domingo, 22 de junho de 2014

Te Contei, não ? - A Farsa de Inês Pereira

Escrita em 1523 em resposta a um desafio, a Farsa de Inês Pereira é a peça mais bem-acabada de Gil Vicente, dramaturgo que inaugurou o teatro português. Construída a partir de um dito popular, a peça testemunha o conflito de valores que caracterizou o humanismo em Portugal. O autor e a época Durante a Idade Média portuguesa, os tipos de representação mais conhecidos foram os mistérios (encenação de episódios da vida de Cristo e dos santos) e os milagres (apresentação cênica de milagres operados pelos santos e pela Virgem), mas não eram, a rigor, teatro, uma vez que essas composições não utilizavam a fala.  Quando Gil Vicente começou a escrever, não havia, portanto, modelos portugueses que ele pudesse seguir. Por isso se inspirou no espanhol Juan del Encina e produziu um teatro que, em Portugal, era uma grande novidade, conforme afirmam testemunhos da época: "E vimos singularmente fazer representações de estilo mui eloquente, de mui novas invenções, e feitos por Gil Vicente; ele foi o que inventou isto cá, e o usou com mais graça e mais doutrina posto que Juan del Encina o pastoril começou." O momento histórico O Portugal do século XVI é uma nação rica em conquistas ultramarinas, mas deficiente em produção agrícola e manufatureira. Para conseguir abastecer-se internamente a única saída é trazer ouro e prata das viagens além-mar. A crise econômica gera um descontentamento que ameaça os antigos valores, dissolvendo a aliança entre clero e nobreza, entre mercadores e soberanos. Essa crise é retratada na obra de Gil Vicente pelas personagens que buscam enriquecer a qualquer preço, aproveitando a situação caótica do país. Europa x Portugal Em toda a Europa, o século XVI é o momento de ascensão da burguesia, valorização da ciência e do homem e questionamento da Igreja, com a Reforma protestante. Em Portugal, entretanto, desenvolve-se um humanismo um pouco diferente: as ciências são valorizadas, mas o poder da Igreja e da nobreza não é questionado. Muito pelo contrário: a Inquisição e a Companhia de Jesus são os principais instrumentos da Contra-Reforma, que chega para reprimir a cultura humanista proporcionada pelo contato com outras culturas, decorrente dos descobrimentos. Religiosidade e reformismo Gil Vicente vive numa época de transição de valores: os ideais medievais se chocam com a realidade renascentista. Esse choque aparece nitidamente em sua obra. Critica os maus padres, mas poupa a Igreja; critica os maus nobres, mas não questiona o poder real. Os valores medievais são representados pela forte religiosidade, pela instituição da Igreja, pelos dogmas da fé. Por outro lado, o espírito reformista aparece na crítica aos padres que têm uma vida desregrada e exploram a ingenuidade dos crentes para manipulá-los. Um exemplo disso é o sermão em que Gil Vicente procura explicar racionalmente as causas do terremoto ocorrido em Lisboa, enquanto os padres diziam que era a ira de Deus manifestando-se contra a falta de fé dos cristãos-novos – os judeus convertidos ao cristianismo para escapar da Inquisição.  Trazendo flashes da vida social para o teatro, as peças conquistam o público pela simplicidade com que mostram as falhas humanas, para que as pessoas possam se corrigir e receber as bênçãos da vida eterna. As peças conquistam o público pela simplicidade e divertem ao mesmo tempo que ensinam. Anote! Gil Vicente é importante na literatura portuguesa não só por fazer um retrato da sociedade de seu tempo, mas principalmente por abordar a vida do homem na sua totalidade, desde os problemas domésticos mais corriqueiros até os mais complicados conflitos morais. O gênero Gil Vicente é um artista medieval escrevendo em plena Renascença, momento em que as próprias estruturas da arte estavam se transformando. O auto, gênero muito popular até então, caracterizava-se pelo conteúdo simbólico: os atores representavam entidades abstratas de caráter religioso ou moral, como o pecado, a hipocrisia, a luxúria, a avareza, a virtude, a bondade etc.
Embora a Farsa de Inês Pereira tenha sido publicada primeiramente como Auto de Inês Pereira, o conteúdo da peça não corresponde às exigências do auto. Gil Vicente criou um novo gênero para o qual não havia um nome na época, a farsa. Anote!  A farsa é um tipo de encenação teatral curta que explora situações engraçadas da vida cotidiana, apelando para a caricatura e os exageros, a fim de fazer o espectador rir, mas, ao contrário da comédia, não tem um fundo moralizante. Desafio: um dito popular A popularidade de Gil Vicente despertou em seus inimigos dúvidas sobre a autenticidade de suas peças.
Em resposta a um desafio do dramaturgo, os invejosos lhe propuseram como mote o ditado popular "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube". A resposta veio com a Farsa de Inês Pereira, de 1523. O equilíbrio da ação, a graça das situações e o jogo de contrastes fizeram da peça a mais bem-acabada do teatro vicentino. Apesar de apresentar críticas ao comportamento de vários setores da sociedade, não há nessa obra nenhuma intenção moralizante, além daquela inerente ao próprio mote que deu origem ao enredo.
  afiliado


Construída a partir do ditado "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube", a peça incorpora em sua estrutura a simetria existente entre os dois termos dessa comparação: Pero Marques encarna o asno que carregará Inês, enquanto o Escudeiro é o cavalo que a derruba. Para pôr em cena esses elementos,
Gil Vicente utilizou na caracterização de Pero Marques aspectos que o aproximam de um asno: é parvo, teimoso, deselegante e servil. O Escudeiro, ao contrário, assemelha-se ao cavalo, pois se apresenta como um nobre e elegante cavaleiro. Entretanto, essa semelhança se esgota na aparência, pois quaisquer outras características que se poderiam atribuir aos cavalos (como lealdade, generosidade, valentia) ele não tem: é mentiroso, cínico, preguiçoso e covarde. Pode-se dizer que Lianor Vaz reforça o grupo de Pero Marques, a considerar seus valores: não tem interesses financeiros, é honesta, sensata e preocupada com o futuro de Inês, ao contrário dos judeus Latão e Vidigal, que são desonestos, mentirosos, mercenários e indiferentes ao futuro da moça. Para seguir à risca a comparação de superioridade que subjaz ao enredo ("mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube"), é necessário mostrar que Pero Marques tem valores autênticos, os valores medievais, enquanto Brás da Mata se move por interesses materialistas, como os que predominam na época de Gil Vicente.  O dito popular é cumprido literalmente nessa farsa: o asno não é melhor do que o cavalo, mas se torna preferível na medida em que não oferece perigo.afiliado


http://professorclaudineicamolesi.blogspot.com.br/2012/12/analise-09-farsa-de-ines-pereira.html

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