quinta-feira, 26 de junho de 2014

Te Contei, não ? - Por que amamos tanto a Seleção ?

A cena eletrizou o Brasil e emocionou o mundo. Antes do jogo entre Brasil e México pela fase de grupos da Copa das Confederações, os jogadores da Seleção e a torcida no estádio Castelão, em Fortaleza, começam a cantar o Hino Nacional. Pelo regulamento da Fifa, os hinos podem durar no máximo 90 segundos. Por isso, a gravação que acompanha o canto é interrompida logo depois do “Ó Pátria amada, idolatrada, salve, salve...”. Neste momento, as câmeras de TV mostram o rosto do jogador Thiago Silva, capitão da Seleção Brasileira. Ele está de olhos fechados e, como se não notasse a interrupção, continua a cantar: “Brasil, de um sonho intenso, um raio vívido, de amor e de esperança à terra desce...”. A câmera se afasta e revela que ele não é o único. Todos os outros jogadores cantam a capela e também os quase 60 mil torcedores.


Só param quando as notas musicais se transformam num grito (Nélson Rodrigues diria “um brado retumbante”): “Dos filhos deste solo és mãe gentil, Pátria amada, Brasil...”. Ao final, todos explodem em aplausos. “Nunca vi nada igual em minha vida”, disse depois do jogo o árbitro Howard Webb. Três anos antes, ele apitara a final da Copa de 2010. “Mesmo sendo inglês, fiquei emocionado com o hino brasileiro.” O hino a capela se tornou a marca da torcida brasileira na Copa das Confederações, até a vitória final, contra a Espanha, em que o coro atingiu o tamanho do Maracanã – 75 mil pessoas.

A cena é ainda mais impressionante quando se leva em consideração que, fora dos estádios, o Brasil explodia em protestos contra a corrupção e pela melhoria dos serviços públicos. No dia 19 de junho, data da partida, os protestos já começavam a ficar violentos, e o presidente da Fifa, Joseph Blatter, cogitava cancelar a Copa das Confederações. O torcedor estava dividido: até que ponto o apoio à Seleção significava compactuar com a bagunça e as denúncias de desvios que marcaram a organização da Copa do Mundo no Brasil? Quando o time de Neymar entrou em campo, a torcida abraçou a Seleção.

Um ano se passou. Embora os protestos de junho tenham arrefecido e se convertido em reivindicações pontuais de alguns grupos e sindicatos, os torcedores têm sentimentos ambíguos às vésperas da Copa do Mundo. Em um ano, as denúncias envolvendo os preparativos do torneio só aumentaram – e os serviços públicos, claro, estão ainda longe do “padrão Fifa”. Com isso, os brasileiros estão divididos em relação à Copa. De acordo com o Instituto Datafolha, apenas 48% da população apoia o Mundial no Brasil – 41% são contra. Há seis anos, o apoio era de 79%. Entre os paulistanos, 45% são a favor da Copa, e 43% contra. Segundo uma pesquisa do instituto Pew Research divulgada na semana passada, 61% dos brasileiros acham que acolher a Copa do Mundo é negativo para o país. Em pesquisa divulgada com exclusividade por ÉPOCA, o site Reclame Aqui detectou que 86% dos cadastrados no site se dizem “insatisfeitos” ou “pouco satisfeitos” com a organização da Copa do Mundo.

Nesta quinta-feira, dia 12, a Copa começará num estádio inacabado, o Itaquerão, construído em meio a brigas políticas. Quando a bola rolar no jogo Brasil x Croácia, conseguirão os torcedores brasileiros separar os dois sentimentos – o amor pela Seleção Brasileira e a justa revolta com os políticos? É bem provável que sim, graças à relação que os brasileiros têm com a Seleção nacional. Trata-se de uma história de identificação e paixão que tem poucos paralelos no mundo.
Diz-se que o Brasil é o país do futebol e que amamos o esporte mais do que outras nações. A afirmação carece de dados que a comprovem. Por que amaríamos mais o futebol que italianos, alemães ou espanhóis, cujas ligas nacionais têm uma média de público superior à do Campeonato Brasileiro? Por que amaríamos o futebol mais que os ingleses, que inventaram o esporte e têm os torcedores mais fanáticos do mundo? Quando se trata da Seleção, no entanto, os brasileiros têm razões objetivas para sentir orgulho. O escrete canarinho é o único pentacampeão mundial. O único a ter participado de todas as Copas do Mundo. O recordista de gols marcados em Copas, 210. O único jogador a participar de três campanhas vitoriosas é brasileiro – Pelé. O maior artilheiro das Copas é Ronaldo, com 15 gols.
Há, portanto, bons motivos para gostar da Seleção. É difícil dizer se os brasileiros amam sua Seleção mais que os cidadãos de outros países, mas é certo que a nossa relação com o time que nos representa é diferente. No mundo inteiro, seleções nacionais são apenas seleções nacionais. Por si só, inspiram sentimentos patrióticos. Os brasileiros esperam que sua Seleção, mais do que representar a nação, seja um espelho das características positivas do país. Querem que sua Seleção tenha craques capazes de mostrar a ginga e o sentido de improviso que, acreditam, está no nosso sangue. Quando isso não acontece (como em 1990), o brasileiro se sente traído, fica deprimido, é capaz até de torcer contra. Como toda paixão, a do brasileiro por sua Seleção é marcada por sentimentos intensos. Na alegria e na tristeza.

NA ALEGRIA A euforia da primeira vitória, em 1958, na Suécia.  E a celebração de Rivaldo, Ronaldo  e Cafu na última conquista, em 2002, no Japão (Foto: AP e  Alex Livesey/Getty Images)


O momento em que se dá a mágica – quando a Seleção se torna, para os brasileiros, o espelho do Brasil ideal – é o ano de 1958. Às vésperas da Copa da Suécia, a prestigiosa revista France Football afirmou que, embora o Brasil tivesse grandes craques, nossa Seleção padecia de imaturidade, vulnerabilidade emocional e falta de preparo psicológico. Havia dúvidas se os jogadores aguentariam  a pressão de uma disputa do porte da Copa do Mundo. A crítica embutia um resquício de racismo – como se o preparo emocional fosse prerrogativa das equipes europeias. Coincidência ou não, o time brasileiro que disputou a primeira partida contra a Áustria tinha apenas um negro – o botafoguense Didi, maestro da equipe. Depois de um empate com a Inglaterra, o técnico Vicente Feola pôs mais dois negros entre os titulares. Seus nomes: Garrincha e Pelé. A vitória de 2 a 0 contra a União Soviética representou a estreia, em Copas do Mundo, do maior jogador de todos os tempos, e o nascimento de uma nova era no futebol.
Foi assim que, com um time multiétnico como a sociedade brasileira (na final, ainda entrou o lateral Djalma Santos), o Brasil foi campeão do mundo. Era como se as teorias do sociólogo Gilberto Freyre – em plena era da ascensão do nazismo, ele escreveu, em seu Casa-grande & senzala, que a mistura de etnias e culturas era um valor positivo da sociedade brasileira – fossem demonstradas dentro das quatro linhas do gramado. Numa era em que as Copas do Mundo eram disputadas quase somente por brancos de equipes europeias, o Brasil sentia orgulho de seu time mestiço. Ele se tornou tão representativo para nós quanto a música da bossa nova ou a arquitetura de Oscar Niemeyer em Brasília, a nova capital. Como dizia Nélson Rodrigues, o grande cronista do período, tantos motivos de orgulho levaram o brasileiro a superar seu “complexo de vira-latas”.
...E NA TRISTEZA O uruguaio Roque Máspoli consola o capitão brasileiro Augusto, em 1950.  (Foto: José Medeiros/Acervo Instituto Moreira Salles)
O amor pela Seleção – e a integração de jogadores de todas as etnias e classes sociais, capaz de tornar o time uma espécie de microcosmo do Brasil – cresceu aos poucos. “Parece que o processo de aclimatação do esporte bretão a estes trópicos se desenvolveu de forma tranquila e natural, quando na verdade foi marcado por tensões, contradições, conflitos e apropriações de toda ordem – sociais, econômicas, políticas, ideológicas”, escreve o doutor em história social Fabio Franzini, autor do livro Corações na ponta da chuteira: capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938). “Se 1958 marcou a explosão da paixão, o início do namoro dos brasileiros com a Seleção foi em 1919, quando o Brasil sediou o Campeonato Sul-Americano de Futebol. O país daqueles tempos era apenas a terceira força futebolística no continente, muito atrás de Uruguai e Argentina. Poucos acreditavam que a Seleção pudesse superar os rivais mais poderosos. No dia da final, 29 de maio de 1919, o presidente da República, Delfim Moreira, decretou ponto facultativo nas repartições públicas da Capital Federal. Bancos e parte das casas comerciais do Rio de Janeiro nem sequer abriram as portas. O jogo final contra o Uruguai só foi decidido na prorrogação, com um gol de Arthur Friedenreich. Quando a partida acabou, a torcida que via o jogo do lado de fora invadiu as Laranjeiras para festejar a conquista ao lado de seus ídolos, agora convertidos em heróis nacionais.
Apenas um jogador da Seleção de 1919 não era branco – justamente Arthur Friedenreich, filho de um alemão com uma brasileira mestiça. Até os anos 1920, o futebol era um esporte amador, que não remunerava os atletas. Por isso, apenas a elite endinheirada podia se dedicar ao futebol. A aceitação de jogadores de todas as etnias e classes sociais teve como marco a atuação do Clube de Regatas Vasco da Gama. A equipe carioca conquistou o título estadual de 1923 com um time formado por negros, operários e suburbanos. Todos eram regiamente pagos por seu desempenho em campo. O sucesso dos primeiros negros do Vasco ajudou a impulsionar o profissionalismo. Clubes de São Paulo fundaram a Associação Paulista de Esportes Atléticos, para atrair jogadores assalariados de outros clubes. A transição demorou mais de dez anos para terminar. Aos poucos, todos os clubes abriram espaço para negros, mulatos e pobres.
O resultado dessa mistura foi a melhora na qualidade do jogo, que seduziu e conquistou ainda mais o público. O efeito foi imediato na Seleção. Em 1938, ela fez sua melhor campanha em Copa do Mundo até então. Conseguiu um terceiro lugar na França. Entre os principais jogadores estavam o atacante Leônidas da Silva, o zagueiro Domingos da Guia e o meia Fausto – todos negros.
A partir de então, associar as características do futebol jogado aqui às características do Brasil se tornou um esporte nacional entre os intelectuais. A começar pelo próprio Gilberto Freyre. “Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, alguma coisa de dança e de capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses”, escreveu Freyre em Foot-ball mulato, artigo escrito em 1938, mesmo ano da Copa em que Leônidas brilhou. “Tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para os psicólogos e os sociólogos o mulatismo flamboyant e, ao mesmo tempo, malandro que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil”. Nélson Rodrigues glosou Freyre anos mais tarde. “Eu diria ainda que nós também ‘vivemos’ o futebol, ao passo que o inglês, ou o tcheco, o russo apenas o joga”, escreveu Nélson em 1962, na crônica O homem formidável do Brasil. “Há um abismo entre a seca objetividade europeia e a nossa imaginação, o nosso fervor, a nossa tensão dionísica.” O futebol conquistou os intelectuais aos poucos. No início do século XX, eles tinham reservas ao esporte. O escritor Lima Barreto via nos instintos de competitividade e agressividade despertados pelo “bolapé” um fator de desintegração social e degeneração cultural. “O papel do football, repito, é causar dissensões no seio da nossa vida nacional. É a sua alta função social”, escreveu Lima Barreto em um artigo de 1921.
...E NA TRISTEZA E o menino José Carlos Vilella Júnior chora após a derrota na Copa de 1982, na Espanha (Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo)
A importância da Seleção na vida brasileira também pode ser medida por seu uso político. Na década de 1930, o ditador Getúlio Vargas soube usar o fanatismo das massas em benefício próprio. Essa ideia nasceu depois da Copa da Itália, em 1934. Na ocasião, outro ditador – Benito Mussolini, inspiração estética de Vargas – usou o torneio como forma de mostrar a “força” e o “poder” do “novo homem” fascista. Mussolini sabia que aquela Copa significava seu melhor investimento político. Campeões do mundo, os jogadores italianos foram sagrados comendadores e se tornaram representantes oficiais do Exército de Mussolini. Quem chefiou a delegação brasileira para a Copa de 1934 foi Lourival Fontes, jornalista e propagandista do Estado Novo de Getúlio. Foi ele quem trouxe as ideias de Mussolini sobre a força mobilizadora do futebol para o Brasil, de acordo com o que é narrado no livro Maracanazo – A história secreta. Da euforia ao silêncio de uma nação, do jornalista uruguaio Atílio Garrido. Fontes queria ganhar a Copa do Mundo de 1938 e organizar um Mundial em 1942. Ao voltar da Itália, expôs suas ideias ao governo, e o futebol se transformou numa política de Estado.
Homens da confiança de Getúlio foram designados para postos-chave do futebol, como a Confederação Brasileira de Desportos. O Brasil quase foi campeão em 1938. A Segunda Guerra Mundial adiou para 1950 o sonho de sediar uma Copa. Os ventos democráticos que sopraram do pós-guerra tiraram Getúlio do poder. O general Eurico Gaspar Dutra manteve a máquina do Estado Novo e o projeto de construção do Maracanã. A obra se converteu num comitê político do partido de Dutra. O trauma da derrota para o Uruguai, por 2 a 1, impediu que Dutra elegesse candidato. E – ironia das ironias – Getúlio voltou ao poder pelo voto.
O auge do uso político da Seleção se deu mais tarde, perto da Copa de 1970, quando o governo militar aparelhou a Confederação Brasileira de Desportos. Quando a genial Seleção de Pelé e Tostão ganhou a Copa, o ditador Emílio Garrastazu Médici tentou usar o fato politicamente. “Na hora em que a Seleção conquista definitivamente a Copa, após memorável campanha, desejo que todos vejam no presidente da República um brasileiro igual a todos os brasileiros. (...) Identifico na vitória a prevalência de princípios de que nos devemos armar para a própria luta em favor do desenvolvimento nacional”, escreveu Médici em comunicado à época. Ele gostava de aparecer em fotografias ouvindo um radinho de pilha na arquibancada do Maracanã.
Por que amamos  tanto a seleção (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA (2) e Letícia Moreira/ÉPOCA)


Os dois momentos mais tristes da Seleção ocorreram em Copas do Mundo em que o país reuniu times esplêndidos, comparáveis à Seleção de 1970, por que o torcedor se apaixonou – e que o desiludiram. Em 1950, o Brasil jogou uma versão acabada e inteligente do futebol-arte, cheia de inovações táticas. Uma derrota de impacto equivalente ocorreu em 1982, na Espanha, quando o Brasil não conseguiu chegar nem às semifinais. Duas imagens de alta voltagem emocional marcaram esses momentos de tristeza. A primeira, o retrato do gigante Roque Máspoli, goleiro do Uruguai, consolando Augusto, o capitão brasileiro. A fotografia de José Medeiros é uma espécie de “pietá” do futebol. A segunda é a foto do menino José Carlos Vilella Júnior, na ocasião com 10 anos, chorando após a derrota de 1982 para a Itália. Ambas traduzem à perfeição a relação passional dos brasileiros com a Seleção.
Às vésperas de uma Copa em que os sentimentos se misturam, os brasileiros vivem na gangorra de sua paixão. Os jovens que aparecem nesta página veem a Copa de maneira radicalmente diferente. O paulistano Caio Luperi Pires, de 26 anos, continuará uma tradição familiar: torcerá pelo Brasil. Ele pretende pintar de verde e amarelo a rua onde mora, homenagem ao avô, que morreu em 2003, logo depois do pentacampeonato. Caio também já comprou ingresso para as quartas de final, em Fortaleza. Acredita que o Brasil chega lá. A bancária Gisele Ramon, de 31 anos, criticou os protestos no Facebook. “Por que não fizeram isso antes?”, escreveu. “Fácil, agora todo mundo sabe falar de política. Mas, na hora de ir às ruas, alguém fez alguma coisa?” Foi chamada de alienada e desistiu de defender a Copa pela internet. O engenheiro Carlos Eduardo Galiano, de 26 anos, também verá os jogos pela TV – mas diz que torcerá contra o Brasil. Está irritado com as denúncias. “Esses milhões seriam mais bem usados em saúde ou educação”, diz.
Paradoxalmente, o próprio ato de torcer contra ajuda a mostrar a importância da Seleção no país. “O futebol é tão importante no Brasil, com sua capacidade de dramatizar conflitos e explicitar tensões cruciais que, graças a ele, a sociedade pode colocar para fora seu desconforto social, econômico e da democracia”, afirma o historiador Flávio de Campos, da Universidade de São Paulo. “O ‘fora Fifa’ ecoa o ‘fora FMI de ontem’.” Os protestos contra a Copa são legítimos, ainda mais diante de tantas denúncias de corrupção. Como eram em junho passado, no auge das manifestações. Na ocasião, os brasileiros conseguiram separar o sentimento de revolta da paixão pela Seleção. É provável que consigam de novo. E que a imagem do hino cantado a capela volte a correr o mundo. Ir além dos limites da música é uma das maneiras que os brasileiros encontraram para celebrar uma história de amor tão longa quanto intensa.

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