Na noite do dia 10 de fevereiro, enquanto voltava do trabalho, fui abordado por um homem que apontou a arma para minha cabeça. Não sabia se ele era policial. Ele não me mostrou nenhum distintivo, mas me mandou devolver a bolsa da senhora que estava a seu lado. Eu não tinha nada em mãos. No dia, calçava tênis e vestia bermuda e camisa preta. Meu único pertence era o celular que eu levava sempre comigo para poder escutar música. Sem saber o que fazer, não esbocei reação. Tinha medo que ele atirasse. Levantei os braços, me abaixei e disse: “Braço, você está falando com o cara errado. Só estou voltando do trabalho”. Braço é uma gíria, e não o nome de um cúmplice. O policial não me escutou. Era tarde, passava das 11 da noite.
Fui levado para a 25ª Delegacia de Polícia de Engenho Novo, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Não me deixaram telefonar para ninguém. Só no dia seguinte, às 7 e meia da manhã, pude entrar em contato com meu pai e avisar que tinha sido preso. Ele foi correndo para a delegacia, me visitou na cela e segurou minha mão, emocionado. Disse que arrumara um advogado e me ajudaria. Eu tentava acalmá-lo dizendo: “Pai, tudo vai dar certo”. Papai é da reserva do Exército, tem 64 anos. Somos muito ligados.
No mesmo dia, fui encaminhado ao presídio Patrícia Acioli, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. É uma cadeia pública nova, muito longe de tudo. Com outros presos, fui revistado e meu cabelo foi raspado. É o procedimento, mas a gente se sente desmoralizada. Gostava do meu cabelo black power. Era meu estilo. Os policiais me perguntaram qual era minha facção criminosa. Respondi que era neutro. Fui levado a uma cela de paredes de concreto, com três camas beliches. Durante todo o tempo em que estive lá, dormi no chão, forrado com pedaços de papelão. Éramos 15, e só havia seis camas.
Fui apresentado aos outros 14 presos. Cada um tinha um motivo diferente para estar ali. Havia traficantes, agressores e ladrões de carros. Tinha medo de ficar sozinho na cela, de apanhar. Sem saber direito quem eu era, os presos me acolheram. Me mostraram o cronograma do presídio e deram dicas de segurança. Disseram que eu devia evitar confusão e bate-boca com os outros presos. Eu não podia fazer rebeldia, me irritar e, como o ditado, deveria dançar conforme a música. Os policiais tinham me dito que eu iria para uma cela especial, por ter ensino superior completo, mas não consegui uma declaração da faculdade a tempo. Quer saber? No fundo, não queria ir para outro lugar e ficar sozinho. A solidão me assustava mais.
O dia na prisão começava cedo. Às 5 e meia, acordávamos para tomar o primeiro banho. As condições de higiene do presídio são precárias. O chuveiro fica em cima da privada e ao lado de um tanque. Não havia sabão em pó, nem nada eficiente para uma limpeza. Para amenizar o mau cheiro, que era forte, os presos e eu lavávamos o vaso sanitário com a água desse tanque. Também enchíamos garrafas com a água do chuveiro. Precisávamos guardar para tomar durante o dia.
Após o banho da manhã, tomávamos nosso café. Cada um recebia dois pães e um copo de café com leite. Horas depois, tomávamos o segundo banho do dia e íamos almoçar. Nos davam um copo de guaraná natural e uma quentinha com arroz, feijão e alguma carne. Voltávamos para as celas e éramos revistados. Antes do jantar, tomávamos outro banho, e mais um antes de dormir. No total, eram quatro banhos por dia, de dez minutos cada.
Eu não conseguia parar de pensar no que acontecia fora do presídio. Não tinha nenhuma informação. Meu pai não conseguia me visitar. Sentia falta de meus amigos, dos colegas de trabalho. Nesse tempo preso, percebi quanto uma água gelada, um banho bem tomado e um desodorante faziam falta. Sentia saudades do meu pai e do cheiro da minha casa. Só agora tenho noção da repercussão do caso.
Nasci em Rio Grande, no Rio Grande do Sul, no dia 31 de agosto de 1986. Estou com 27 anos agora. Em 1990, meu pai, militar, foi transferido e trouxe toda a família para o Rio de Janeiro. Meu irmão mais velho, minha mãe, ele e eu fomos morar num apartamento de classe média no Méier, bairro da Zona Norte da cidade. Anos depois, meu irmão, diagnosticado com anemia falciforme, morreu aos 15 anos. Meu pai, em choque, saiu do Exército para passar mais tempo com a família. Em 2008, minha mãe sofreu um infarto e morreu. Foi outro golpe para ele. Nessa época, eu já estava no segundo ano de psicologia, na faculdade particular Estácio de Sá, onde me formei no fim do ano passado.
Hoje moro sozinho em nosso antigo apartamento no Méier. Meu pai mora a poucas quadras da minha casa. Sempre que pode vem me visitar. Trabalho num shopping e estou juntando dinheiro para pagar minha pós-graduação. Quero continuar estudando. Também quero fazer cursos de teatro e de televisão. Gostei da experiência quando fiz uma ponta na novela Lado a lado, da TV Globo, em 2013. Era um bico, nada demais, mas gostei. Enquanto estava preso, pensava em quanto sentia falta de poder trabalhar.
Durante a tarde na prisão, os outros presos e eu nos reuníamos para jogar dominó e damas. Por sorte, conseguimos pedaços de papel para confeccionar as peças dos jogos. Jogávamos e conversávamos a tarde toda. Alguns presos falavam sobre outros presídios e como seria bom serem transferidos para o Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, ou para o Presídio Ary Franco, em Água Santa. Eles me contavam que, lá, os presos recebiam visitas, tinha recreação e podiam assistir a palestras. Alguns até trabalhavam. Era um sonho coletivo.
Quando entramos no presídio, fomos vestidos com uma roupa que tinha a palavra “Ressocialização” estampada. Não é possível que alguém saia de lá melhor do que quando entrou. Faltam recursos. O presídio deveria ter bibliotecas para os presos passarem o tempo. Falávamos muito de Deus, e eu orava todos os dias. Não tinha mais nada para a gente fazer.
Quinze dias depois de ser preso, no dia 25 de fevereiro, a senhora que me acusou de roubo voltou à delegacia e prestou um novo depoimento. Disse que poderia ter se enganado, que estava muito escuro na hora. Não tinha mais certeza se era eu mesmo quem a roubara. Levaram dela a bolsa com o celular, documentos e R$ 10. O nome dela é Dalva, trabalha como copeira. Eu a perdoo. Não guardo rancor. Ela estava nervosa e me confundiu com outra pessoa. Acabou dando um depoimento sob forte emoção – e ainda chorou arrependida depois.
Acabei solto por uma decisão do juiz, atendendo a um pedido de liberdade provisória, feito por meu advogado, Rubens Nogueira de Abreu. Ainda terei de responder a um inquérito por roubo. Nunca fui vítima de racismo. Sempre me senti respeitado. No presídio, vi que havia muitos Vinícius lá dentro. Eles não tiveram as mesmas oportunidades que eu. Eles não têm amigos do lado de fora fazendo de tudo para ajudá-los. E, mesmo assim, foram os únicos dispostos a ouvir a minha história.
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