Nas últimas semanas, tenho me dedicado a assistir à série Breaking bad, em DVD. Vejo uma temporada após outra, hipnotizado pela história de Walter White (Bryan Cranston), um modesto professor de química que, ao descobrir um câncer, resolve produzir metanfetamina, uma droga sintética. Tudo o que quer é proteger a família. Deixar uma boa herança para pagar a hipoteca da casa, a faculdade do filho e, dali a uns 18 anos, da filha recém-nascida. Em nome da família, ele se envolve com o tráfico, mata gente. A cada temporada se afunda mais na criminalidade. Jamais perde seu discurso: tudo o que faz é pela família. Considero a série didática. Até que ponto alguém pode ir para proteger a família?
Quando se fala dessa maneira, parece uma coisa linda. Proteger a família é algo que toca nossos corações. O professor traficante é o herói da série. E a gente torce por ele, até nos momentos de maior crueldade. Depois, passada a emoção de cada episódio, reflito e vejo o que há realmente por trás da ficção. Em nome da família, é lícito produzir droga, entrar no tráfico etc.? Família virou desculpa para tudo. A última é essa bobagem de tentar ressuscitar a “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, que ocorreu pouco antes do golpe militar de 1964. Na época, significou apoio ao golpe que se aproximava. Por meio do lema de “defender a liberdade”, pedia um golpe para destituir um estado de direito. Movimentos semelhantes ocorreram noutros países, que também sofreram intervenções militares. Antes da queda de Allende, no Chile, eram comuns os “panelaços”, em que donas da casa faziam estardalhaço para reclamar do governo, dizendo que faltava comida nas mesas. Depois, tanto aqui como no Chile e na Argentina, que também teve seu panelaço, vieram governos militares que deixaram mães sem filhos, mortos sem sepultura. E que falavam em... proteger a família, ai meu Deus! E torturavam e matavam. Quando eu era criança, em pleno golpe militar, garantiam que os comunistas destruiriam a família. E até que devoravam criancinhas!
No passado, se uma garota ficava grávida sem casamento, era expulsa da casa pelo pai e lançada, em geral, à prostituição. O argumento: “Defender a honra da família”. Houve, sim, uma evolução no comportamento. Ninguém expulsa uma filha de casa porque está grávida – e, se acontece, é em rincões do Nordeste. Frequentemente, é o contrário. Pais e mães atuais, novamente em nome da felicidade de seus filhos, tentam empurrá-los para bons casamentos. A família idealizada, com pais e mães bonitos, crianças saudáveis e sorridentes, é ótima para comerciais. Existe uma expressão, a “família margarina”, dos comerciais, em que se demonstra uma felicidade sem arranhões, e passar margarina no pão é a máxima expressão de afeto. Consumir é amar? É a “família margarina” que os partidários desse tipo de manifestação defendem? Uma família idealizada, que não corresponde nem às deles mesmos, com suas contradições.
Tenho motivos para gostar de Breaking bad. É comum alguém que comete um crime horrível, pessoal ou público, dizer que só quis defender a família. A série expõe essa chaga. Durante minha última novela, Amor à vida, recebi frequentes ataques pela internet, me acusando de querer destruir a família brasileira. Em última análise, a novela mostrava, sim, os vários tipos de família, da evangélica à gay. Defendia a convivência entre elas, o direito de ser, existir, e o respeito ao próximo. Essas são ideias, hoje em dia, autenticamente católicas, pois o papa Francisco demonstra um desejo sólido de tornar a Igreja mais receptiva. Mesmo que o papa diga o contrário, sempre existirão políticos dispostos a “defender a família” como argumento para qualquer retrocesso.
Nélson Rodrigues, ícone do teatro nacional, expôs as chagas das famílias. Também é intenso o livro de Zuenir Ventura, Sagrada Família, de quem roubei o título deste texto. Defender a família tornou-se desculpa para qualquer crime, frequentemente contra a liberdade e o direito. Já disse que ressuscitar essa marcha é uma grande bobagem. Ou será que estou enganado? Se já começaram a falar no tema, talvez não seja uma simples besteira. Mas um bom motivo de preocupação. Diante do que dizem, penso nos meus familiares e nas famílias de meus amigos. E pergunto: pedi alguma coisa? Com que direito alguém fala em nome de mim e de nossas famílias?
Nenhum comentário:
Postar um comentário