosa – sendo indesejada de todas as maneiras, fato que se consuma nas inúmeras histórias universais com a temática da busca da imortalidade, a ressurreição de Cristo, etc. O advérbio de tempo “quando” realça a ideia de acaso, incerteza, dúvida em relação ao momento de sua chegada inesperada, contrapondo-se à última palavra do primeiro verso:chegar, certeza, verbo de ação, no infinitivo, dialogando com o verso de Álvaro de Campos, que diz: A única conclusão é morrer. A assonância das vogais “a” e “e” revelam uma leveza substancial, logo sendo “abafadas” com a aliteração da consoante oclusiva “d” – reforçando o sentido obscuro e opressor da morte, que é personificada no primeiro verso.
Agora veremos o outro poema transcrito, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, por extenso, para auxiliar a compreensão da análise:
Aniversário
1 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
5 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
10 Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
15 O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho… )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
20 Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas [lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
25 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
30 Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com [mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo [do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
35 No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
40 Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
45 O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
A leitura lúdica deve ser feita como a do poema anterior – então, partimos para próxima etapa, que é a do esclarecimento lógico do texto, o levantamento do vocabulário, no quadro abaixo:
Vocabulário |
Significado
|
Serões | Substantivo, significando trabalho feito à noite ou festa noturna. |
Grelado | Particípio do verbo grelar, é algo que está mofado; que começou a germinar. |
Metafísica | Substantivo, doutrina ou ideia da essência das coisas, o que está além do físico. |
Loiça | Substantivo, significando o mesmo que louça. |
Aparador | Adjetivo, móvel antigo em forma de armário ou mesa grande. |
Algibeira | Substantivo, que significa bolso ou saquinho que as mulheres atavam à cintura. |
Podemos tomar como paráfrase o seguinte desenvolvimento: O poeta lembra-se da época em que completava anos na infância. Era feliz como todos que completam anos, “ninguém estava morto”. A vida era plena, havia felicidade, não havia morte ou a dor da ausência de um ente perdido: aniversário, festa e vida marcam esse cenário perfeito. E, no último verso, o poeta confirma a perene alegria de todos aliada à escolha de uma religião qualquer que, para ele, pouco importava se a tinha ou não – pois a felicidade dependia da própria felicidade em si, do momento do aniversário, não de algo externo como a religião. Enumeramos os versos de cinco em cinco e constatamos que o número de versos é quarenta e cinco.
Para uma proposta de análise interpretativo-estilística, temos: O apelo à infância do poeta é extremamente reforçado com a imagem lúcida do segundo verso da primeira estrofe, com a consciência de um adulto que está em estado de convalescença, um estado claro de volta à infância. A imagem exposta nos primeiros versos expõe esse modelo de felicidade simples, o poeta afasta o que para ele seria ruim: os infortúnios ou as experiências renegadas pelo próprio.
Por que o poeta era feliz quando criança? A segunda estrofe é desenvolvida em torno desta questão. A repetição do verso “No tempo em que festejam o dia dos meus anos” será freqüente, transmitindo assim a lembrança mais viva do aniversário. Naquele tempo de criança, o eu lírico era saudável, pois não percebia coisa alguma, e era inteligente para toda a família, “o menino especial dos pais”, apresentado respectivamente no segundo e no terceiro verso. O eu lírico não tinha as esperanças que os outros tinham por ele porque era a própria esperança, a criança sempre fora símbolo de mudança, de renovação e de esperança para um futuro. A vida tão complexa do adulto, a visão reducionista de alguns, tudo isso faz com que o eu lírico questione-se e indaga-se sobre tudo, sobre a esperança dos homens, o sentido da vida, etc. Qual sentido da vida para criança senão viver e sonhar a eterna novidade do ser?
A terceira e quarta estrofes são desenvolvidas com base em uma consciência do passado que é estruturada a partir de comparações de como o eu lírico era quando criança e como ele é hoje em seu presente, adulto. É melancólica a descrição do que o poeta é hoje – adulto –, revelando assim a idéia de que a infância sempre será o modelo ideal de vivência, de beleza.
Na quinta estrofe, o eu lírico sente-se desconfortável diante de sua situação atual e também sente um desejo físico da alma de se encontrar naquela situação novamente. A imagem que encerra a estrofe é genial: ele deseja comer o passado “como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!”. A manteiga é escorregadia, melosa, deveras trabalhosa para se largar onde se fixa. Comer o pão demonstra o desejo retumbante de sentir toda àquela massa que envolvera as experiências primeiras do eu lírico.
A sexta estrofe é caracterizada como uma alegoria geral da cena do aniversário: “Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...”. A cegueira é excitada por meio de uma volta iluminada da lembrança do poeta, luz tão nítida quando a do Paraíso de Dante. As riquezas de detalhes dessa estrofe salientam o olhar que a criança tem das coisas e também a da memória do adulto que as recorda claramente como se estivesse vivendo tudo aquilo de novo. Nas duas últimas estrofes do poema, o eu lírico queixa-se do seu coração, e diz que não faz mais anos, dura. Os dias passam para ele como os de um morador de uma pequena cidade – passam. Ele espera a chegada do fim: mais nada. É relevante prestar atenção na métrica desses versos que são visualmente menores em relação aos outros, como se mostrassem os últimos momentos de fôlego do eu lírico cansado de não ser mais quem fora maravilhosamente no passado, na infância.
Pessoa e Bandeira: Atravessa-me Portugal como o Brasil
Desde Camões, vê-se clara a influência Lusitânia na poesia brasileira – assim como aporta um estudo de Gilberto Mendonça Telles (1973) em Camões e a poesia brasileira. O biógrafo brasileiro de Pessoa, José Paulo Cavalcanti Filho (2011), na sua monumental obra Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, além de aproximar o poeta português dos leitores brasileiros, estreita os laços entre o escritor lusitano e os poetas modernistas do Brasil, como Vinícius, Drummond e Bandeira – realçando semelhanças nos versos e nos temas.
A biografia de cada autor mostrou que, além de suas obras possuírem um diálogo íntimo, a vida dos poetas também foi bastante parecida. Pessoa, desde cedo, sentiu-se diferente dos demais – exilado ou não, e Bandeira, por causa da doença, isolou-se do mundo para encontrar a cura na Europa, cura encontrada, não no mundo, mas na poesia. Os biografemas, ou traços biográficos presentes na obra de cada poeta, são muito presentes. A diversidade poética de Pessoa ortônimo (poeta contido, escultor de versos regulares e rimados, autor de Mensagem e Cancioneiro, este nome remetendo à tradição – para o Álvaro de Campos, com aqueles versos livres, longos, contando e cantando, também pode ser comparada a de Bandeira – se nós pensarmos no livro Cinza das horas (fortes traços simbolistas e parnasianos) e, bem depois, Libertinagem (livro de poemas magistralmente composto em versos livres e com aspectos do modernismo brasileiro. Dois versos, em cada um dos poemas, podem dar as mãos para um conversa amigável entre os poetas Pessoa e Bandeira; verso de Álvaro de Campos, Aniversário:
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça [...]
E de Manuel, Consoada, do livro Opus 10:
A mesa posta,
10 Com cada coisa em seu lugar.
A construção sintática é quase a mesma – a ideia é espantosamente semelhante. O tema da infância perdida, a imagem da morte, também são símiles ao do poema do poeta brasileiro. O leitor atento percebe que, nesse caso, e em muitos, a poesia portuguesa não está muito distante da nossa, brasileira, e os diálogos acontecem, seja à noite ou pela manhã – caberá ao professor estabelecer essa relação amistosa, sem colonização, articulando o poema com as partes e o todo.
A mesa posta com mais lugares de Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa, eA mesa posta,/Com cada coisa em seu lugar. de Manuel Bandeira, estão à espera do leitor para que ele possa sentar-se e conversar um pouco mais, sem pressa, num tempo eterno, pois, se cada coisa está em seu lugar e, a mesa tem mais lugares, sempre haverá espaço para a crítica, o professor e o aluno – e o assunto será o aprendizado e a experiência. Jorge de Sena, autor do poema em louvor ao Brasil, Tal pai Tal filho sentou-se à mesa, mas não como pai ou filho, e sim como irmão. Pessoa representa esse corpo português no Brasil e, Bandeira, que a brisa do Brasil beija e balança, fecundou esse corpo em espírito e esse brasileiro fora feito do mais sublimes materiais: corpo e canção.
Referências bibliográficas
BANDEIRA, Manuel de. Estrela da vida inteira. 2ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1970.
CÂNDIDO, Antônio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas Publicações, FFLCH/USP, 1996.
COELHO, Nelly Novaes. O ensino de literatura: comunicação e expressão. 2ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
FILHO, José Paulo Cavalcanti. Fernando Pessoa, uma quase autobiografia. São Paulo: Record, 2011.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Melo. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
PESSOA, Fernando. Poesia de Álvaro de Campos. São Paulo: Martin Claret, 2006.
TELES, Gilberto Mendonça. Camões e a poesia brasileira. MEC – Deptº de Assuntos Culturais, 1973
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