quinta-feira, 26 de junho de 2014

Te Contei, não ? - Mais brasileiros defendem o fim do voto obrigatório

Não faz nem dez anos que a paulistana Bianca Fraga caminhava pelas ruas arborizadas do principal campus da Universidade de São Paulo (USP), onde cursou linguística, e defendia sua visão de mundo em rodas politizadas de amigos. Ocupou a reitoria em protesto por mais de uma vez enquanto estudante. Em junho do ano passado, engrossou a multidão de manifestantes que tomou as ruas da capital paulista, em coro pelas mais diversas reivindicações. Ela quer ser ouvida – mas não nas urnas. Nas próximas eleiçõespresidencias, em outubro, pretende votar em branco. Se a legislação não a obrigasse, Bianca nem sequer compareceria a uma central de votação. “Nenhum dos candidatos me representa”, afirma. “O voto seria mais legítimo se tivéssemos liberdade para escolher se queremos ou não entregá-lo a alguém.”


Assim como Bianca, nunca tantos brasileiros se disseram contrários à obrigação de ir às urnas, imposição prevista no Artigo 14 da Constituição. Segundo uma pesquisa do instituto Datafolha, divulgada na semana passada, 61% dos entrevistados discordam da regra. É uma rejeição inédita desde que a pergunta começou a ser feita, em 1994. Não é só isso. Segundo o levantamento, 57% dos eleitores, tal qual Bianca, não votariam nas próximas eleições presidenciais se não fossem obrigados – outro recorde. Grande parte dos descontentes são brasileiros com ensino superior (71%) e renda familiar mensal acima de dez salários mínimos (68%). Gente que integra a classe média tradicional brasileira, mais instruída. “A insatisfação reflete o descrédito da política, de um modo geral, e do Congresso, em particular”, afirma o cientista político Bolívar Lamounier, diretor da Augurium Consultoria. A pesquisa apontou ainda outras razões: a falta de confiança no governo federal (72%) e o pessimismo com a economia (70%) estão entre as explicações para a recusa ao voto.

A obrigatoriedade foi implantada com o Código Eleitoral de 1932. Era um Brasildiferente, de poucos eleitores. Com a maioria das famílias vivendo em áreas rurais, além de altíssimas taxas de analfabetismo (os analfabetos eram proibidos de votar), o eleitorado da época restringia-se a somente 10% da população adulta. A imposição tentava aplacar o temor de que essa participação inexpressiva tirasse a legitimidade da eleição. De lá para cá, o percentual de eleitores cresceu expressivamente no país. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cerca de 70% da população está hoje apta a votar.
Atualmente, o voto é facultativo para analfabetos, idosos com mais de 70 anos e jovens com mais de 16 e menos de 18 anos. Os demais brasileiros, se não comparecem às urnas no dia da votação, ainda que para anular ou justificar a ausência em sua seção, devem prestar contas à Justiça Eleitoral. Aqueles que ignoram esse dever podem pagar um preço alto: são proibidos de prestar concurso público, pegar empréstimos em bancos, tirar passaporte e carteira de identidade e renovar a matrícula em universidades públicas. Uma pesquisa feita pela comissão eleitoral do Reino Unido apontou que o Brasil – ao lado de Peru, Cingapura e Austrália – tem as penas mais rigorosas entre os países com regimes compulsórios de votação.
 

Os entusiastas do voto obrigatório argumentam que a democracia é importante demais para ser opcional. O ato de votar constitui, para eles, um dever, não um direito. Outro raciocínio dos favoráveis à obrigatoriedade é a ideia de que, se o eleitor se omitir, o atraso socioeconômico do país poderá se tornar mais grave. A regra é, dizem, ainda uma maneira de incluir na sociedade as camadas sociais mais afastadas das discussões essenciais ao desenvolvimento. “O voto compulsório, bem ou mal, teve o efeito de obrigar a elite política a se conectar com os mais pobres”, afirma o cientista político Jairo Nicolau, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De uma lista de 177 países, feita pelo Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Idea), uma organização que promove a democracia, o Brasil é um dos 31 que ainda mantêm um regime de voto compulsório. “O fato de ser uma experiência pouco comum não significa que seja ruim”, afirma Nicolau. Em muitos dos países com a imposição, a obrigatoriedade fica restrita à teoria. Na prática, a lei não é aplicada.

Os contrários à participação compulsória na eleição afirmam que o sistema não é compatível com a liberdade que se espera de uma democracia consolidada. Segundo eles, forçar o cidadão a votar desencoraja sua educação política. Num regime facultativo, muitos creem que só os eleitores mais mobilizados e informados iriam às urnas. A mudança, argumentam, combateria os votos obtidos de forma aleatória, por candidatos que se beneficiam de maior presença nos meios de comunicação, aparecem no alto da lista da urna eletrônica ou desfrutam um número eleitoral fácil de memorizar. 
Uma das preocupações quanto ao voto facultativo é a falta de garantia de que o eleitor comparecerá às urnas. A participação dos eleitores tem diminuído na maioria dos países ocidentais com regimes não compulsórios. Os Estados Unidos registram uma taxa abaixo de 60% em toda eleição presidencial desde 1968. No Reino Unido, 65% da população votou nas eleições gerais de 2010, em comparação a 84% em 1950. O mesmo ocorre nos países asiáticos. A Índia, que na semana passada concluiu uma maratona de eleições gerais, as maiores do mundo, não ultrapassa a marca dos 67% desde 1952.

A queda não é exclusiva de regimes facultativos. O comparecimento no Brasil, embora compulsório, tem caído nas últimas décadas. Em 2006, 84% dos brasileiros aptos a votar foram às urnas. Nas últimas eleições presidenciais, em 2010, o percentual foi de 80%. Se o voto obrigatório seduz cada vez menos eleitores, como seria se o Brasil adotasse o voto opcional? Cientistas políticos acreditam que a votação variaria, de acordo com a importância atribuída a cada eleição. Disputas presidenciais poderiam atrair mais eleitores que pleitos municipais – ou vice-versa. Na pesquisa do Datafolha, quatro em cada dez entrevistados declararam que votariam mesmo que não fossem obrigados.

As taxas de participação das nações que desistiram do voto obrigatório também diminuíram. O exemplo mais recente é o Chile, que migrou do voto compulsório para o facultativo em 2011. Nas primeiras eleições presidenciais após a reforma política, a participação no primeiro turno, de 60% no pleito anterior, caiu para 50%. No segundo, diminuiu mais: 40%. A possível redução da participação nas urnas não preocupa o cientista político Lamounier. “O Brasil está pronto para o voto facultativo. O desejo de mudança reflete o sentimento de que o voto deve ser entendido como um direito, não como um dever”, diz. Muitos consideram haver um dilema entre quantidade e qualidade. Para outros, a questão é mais simples: deixar o cidadão apenas com o direito, e os políticos com o dever.





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